quarta-feira, 20 de abril de 2016

Tobias Rosa, o colecionador

           A humanidade pode ser dividida em duas grandes categorias: os colecionadores e os não-colecionadores. Se você, caro leitor, pertence ao primeiro grupo, sabe do que estou falando; se pertence ao segundo, há de aprender alguma coisa com esta inusitada história que passo a relatar.
            Antes, algumas palavras sobre os tipos de coleções e colecionadores. Coleta-se de tudo. Ainda criança, morador de cidade do interior, eu e meu irmão mais novo percorríamos ruas e mais ruas atrás de carteiras de cigarro vazias; havia as comuns, tipo Mistura Fina, as raras, e as raríssimas, das quais já não me lembro o nome. Crianças colecionam também bolas de gude, e é aí que começa o vício, porque são lindas, variadíssimas na cor, desenho e tamanho.
            Mas o ápice do colecionismo infantil é atingido com as figurinhas de futebol! As mais antigas vinham enroladas em balas, vendidas a preço de vintém; mas se fosse encontrada uma carimbada, então ela não tinha preço – e até hoje persiste a expressão “figurinha carimbada”, pessoa rara e de indiscutível valor.
            A criança cresce (ou não), e passa a colecionar outros objetos: carros antigos, pinturas, esculturas, velhos LPs, rádios, bibelôs, orquídeas, cactos, figurinhas de futebol, moedas, selos. Os filatelistas constituem uma categoria à parte, por suas peculiaridades, por sua diversidade – se você pertence ao grupo dos não-colecionadores, não há como desconfiar de tantas variações; um pequeno “defeito” em um selo pode transformá-lo numa raridade que passa a valer uma fortuna.
            Mas é hora de apresentar nosso personagem, colecionador congênito, fanático, feroz mesmo, tendo passado pelas bolas de gude, carteiras de cigarro, figurinhas de futebol, moedas antigas, até chegar aos selos, sua paixão definitiva. De início, Tobias Rosa – Rosa para os íntimos –, ainda adolescente, colecionou selos usados, carimbados pelos Correios, portanto sem qualquer valor pecuniário; removia-os cuidadosamente dos envelopes por imersão em água e catalogava-os por países. (Em tempo, há os que colecionam os próprios envelopes com seus respectivos selos.)
            Esta fase foi logo ultrapassada pela aquisição de selos novos, assim que Tobias arranjou seu primeiro emprego, médico formado, especialista em Ortopedia. Começou comprando os selos comemorativos do Brasil, em quadras, o que valorizava sua coleção. Até que ficou sabendo que um colega seu, professor emérito, Dr. Silva, organizava uma já premiada coleção temática, A Mão na Filatelia.
Tobias quase morreu de inveja, Por que não pensei nisso antes?, ruminava inconformado, arrancando os cabelos, como se aquilo fosse alguma coisa irreparável, não ter pensado antes. Um completo ignorante da mente humana, não posso afirmar que tal comportamento seja próprio do colecionador compulsivo, a inveja, mas passei a desconfiar de que isso possa ser verdade, a partir da observação do caso Tobias Rosa; esta é apenas uma digressão psicológica, não a tome o leitor como algo próximo da verdade.
Até que Tobias teve uma verdadeira iluminação, após torturar-se por meses a fio, em busca de um tema para sua coleção de selos. (Para o leitor menos avisado, esclareço que a modalidade mais moderna de filatelia é a coleção temática, ou seja, aquela em que o colecionador escolhe um assunto a partir do qual vai encontrando as devidas associações.)  
Pois meu tema será O Pé na Filatelia!, exclamou Rosa, orgulhoso de tamanha originalidade.
Ocorreu-lhe, em primeiro lugar, o óbvio subtema O Pé no Futebol, e juntou selos sobre o esporte do mundo inteiro, com destaque para os artilheiros, aqueles que se utilizam do pé com maestria, mas também zagueiros, craques do meio-campo, craques de todos os tempos como Pelé, Garrincha, Mazurkievski, Di Stefano, Cruyff, Pepe (pertencente à subcategoria dos jogadores de chute potente), Valdemar Carabina, Gilmar, um grande goleiro que embora usasse as mãos com maior frequência também batia tiros de meta, Waldir, outro grande goleiro, Julinho, Chinezinho, Mazola, Rivaldo, Gabriel Jesus, estes últimos todos jogadores e ex-jogadores do Palmeiras, donde se depreende que o nosso Rosa era palmeirense, e não acaba mais o subtema futebol, Tobias novamente arrancando os cabelos, recebendo diariamente dezenas, centenas de selos sobre o assunto.
Percebeu que em quase todos os esportes o pé era fundamental, no basquete, vôlei, tênis, rúgbi, bocha, golfe, quando se anda uma barbaridade, e tantos outros, e acresceu a fantástica coleção com todos eles, só não conseguiu encontrar correlação para o xadrez, mesmo assim perguntou-se, Como os jogadores irão para a mesa onde se encontra o tabuleiro e suas peças se não tiverem pés?, e acrescentou o xadrez, da mesma forma que acrescentou a sinuca, Esporte que tantas voltas em torno da mesa exige dos jogadores que jamais o fariam sem bons pés, ponderou Tobias. Pelo mesmo princípio, botou o tiro ao alvo, a necessitar de boa base, dos pés.
Em seguida acrescentou O Pé nas Artes! Lembrava-se de ter visto o pé do David, de Miguelângelo, em Florença, e de fato havia selo a estampar aquela obra de arte. E Tobias resolveu juntar também todos os selos que mostrassem pinturas onde aparecessem o pé, o que aumentou tremendamente sua coleção, com as respectivas subdivisões pés de homem, pés de mulheres, pés de cachorros, de cavalos, de todos os bichos, a coisa não tinha mais fim, cada vez mais atormentado nosso colecionador. E não deixou de acrescer, na Arquitetura, O Pé Direito!
Até que chegou à Literatura, e não poderia esquecer-se de Glauco Mattoso, mestre da sátira fescenina, autointitulado podófilo, ou podólatra, enfim, praticante da podofilia, além de profícuo sonetista clássico. Também não poderia omitir certa leitura da infância, e Tobias buscou o selo comemorativo do livro Meu Pé de Laranja Lima, de José Mauro de Vasconcelos, o que o levou, inesperadamente, à Botânica e ao Pé de Goiaba, Pé de Jaca, Pé de Manga, Pé de Jabuticaba, Pé de Tomate, Pé de Pau, expressão tão a gosto de mineiros e nordestinos, e a todos os pés de todas as plantas, o que abarrotou sua coleção de tal maneira que nosso homem estava já à beira da loucura, se não completamente insano.
Ao registrar a expressão Pé de Pau, Tobias percebeu que havia uma série de compostos com a palavra pé, de uso comum na língua portuguesa, e resolveu abrir o subtema correspondente: Pé de Mesa, Pé de Cana, Pé de Chumbo, Pé de Galinha, Pé Cascudo (o diabo), Pé D`água, Pé de Cabra, Pé de Guerra, Pé de Pato, e ele não se importava mais se havia ou não o selo correspondente, sua cabeça girava agora em torno do pé, um delírio podofílico. Passo então à segunda digressão psicológica, perdoe-me o leitor, ao observar que a obsessão de Tobias pelos selos deslocou-se para o pé, acompanhada de agravamento do quadro.
Tobias não trabalhava mais, faltava aos plantões médicos, mal se alimentava, vestia-se com desmazelo, andava sujo, malcheiroso, cuidando apenas de sua brilhante coleção temática, muito superior a do Dr. Silva, seu colega ortopedista, para desespero de Dona Oswaldina Rosa, sua mulher, que via naquela obsessão uma grave manifestação de distúrbio mental. Resolveu chamar em casa um amigo de Tobias, psiquiatra competente, para avaliar o caso, e quando comunicou esta decisão ao marido, ele respondeu, Mas ele é um tremendo Pé Frio, e lá foi a dita expressão para a coleção temática.
No mesmo dia Tobias Rosa foi internado num manicômio, sob camisa de força, gritando Não sou um Pé de Chinelo!