sábado, 3 de janeiro de 2015

Manuelão mão de pilão


             



              Manuelão fazia jus ao nome: negro de quase dois metros de altura, ombros largos, braços e pernas de puro músculo, o tronco um verdadeiro jacarandá. Mas o que impressionava mesmo nele eram as mãos – mãos de Portinari –, cada dedo um martelo de quebrar pedras.
            Tirador de leite de profissão, apesar da brutalidade física, Manuelão nunca maltratou as tetas leiteiras do rebanho de vacas holandesas, compradas a peso de ouro pelo dono da fazenda. Jeitoso, tirava o leite com amor e arte, as vacas mais enfezadas amansavam nas mãos dele.
            Na hora do almoço, lá pelas onze da manhã, Manuelão era recebido na cozinha da sede da fazenda para a principal e invariável refeição do dia: arroz, feijão, macarrão, frango, carne de porco e mandioca. O monumental prato de comida caía como uma luva na mão espalmada de Manuelão, sempre a esquerda, que ele manejava a colher com a direita.
            Em menos de dez minutos o prato estava vazio. Repetia a dose, apenas uma vez, sistematicamente. Espreguiçava-se na cadeira, arrotava baixo, discreto, bebia um copo de água fresca e esperava pelo cafezinho, servido numa canequinha de lata.
            Naquele dia a casa recebia visitas de certa cerimônia, e ajuntavam-se todos na enorme cozinha, pelo encanto do fogão de lenha com o crepitar da madeira, e pelo perfume da comida da Maria, a cozinheira. Manuelão não mudou seus hábitos. Comeu em silêncio respeitoso os dois pratarrões de sempre, bebeu o copo dágua, arrotou discretamente, esperou pelo cafezinho.
            Comeram todos, os donos da casa e as visitas, na longa mesa de madeira maciça, com os dois longos bancos de cada lado da mesa. Chegou a hora do cafezinho, depois das sobremesas de doces de frutas e compotas de todas as variedades, acompanhadas do queijo tradicional, Tudo é daqui da fazenda, orgulhava-se o dono da propriedade. O café, também colhido e moído em casa, era filtrado em coador de pano, como recomenda a boa tradição mineira.
            Porque o dia era de festa, o café foi servido em xícaras de porcelana inglesa, utilizada apenas naquelas ocasiões especiais. Manuelão recebeu de Maria a delicada porcelana, coisa nunca vista, e segurou-a como se tivesse nas mãos a teta de Dália, sua vaca predileta. Bebeu o café, esforçando-se para não fazer barulho. Quando terminou, chamou Maria num canto da cozinha e perguntou:
            – Maria, pra que serve esse pratinho debaixo da xícara?
            Maria não soube responder.
           

O caracol, de Henri Matisse


Henri-Émile-Benoit Matisse (1869-1954), pintor, desenhista e escultor francês.
O caracol (guache) foi elaborado em 1953.