terça-feira, 2 de setembro de 2014

Haicai - forma e rima


             Duas exigências faziam parte da construção do haicai original, nascido no Japão: a natureza como tema e a ausência de rima. As variações quanto ao número de versos e sílabas foram constantes ao longo dos séculos – o waka, com versos de 5 e 7 sílabas, surgiu no século VII d.C., até que se chegou à clássica estrutura de 5 - 7 - 5 versos.
            São exemplos do haicai clássico do mestre Basho:

velho lago
mergulha a rã
fragor d’água

em profundo silêncio
o menino, a cotovia
o branco crisântemo

ao sol da manhã
uma gota de orvalho
precioso diamante

            Nos anos 40, no Brasil, Guilherme de Almeida introduziu engenhosa organização no haicai brasileiro através da rima entre o primeiro e terceiro versos, além de uma rima interna no segundo verso, entre a segunda e sétima sílabas. O seguinte esquema torna mais fácil a compreensão desta estrutura:

_ _ _ _ x
_ y _ _ _ _ y
_ _ _ _ x
           
            Eis alguns belos haicais do poeta paulista (Campinas -1890, São Paulo - 1969), todos compostos segundo o formato acima:

O ar. A folha. A fuga.
No lago, um círculo vago.
No rosto, uma ruga.

Um gosto de amora
Comida com sol. A vida
Chamava-se “Agora”.

Na cidade, a lua:
a joia branca que boia
na lama da rua.

            A partir de 1980 o haicai ganha reputação de poesia séria, influenciada ainda pelos modernistas, com enorme contribuição de Paulo Leminski (Curitiba, 1944 - Curitiba, 1989). A forma já não importa tanto, perde-se a rigidez, a natureza não se constitui no único tema, a banalidade do cotidiano entra no haicai, embora os três versos estejam presentes na maioria deles. A rima, quando existente, em geral permanece entre o primeiro e terceiro versos.
            Alguns haicais de Leminski:

verde a árvore caída
vira amarelo
a última vez na vida

lua de outono
por ti
quantos s/ sono

casa com cachorro brabo
meu anjo da guarda
abana o rabo

            Forma e rima variam tremendamente nos haicais de Carlos Drummond de Andrade (Itabira, 1902 - Rio, 1987):

Não tenho dinheiro no banco,
porém
meu jardim está cheio de rosas.

E se Deus é canhoto
e criou com a mão esquerda?
Isso explica, talvez, as coisas deste mundo.

Tudo tem limite
exceto
o amor de Brigitte.

            Poucos autores, nos dias de hoje, têm se dedicado com tanto afinco à difusão do  haicai quanto a curitibana Alice Ruiz (1946). Também ela não abandona completamente a rima:

nesse país em greve
só o relógio
faz o que deve

presente de vênus
primeira estrela que vejo
satisfaça o meu desejo

formigas fazem festa
farelo de bolo
da véspera

            Tendo ultrapassado a espantosa (para mim!) cifra de 100 haicais publicados no Louco por cachorros, de qualidade incomparavelmente inferior aos poetas aqui citados, sem qualquer pretensão de excelência criativa, trago para apreciação de meus pouquíssimos leitores, uma variação de forma e rima que penso ser original, nem melhor nem pior, salvo disposições em contrário. O esquema é assim representado:

_ A _ _ B
_ _ _ _ _ _ A
_ _ _ _  B

            Alguns exemplos, compostos em agosto e setembro, no Planalto Central:

sol quente, secura
parece que ela nem sente
canta a saracura

co’a seca, a esperança
primeira chuva que chega
dias de bonança

bem antes das chuvas
pra levar a vida adiante
o cerrado muda

            Penso que o espaçamento maior entre as rimas da segunda sílaba do primeiro verso e a última do segundo verso possa criar uma boa sonoridade para o haicai. Ao menos, uma experimentação, contando com a benevolência de sempre de meus leitores. 

persistência



bem antes das chuvas
pra levar a vida adiante
o cerrado muda

Foto: A.Vianna, set. 2014, Brasília.