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sábado, 13 de junho de 2020

Oficina do Tobias XV - Epílogo

Folhetim


Décimo quinto encontro


Alguns dos senhores haverão de perguntar por que não chamei Conclusão ao nosso último encontro e preferi Em Resumo. Formulada a questão, torna-se óbvia a resposta. O processo de aprendizagem e o aperfeiçoamento da escrita não terminam nunca, não se concluem. 
            Recebi dos senhores 286 textos, e os devolvi todos com minhas observações; aqueles entregues hoje, os comentários serão enviados por e-mail. Em cada texto coloquei uma das seguintes letras: MB, B e P. Agora, ao final da oficina, revelo o significado delas: Muito Bom, Bom e Persevere. Releiam seus textos, por favor, com o apurado senso crítico que demonstraram durante nossos encontros. Espero ter sido útil em pequena porção que seja, mas não se iludam, será com esforço e tenacidade, a escrever diariamente, se possível, que os progressos virão.
            Façam isso com alegria! É preciso sentir prazer em escrever. E cuidem da forma. Lembrem-se, não há fôrma; não se prendam a regras, a padrões ou estilos pré-estabelecidos, exerçam a liberdade de criar, cuidando da forma.
            Portanto, em resumo, o que os senhores puderam aprender nesses 15 encontros?
            Ana Paula foi a primeira a se manifestar, Professor, desculpe, mas esperava mais da sua Oficina, esperava dicas, orientação, ideias, macetes, alertas, para melhorar a minha escrita. Tobias curto e grosso, Você escolheu a oficina errada, minha filha; digo mais, NINGUÉM ENSINA NADA PARA NINGUÉM, A PESSOA APRENDE! E o silêncio voltou à sala.
            Pois eu adorei, sapecou Suzete, alegrinha, convencida de que voltava para casa cheia de ideias.
            Eu só tenho a agradecer, acrescentou Tina, pela oportunidade de contar uma historinha; a idade me ensinou que, de fato, a responsabilidade de aprender é só minha.
            Josíres não poderia ser mais enfático: amei amei amei! Obrigado, Professor.
            Vejam os senhores como está arraigada na cabeça da gente este binômio Professor/Aluno, ou seja, AQUELE QUE SABE/AQUELE QUE NÃO SABE. Ao lhes dar total liberdade para escrever, sem entraves e estorvos, pretendi lhes oferecer a autoridade DE QUEM SABE.
            Agora é Clarice quem pede a palavra, Tobias, você podia sugerir algumas leituras que acha fundamentais para quem deseja escrever, Boa pergunta, menina, pois nela está implícita a ideia de que é preciso ler, antes de tudo. Sugiro que não passem um dia de suas vidas sem que não tenham um livro nas mãos. Sugiro ainda que alternem um clássico e um autor contemporâneo. Um clássico, porque é preciso ler os clássicos, e um contemporâneo, para que se familiarizem com a literatura de nosso tempo e para que novos autores possam vender seus livros e comprar comida. As risadas voltaram ao salão, que o clima era de muita severidade até então.
            Devo acrescentar uma última sugestão, completa Tobias, Leiam Machado de Assis, sempre, leiam e releiam, não apenas os romances mais afamados, leiam os contos, as crônicas, leiam tudo de Machado, para se entranharem na intimidade da língua portuguesa. Mas também não deixem de ler Grande Sertão: Veredas, do nosso querido Rosa, pois ali a intimidade com a língua será consumada.
            E chega de conselhos. Tornou-se hábito no último encontro de nossa oficina, que alguém, por um motivo ou por outro, tenha se destacado, não que seja o melhor, ou a melhor, nada disso, é apenas um mimo meu, que essa pessoa receba uma lembrança, certamente um livro. Nesse seleto grupo, escolhi Suzete, que leva de brinde o livro de poemas chamado Esmo, de autoria de Paulo Sergio Viana.


            Os estrondosos aplausos sugerem quase que a unanimidade em favor da escolhida. Digo quase, vocês sabem, Ana Paula...
Bom que terminamos, senhores, arremata Tobias, porque vem aí gravíssima pandemia, um novo vírus talvez surgido na China e que se espalhou pela Itália e certamente chegará por aqui. Havendo quarentena, aproveitem o tempo para ler e escrever. Felicidades a todos. Foi um enorme prazer conhecê-los. Ah!, o almoço hoje é por minha conta.
A oficina termina com ruidosa e prolongada salva de palmas. Uns poucos enxugam uma lágrima que ameaça cair.

sexta-feira, 12 de junho de 2020

Oficina do Tobias XIV

Folhetim


Décimo quarto encontro


No décimo quarto encontro, com tema livre, o grupo se divide entre os que escrevem à larga, sem peias, gostando do vento batendo no rosto como numa veloz cavalgada, e aqueles que diante da folha em branco ou da tela vazia, empacam, tamanha dificuldade diante da partida. 
            Aí está a razão pela qual Tobias escolhe o tema livre. Professor, não sei por onde começar, afirma Beatriz; ela é jornalista e necessita de um mote, um fato jornalístico, para começar, não sabe escrever ficção. O mesmo acontece com Solange, dona de casa, sempre muito atarefada, mas quando senta para escrever, As ideias somem, Professor! Tina não sofre desse mal, Tenho muitas histórias para contar, aqui vai uma delas:

Cruzava uma ponte sobre um ribeirão do qual já não me lembro o nome quando vi um menino pequeno dentro daquela água fétida, em plena enchente, tentando recuperar uma bola de futebol. Outras pessoas já se aglomeravam sobre a ponte, gritando para que o menino saísse da água. Reconheci-o! Chamava-se André, filho de Ondina, minha amiga que morava na casa ao lado. Corri até lá, gritei pela mãe, para que ela com sua autoridade obrigasse o menino a sair da água. Esbaforidas, corremos as duas para a ponte, mas André já estava na margem, agarrado a sua bola. 
– Vai para o castigo, menino, bradou-lhe a mãe. 
– Vou, mas com minha bola na mão!

            Choveram aplausos, Tina, você precisa escrever um livro, disse Suzete, conte mais histórias deliciosas como esta! 
Tobias, de onde veem essas ideias estranhas que os escritores colocam em livros e mais livros, pergunta Tomás, timidamente; de onde veio aquele microconto do Kafka, onde as crianças se trancam dentro de uma mala e morrem sufocadas? Esta é uma pergunta interessante, de onde veem as ideias, e ninguém menos do que Freud procurou respondê-la, disse Tobias. Veem do inconsciente, segundo o mestre. A bela história que nos contou Tina vem das experiências pessoais dela, guardadas na memória. Nossas experiências de infância são sempre muito ricas, e acabam esquecidas porque não as escrevemos. Qualquer ideia serve, desde que a forma seja de qualidade – não canso de repetir isso. Oficina serve para tratar da forma.

Ela conviveu conosco nos últimos 15 anos. Era da família, gente como a gente. Chamava-se Flor. Era da raça shih-tsu, branca com manchas marrons, o rabinho peludo, sempre alegre e meiga a abanar o rabinho. Mas envelheceu, a catarata avançada, acabou ceguinha de tudo, sofria com a artrose mas ainda andava pela casa sem se perder. Agora vem o mais interessante da história, Flor perdeu o apetite completamente, daí o emagrecimento progressivo, sem força nem para andar, a prostração doentia. Até que descobrimos o único alimento que Flor aceitava com gosto, comia com prazer e lambia os beiços e pedia mais: caqui. Flor era louca por caqui, comia caixas e mais caixas de caqui, e ainda viveu entre nós alguns anos comendo caqui! Acabou morrendo de velhinha. Nós, que ficamos, toda vez que comemos caqui nos lembramos de Flor. Ela ainda está entre nós.

Tudo serve para a escrita, continuou Tobias, mas a forma é essencial. Apresento-lhes pequeno trecho das Memória póstumas de Brás Cubas, cuja mãe acabara de falecer. Escreve Machado, na voz de Brás Cubas:

“A dor suspendeu por um pouco as tenazes; um sorriso alumiou o rosto da enferma, sobre o qual a morte batia a asa eterna. Era menos um rosto do que uma caveira: a beleza passara, como um dia brilhante; restavam os ossos, que não emagrecem nunca.”

            Vejam os senhores, em pleno sofrimento da perda materna, Brás Cubas nos fulmina com a mais fina ironia: os ossos não emagrecem nunca! Que ousadia! Que humor fino! Que imagem para se guardar para sempre: os ossos não emagrecem nunca! Frase como esta vale um milhão. Procurem essas frases – elas estão por aí –, ousem, não tenham medo do ridículo, corram riscos, saiam do ramerrão papai-mamãe, liberdade liberdade liberdade de pensamentos e ideias.
            Via-se, Tobias empolgara-se! O grupo percebe o entusiasmo nas palavras dele, e isso é contagiante. Aplaudem calorosamente.
            Suzete ainda relata interessante episódio ocorrido em seu salão de beleza, em que um homem morrera exsanguinado por uma tesourada na virilha, a artéria femoral seccionada. Ela faz daquilo um conto policial.
            Senhores – é sempre com essa palavra mais ou menos solene que Tobias encerra os trabalhos do dia –, amanhã teremos nosso último encontro. O tema será: EM RESUMO.
            Tenham uma boa tarde.

quarta-feira, 10 de junho de 2020

Oficina do Tobias XIII

Folhetim


Décimo terceiro encontro


Tobias, ao iniciar o encontro, afirma, Esta oficina não pretende formar poetas, porque a Poesia é um dom, mas quem sabe alguns de vocês têm o dom e podem desenvolvê-lo; no entanto, ler poesia todos podemos e devemos fazer, se possível todos os dias.  Distribui impressos quatro poemas, e os lê para o grupo.

Amor é fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói, e não se sente;
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;
é um andar solitário entre a gente;
é nunca contentar-se de contente;
é um cuidar que ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade;
é servir a quem vence, o vencedor;
é ter com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor
nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor.

                        ***
AUTOPSICOGRAFIA

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que leem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas da roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama o coração.

                        ***
No meio do caminho

No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.

                        ***
Metade

construí minha casa pela metade
paredes de metro e meio
as portas sem fechadura
escadas sem corrimão
a mesa não tem cadeiras
o prato não tem talher
há no quintal meia horta
e meia lua no céu
nessa casa de meeiro
habita pela metade
metade do meu desejo
as minhas meias palavras
só permanece o meu sonho
inteiro inteiro inteiro 

            Sem anunciar o nome dos poetas, convida Tobias, Agora vamos conversar sobre eles.
            Gosto mais desse, gosto mais daquele, palpites se sucedem, bem pobrinhos, sem profundidade, como se nada ou muito pouco tivessem assimilado. O primeiro poema, 5 alunos conhecem o autor; o segundo, 2 alunos; o terceiro já visitara a oficina, trazido por Clarice no segundo encontro; e o último, apenas Suzete identifica o poeta, aliás ela conhece todos eles. Tobias pede que falem sobre as diferenças de estilo. Nem todos sabem o que é um soneto, nem como é construído. Ana Paula arrisca uma pergunta, Professor, pode escrever assim sem nenhuma pontuação, como no último poema? Para falar a verdade, eles não sabem nada sobre Poesia. Tobias, experiente, não esperava outra coisa.
            Pelo menos vocês gostaram de ouvir os poemas, pergunta Tobias levemente alterado, procurando esconder a irritação. A resposta positiva é unânime. Então comprem livros de poesia, de preferência os mais finos, de poucas páginas, fáceis de carregar, e leiam poesia todos os dias, leiam em voz alta, um poema ao dia que seja, homeopaticamente, pois faz bem à saúde, ao corpo, ao bestunto e principalmente à alma.  
            Tudo pode em poesia, Ana Paula, é a forma de escrita mais livre que há. Mas tomem cuidado, já dizia Fernando Pessoa: “O poeta é um fingidor”. Não é tão somente de beleza que se trata, como no primeiro verso de Luís Vaz de Camões: “Amor é fogo que arde sem se ver”. A pedra de Drummond definitivamente não é um paralelepípedo. (Alguns sentem que Tobias está meio puto da vida com tanta ignorância.) Quando o poeta Paulo Viana fala da metade das coisas, ele quer mesmo falar do sonho inteiro. 
            Repito, escrever poesia é para poucos, ler poesia é para todos. Leiam leiam leiam poesia, é o que posso lhes dizer, senhores.
            Amanhã será nosso penúltimo encontro: o tema é livre. Escrevam. 
            Tenham uma boa tarde.
            

terça-feira, 9 de junho de 2020

Oficina do Tobias XII

Folhetim


Décimo segundo encontro


Ricardo, o engenheiro químico que até agora tem participação apagada, inicia o encontro:

Em primeiro lugar, deveríamos perguntar o que é um palavrão. Quem decide o que é ou não é um palavrão? O que será palavrão para um, não será para outro. A definição de taboo word (palavrão, na língua inglesa) no Oxford Advanced Learner’s Dictionary é “a palavra que muitas pessoas consideram ofensiva ou chocante, por exemplo, porque se refere ao sexo, corpo ou raça”.
            Isso sem falar nas mudanças que o significado obsceno das palavras sofre com o passar do tempo. Que diabo! Diabo há alguns séculos era palavra impronunciável. Hoje, nem palavrão é.
Os pesquisadores descobriram que o palavrão nasce em um mundo à parte dentro do cérebro. A linguagem comum fica a cargo da parte mais sofisticada denominada neocórtex; já os palavrões ficam no subterrâneo, no chamado sistema límbico. É também a parte que controla nossas emoções. Trata-se de uma zona primitiva; nosso neocórtex é mais desenvolvido do que o dos demais mamíferos, mas o sistema límbico é bem parecido. Lá reside nossa parte animal, que sai da jaula de vez em quando na forma de palavrões. 
            Essas informações científicas explicam porquê falamos palavrões. De vez em quando eles saem... Porém, escrever um palavrão é outra coisa. Quem escreve pensa, e as palavras não saem, são registradas letra por letra. A responsabilidade de quem escreve portanto é maior, exatamente porque tem tempo para pensar. Isso não que dizer que não possamos escrever um palavrão. Podemos, porém com mais parcimônia do que o dizemos.
            Lembro-me de um texto de José Saramago, nosso Nobel de Literatura, em que ele vinha mostrando toda sua indignação para com uma determinada posição política, num crescendo de raiva, até que subitamente escreve um palavrão, e causa grande impacto no leitor! Portanto, colegas, o problema reside em que momento do texto lançar mão do palavrão. 
            Obrigado pela paciência, termina Ricardo.

            Aplaudidíssimo, merecidamente. E o que vocês acharam da carta lida ontem por João, pergunta Tobias. Clarice logo responde que não gostou. Bem, Professor, ele conseguiu o empréstimo, acrescenta Suzete, para risada geral; com os palavrões parece que João conseguiu dar credibilidade ao seu estado de penúria, com intenso realismo; a grosseria exposta na carta tinha essa finalidade, e comoveu o amigo; eu gostei, conclui a cabeleireira. 
            Tina, a senhora de Guaratinguetá, observa, Conheço bem o escritor e poeta Paulo Viana, que já teve uma bela crônica lida aqui; ele diz com toda a ênfase que “Machado de Assis nunca escreveu um palavrão”, o que penso ser um baita argumento. Thiago contra-ataca, Era um outro tempo, Tina. 
            Sucedem-se as opiniões, uns pró, outros contra. Clara, que pouco tinha falado até agora, cita Marcelo Mirisola, que ganhou notoriedade abusando do uso de palavrões, mas infelizmente nem Tobias havia lido qualquer coisa de Mirisola. Puta que pariu, vocês precisam ler mais, dispara Clara! E, sob gargalhadas, todos concordam que o palavrão agora está bem empregado.
            Tobias resolve dar uma aula, contrariando seus princípios:

O folclorista pernambucano Mário Souto Maior (1920-2001) decidiu percorrer várias regiões do país em busca dos palavrões e o resultado pode ser encontrado na nova edição de "Dicionário do Palavrão e Termos Afins". E mostra o livro!


O dicionário foi publicado originalmente em 1974, com prefácio de Gilberto Freyre, e sofreu censura dos militares. Foi relançado nos anos 80, e a primeira edição esgotou rapidamente. Carlos Drummond de Andrade defendeu o glossário publicamente:
"A carga de tais preconceitos é tamanha que o "Dicionário do Palavrão e Termos Afins", de Souto Maior, levou anos trancado em gavetas de censura, porque certo ministro da Justiça considerava atentatória aos costumes uma obra que tem similares de nível universitário na Alemanha, na França e outros países. Foi necessário que a opinião pública forçasse os governos militares à abertura democrática, embora tímida mas já hoje irrecusável, para que esse livro conquistasse direito de circulação e, portanto, de ser criticado. Seu autor, julgado sumariamente em sigilo de gabinete, seria assim um pornógrafo, quando na realidade se trata de um dos mais qualificados estudiosos da cultura nacional em seu aspecto de criação popular, de riquíssima significação."

            Se tem até dicionário, o palavrão merece nossa consideração, penso eu, e estou em boa companhia, arrematou Tobias.
            Senhores, para amanhã conversaremos sobre Poesia! Tenham uma boa tarde.

segunda-feira, 8 de junho de 2020

Oficina do Tobias XI

Folhetim


Undécimo encontro

Penso eu, talvez ninguém mais pense assim, de modo que os senhores não precisam concordar, mas bem que podiam experimentar: – que escrever cartas é a maneira mais fácil de iniciar na arte da escrita. Assim Tobias dá início ao encontro.
            E prossegue, Escolham um amigo, um parente próximo ou distante, vivo ou morto, namorado ou namorada, um antigo professor por quem nutram alguma admiração ou mesmo ódio, um político para ajustar contas, um antigo colega de turma, um destinatário qualquer. E escrevam: sobre tudo e sobre nada, falem do tempo, da política federal, futebol é ótimo tema para quem gosta, Literatura – assunto infinito –, Cinema – outro assunto infindável –, Arte, Filosofia, Religião, escrevam ao pai como Kafka escreveu, à mãe, aos filhos, escrevam sobre cães e gatos, passarinhos e borboletas, assunto não faltará nunca. Manoel de Barros escreveu: “Qualquer palavra serve para a poesia”; eu escrevo: as palavras servem para ser pronunciadas e para ser escritas, mas estas últimas são as que ficam!
            
Caríssimo Fulano de Tal,

escrevo para saber notícias de você e de sua família...

            Assim comecem, e por aí vão..., arremata Tobias, com esta frase que entra para a história da Oficina! Lembrem-se, a carta não precisa ser necessariamente enviada; guardem-na, entretanto; será sempre possível uma releitura crítica no futuro. Tobias parece empolgado com o tema, deve ser mesmo um missivista contumaz. 
            Helena, pediatra que ainda não havia se manifestado, fala Quando passei no vestibular para Medicina minha mãe me pediu para escrever uma carta à minha primeira professora do ensino fundamental, D. Dulce, e gostei da ideia, assim o fiz, para exprimir minha gratidão. Essas coisas a gente aprende, não nasce sabendo, como sentir gratidão, empatia, e escrever aquela carta me ajudou a registrar em minha mente tal sentimento. (Foi aplaudida, não preciso dizer.)
            Vou lhes confessar, disse João à queima-roupa, o carioca estudante de Farmácia, certa feita me encontrava numa pindaíba desgraçada, na dureza geral, sem um puto no bolso, então resolvi escrever a um amigo, solicitando algum. Colei no envelope um selo usado e enfiei debaixo da porta do apartamento dele, em Copacabana. Diz a carta – João tirou ensebada folha de papel do bolso do paletó e leu:

“Alfredo, queridíssimo e saudoso amigo,

espero que esta lhe encontre em ótimo estado de saúde, em plenas condições mentais e financeiras, para suportar o baque das notícias que infelizmente passo a relatar. Alfredo, estou na penúria absoluta. Não como há 2 dias. Tenho passado a pão e água. Visto farrapos sujos, pois não posso pagar uma lavanderia. Tenho o cabelo desgrenhado pois não posso pagar o barbeiro, que não me corta fiado. Alfredo, estou fodido. Puta que pariu Alfredo!, eu não merecia isso. Mas sejamos objetivos: preciso de 10 mil no momento, o que me aliviaria deveras. Você é minha última esperança, Alfredo. Trata-se de um empréstimo, que saldarei logo que minha condição financeira permitir.
Contando com sua compreensão, do amigo de sempre e de todas as horas, 
                        João Aquino da Cruz e Sousa.”

            Vocês não vão acreditar, meus colegas! Alfredo me emprestou os 10 pilas! Readquiri minha dignidade, comprei um terno novo, tinindo, me aprumei, minha situação financeira e social melhorou muito. Sabem como? Casamento de conveniência, encontrei viúva podre de rica. Só assim pude pagar a matrícula dessa porra de oficina. É que, para disfarçar, que agora sou homem de respeito, arranjei emprego num jornal, para escrever obituários, por isso estou aqui. Larguei a Farmácia, agora sou jornalista. E vão me desculpando os palavrões. Ah!, saldei a dívida com meu amigo Alfredo.
            O grupo permanece em assombrado silêncio, sem saber o que pensar. Ana Paula não se aguenta, Isso tudo é verdade mesmo ou você está dando uma de Suzete? Verdade verdadeira, assente João, rindo, sem um pingo de vergonha na cara.
            (Nelson Rodrigues afirma que todo canalha é magro; João é magro..., pensa Tobias e guarda para si tais elucubrações, que não está ali para julgar ninguém.) 
            Tobias não perde a pose, Vejam os senhores como é fundamental saber redigir uma carta, pode mudar a vida de vocês, o que não é pouco, ironiza. E diante desta inesperada oportunidade, só me resta anunciar o tema de amanhã: o uso e abuso do palavrão.
            Tenham uma boa tarde, senhores.
            
            

sábado, 6 de junho de 2020

Oficina do Tobias X

Folhetim


Décimo encontro

Apresento minha pequena crônica, contando com a boa vontade de vocês e do Professor, naturalmente, afirma Josíres, revelando intenso nervosismo. Então lê:

“Deu no jornal ontem: turista italiano de 70 anos sofre parada cardíaca e desaba enquanto contempla O Nascimento de Vênus na Galeria degli Uffizi, em Florença! Aventou-se logo o diagnóstico de síndrome de Stendhal, uma espécie overdose de beleza, de intoxicação pela Arte. 
Stendhal, em 1817, apresentou sintomas de profundo mal-estar, ao entrar na Basílica da Santa Cruz, em Florença, afetado por tamanho esplendor. “Tinha alcançado esse nível de emoção em que as emoções celestiais das artes e os sentimentos apaixonados se encontram. Senti palpitações no coração, caminhava temendo cair”, escreveu.  
            Notícia interessante, porque também eu experimentei fortíssima emoção ao ver pela primeira vez o David, de Michelangelo, na Academia de Belas Artes de Florença. Logo ao primeiro olhar, estupefato, os olhos encheram de lágrimas. Desajeitadamente procurei fotografar a escultura, não consegui manobrar a câmera que quase despencou de minhas mãos. O coração aos pulos, a me sair pela boca. Mais lágrimas, desisti de fotografar, a respiração acelerada. Até que aos poucos – não posso afirmar quanto tempo aquela agitação interior durou – fui me acalmando, sequei os olhos, respirei fundo, e agora, com tranquilidade, pude ver. 
            Penso que a Capela Sistina, no Vaticano, e o David, de Michelangelo sejam as duas maiores expressões artísticas já criadas pelo ser humano. Devo acrescentar a Nona Sinfonia de Beethoven? E as Suítes para Violoncelo de Bach?”

            Agora não foram palmas, foi uma verdadeira ovação, com Hip! Urras! e tudo, mais um pouco Josíres teria sido carregado nos braços da plateia. Tobias também aplaude, e em seguida lê crônica que reputa exemplar, de autoria de um amigo dele, poeta e escritor, de nome Paulo S. Viana, intitulada Alento:
            

“Não falta violência, crueldade e grosseria no noticiário diário. Assim é o mundo, diz o conformado leitor.
No entanto, de tempos em tempos, surgem nas páginas dos jornais ilhas de alento. Tal foi a bela notícia sobre o resgate de Ramba, a elefanta. Por iniciativa de gente boa, e após burocráticos entendimentos entre os respectivos governos, viajou de avião por 3 horas, de Santiago do Chile  a Viracopos, em Campinas,  o bichão de 3,6 toneladas, dentro de uma caixa de 5 metros de altura, 3 de comprimento, 2 de largura e 5 toneladas de peso. Com toda a delicadeza, permitiram que Ramba, durante 40 dias, se acostumasse à estreiteza do transporte. Nem foi necessário sedá-la. Um veterinário a acompanhou e um caminhão a levou até o Santuário dos Elefantes Brasil, em Mato Grosso, escoltado pela Polícia Rodoviária. Todo o transporte custou 600.000 reais, obtidos por doações. Não é bonito?
Ramba, de 53 anos, é uma idosa com marcas de maus tratos, em circo: cicatrizes de correntes e doença renal. O que não a impede de ser mansa e afável. Agora poderá viver nos extensos campos que merece, na companhia de alguns outros da sua espécie, bem longe de humanos. 
Um amigo amargurado comentou: há muita criança passando fome no mundo. É verdade. 
Mas eu não consigo deixar de me emocionar com o resgate de Ramba.”

            O grupo, admirado com a refinada escrita do autor, torna a aplaudir. Ana Paula, verdadeiro espírito de porco, muxoxa entredentes, Gostei mais da crônica do Josíres, o que provoca pela primeira vez na oficina ruidosa e interminável vaia, a exigir de Tobias reprimenda a todo o grupo, Aqui há liberdade de expressão, todos têm o direito de manifestar seus pontos de vista e os demais devem ouvir com respeito, ao que Moisés (não o amigo do Tobias, Rei do Microconto, mas um membro do grupo que ainda não havia se manifestado, estudante de Filosofia na USP) replica, Professor, vaia é também forma de expressão... A verdade é que ninguém aguenta mais a tal de Ana Paula.
            Troquem seus textos entre si e me tragam amanhã com a devida crítica, por escrito, pede Tobias, satisfeito com o encontro.
            Para amanhã o tema é a Carta. Escolham um colega do grupo para lhe escrever uma carta.
Senhores, tenham uma boa tarde. 
(Josíres, encantado com o sucesso de seu texto, convida a todos para o almoço, Mas cada um paga o seu, tá!, meus amores! Ana Paula não foi.)




            

quinta-feira, 4 de junho de 2020

Oficina do Tobias IX

Folhetim


Nono encontro


Para surpresa geral, é Suzete quem inicia o nono encontro da oficina com verdadeira aula sobre o haicai! 

“Duas exigências faziam parte da construção do haicai original, nascido no Japão: a natureza como tema e a ausência de rima. As variações quanto ao número de versos e sílabas foram constantes ao longo dos séculos – o waka, com versos de 5 e 7 sílabas, surgiu no século VII d.C., até que se chegou à clássica estrutura de 5 - 7 - 5 versos.
            Exemplo do haicai clássico do mestre Basho:

velho lago
mergulha a rã
fragor d’água

            Nos anos 40, no Brasil, Guilherme de Almeida introduziu engenhosa organização no haicai através da rima entre o primeiro e terceiro versos, além de uma rima interna no segundo verso, entre a segunda e sétima sílabas. O seguinte esquema torna mais fácil a compreensão desta estrutura:

_ _ _ _ x
_ y _ _ _ _ y
_ _ _ _ x
            
            Eis um belo haicai do poeta paulista (Campinas -1890, São Paulo - 1969):

O ar. A folha. A fuga.
No lago, um círculo vago.
No rosto, uma ruga.

            A partir de 1980 o haicai ganha reputação de poesia séria, influenciada ainda pelos modernistas, com enorme contribuição de Paulo Leminski (Curitiba, 1944 - Curitiba, 1989). A forma já não importa tanto, perde-se a rigidez, a natureza não se constitui no único tema, a banalidade do cotidiano entra no haicai, embora os três versos estejam presentes na maioria deles. A rima, quando existente, em geral permanece entre o primeiro e terceiro versos. Haicai de Leminski:

verde a árvore caída
vira amarelo
a última vez na vida

            Forma e rima variam tremendamente nos haicais de Carlos Drummond de Andrade (Itabira, 1902 - Rio, 1987):

E se Deus é canhoto
e criou com a mão esquerda?
Isso explica, talvez, as coisas deste mundo.

            Poucos autores, nos dias de hoje, têm se dedicado com tanto afinco à difusão do  haicai quanto a curitibana Alice Ruiz (1946). Também ela não abandona completamente a rima:

nesse país em greve
só o relógio
faz o que deve

Termino por aqui. Obrigada.”

Nem é preciso dizer que Suzete é aplaudidíssima. Que aula! Que didática! A palavra franqueada, Ana Paula, direta, em tom agressivo, pergunta qual a importância de se discutir o Haicai na oficina, Desenvolver a sensibilidade, responde Tobias, curto e grosso, e encerra o assunto. (Também é aplaudido; parece que o grupo decide mesmo usar as palmas para manifestar com frequência suas preferências.)
Tina, moradora de bela chácara, arrisca seu haicai:

jabuticabeira
flores e abelhas
vida no jardim

            
            João, 23, estudante de Farmácia no Rio de Janeiro, que ainda não havia aparecido, mostra seu poema:

alheias à vida
borboletas no jardim
novocolorido

            Sucedem-se as apresentações, quase todos ávidos por mostrar seus poemas, desinibidos, alegres, fazem e recebem as críticas com entusiasmo. Tobias, também satisfeito, encerra o encontro anunciando o tema do dia seguinte: a Crônica.

quarta-feira, 3 de junho de 2020

Oficina do Tobias VIII

Folhetim


Oitavo encontro


Homem, 32, desempregado, joga videogame numa lan house, sem parar nem para comer. Após 3 dias é encontrado morto, debruçado sobre o teclado. 
            
De onde se conclui que não se deve passar muitas horas em frente ao computador, isso pode ser mortal. Daí a relevância do microconto: rápido, rasteiro, no canto em que o goleiro não está, e zapt! a história está contada!
Afinal, o que é um microconto? Alguns o chamam de miniconto, ou até de nanoconto; não há uniformidade de regras, a não ser aquela imposta pelo Twitter, que o limita a 140 toques. Quando surgem concursos de melhores microcontos, os organizadores estabelecem as regras, limitando o número de toques, letras ou palavras.  O que não faz diferença alguma, pois os teóricos (ainda) não o reconhecem como gênero literário. O Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, da Academia Brasileira de Letras, nem mesmo registra o vocábulo microconto.
Os aficionados não cansam de enaltecer o que chamam de o mais famoso microconto do mundo, de autoria de Augusto Monterroso:

“Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá.”

Tão surpreendente quanto este “dinossauro”, ou ainda melhor, é o microconto de Manoel de Barros; reconheço que sou o primeiro e único a classificá-lo como tal, pois faz parte de livro de poemas (Poesia completa, Leya, 2010, p. 222), e não de contos:

“Ovo de lobisomem não tem gema.”

            Através destes dois exemplos – ainda em busca de uma definição –, podemos concluir que o microconto, muito mais que contar uma história, ele sugere uma história, e deixa que o leitor a complete.
            Franz Kafka escreveu em seu diário, em 6 de dezembro de 1922, o microconto perfeito:

"Duas crianças, sozinhas no apartamento,
entraram numa grande mala, 
a tampa fechou-se, não a conseguiram abrir
e morreram asfixiadas."

            Mais uma definição de microconto: a arte de cortar palavras. O exercício propicia o desenvolvimento da concisão. Nossos políticos bem que poderiam cultivá-lo, como antídoto para a prolixidade que os caracteriza. Filósofos e psicanalistas lacanianos também.

***
            
O texto acima foi distribuído aos participantes da oficina por Tobias. Pediu que o lessem com calma, em casa, e pensassem sobre o assunto. Em seguida, passou a ouvir a produção do grupo. 
Thiago, fisioterapeuta, surpreende a todos, provoca risos e deixa Tobias intrigado:

“Matriculou-se na oficina literária para se tornar um escritor. Virou crítico literário.”

            Onde aprendeu a escrever microcontos, Thiago, pergunta Lúcia perplexa, 20 anos, estudante de Letras, pois ela mesma sentiu enorme dificuldade para criar algum. Tem gente que nasce sabendo, sapecou Tobias, tenho uma amigo de nome Moisés, médico, que é especialista em doença dos olhos e microcontos. Desde a primeira vez que lhe sugeri escrever microcontos, a produção dele foi espantosa. Cito aqui apenas um exemplo:

“Estamos sós

Justamente agora que as câmeras estão por toda parte, os discos voadores resolveram abandonar a Terra.”

Espocaram aplausos em homenagem ao Moisés! Sucedem-se as apresentações, algumas boas, outras nem tanto, Tobias certo de que eles pegaram o espírito da coisa. E encara o grupo com uma boa frase,  É preciso ter amor às palavras.
Senhores, para amanhã estudem Haicais, tragam seus próprios haicais. Boa tarde a todos.

terça-feira, 2 de junho de 2020

Oficina do Tobias VII

Folhetim

Sétimo encontro


Alcides, médico nos seus 50 anos, residente em São Paulo, afirma: Escrevo para esquecer. 

“Vida de médico nesta cidade me massacra. Então arranjo tempinho, tarde da noite, para escrever e entrar em outro mundo, quando experimento o fluxo de pensamento sem saber onde meu texto vai parar, especialmente quando reconheço minha própria dor, e só de reconhecê-la ajuda muito, me interessa pensar minha dor e perceber que não morro por isso, essa dor não me mata, e posso continuar pensando e se pudesse exprimir com arte o que penso poderia me tornar um escritor, aí reside o pulo do gato, escrever com arte, então meu lema anterior cai por terra (escrever para esquecer), melhor ESCREVER PARA CRESCER, para expandir minha capacidade de pensar, pensar criativamente, tudo muito bonito no papel, porém se o tolerante leitor puder reconhecer o tanto de ficção que existe no meu texto há de intuir a loucura que é a vida de médico numa cidade como esta, uma pessoa atormentada capaz de suicidar-se ou cometer um crime de sangue, um assassinato seguido de esquartejamento, os pedaços enfiados em duas malas grandes, quem sabe surge um conto policial onde o médico está acima de qualquer suspeita e o porteiro do edifício está enrascado, coitado, até que surge a bela detetive de longas pernas de nome Moema, olhos verdes, belos seios, começa a me fazer perguntas retas, ofereço respostas tortas, mulher desconfiada, esse batom vermelho na boca carnuda a me intimidar, até que ela descobre que tudo não passa de delírio meu, as malas estão vazias, convido-a para tomar um drinque que essa vida de médico na Capital eu não aguento mais, e ela aceita.”

            Alcides traz o texto impresso, submete-o à apreciação do grupo. A discussão transcorre animada, alguns gostam, outros nem tanto, Vale como exercício, dizem muitos. Tobias feliz com o andamento da oficina. Ele não pretende que alguém se torne um escritor. Não é assim que se faz um escritor. Ele deseja que todos escrevam, Escrever faz bem à saúde, ele gosta de dizer. 
            Tobias confessa a si mesmo que não para de pensar nas palavras de Moema – Se escrever vou me revelar. Pensa consigo mesmo que Alcides, como talvez quase toda a turma, ainda pense nas palavras de Moema. Tanto que ela acaba entrando na escrita de Alcides, na figura de sedutora detetive. Dá o que pensar. Agora é ela quem vai decifrar o delírio de Alcides! Alcides se revela.
            A história mexe com a cabeça do grupo. Instiga. Provoca. Excita. A discussão torna-se ainda mais animada. Gente que ainda não havia se manifestado, Clara, Solange, Tomás, agora todos falam ao mesmo tempo, entusiasmados com o reaparecimento da detetive Moema! Isso dá uma ótima história, afirma Fernando, jornalista responsável pela sessão de crimes – ou de sangue – em jornal sensacionalista.
              Desejo destacar apenas um aspecto interessante: Alcides mudou de “lema” durante a própria escrita, passou de escrever para esquecer a escrever para crescer. Ele teve um insight ao escrever. Chamo isso de escrita terapêutica.             
               Ao meio-dia Tobias encerra os trabalhos, Para amanhã, tragam microcontos, com até 140 toques. Estudem o assunto.
            Senhores, tenham uma boa tarde.

sábado, 30 de maio de 2020

Oficina do Tobias VI

Folhetim

Sexto encontro

Não há aprendizado sem avaliação, afirmou Paulo Freire, o grande educador brasileiro, assim Tobias deu início aos trabalhos do dia.
            Tenho lido com cuidado todos os textos que os senhores me entregam a cada oficina, faço as observações que julgo pertinentes e os devolvo, e agora é o momento de ouvi-los a respeito do que temos produzido até agora. Saibam os senhores, já fui professor do ensino secundário, no ginásio, como se dizia antigamente, e sei por experiência própria que os alunos não gostam de avaliações, mas como não há alunos nem professores por aqui, vamos a elas.
            Meu nome é Solange, sou de Taubaté, Vale do Paraíba, mãe de dois filhos pequenos, tenho apenas o Curso Normal, sou professora primária. Escrevo em meus cadernos, à noite, quando as crianças e o marido estão dormindo. O desejo de escrever vem então muito forte, mas nem sempre tenho boas ideias. Por isso me impressionou muito o que ocorreu com a moça chamada Moema. Queria conversar um pouco sobre isso. Será que também tenho medo de me revelar?
            Por falar nisso, Tobias, você bem que poderia ter dado uma segunda chance a Moema, mas penso que, quem não deseja se revelar não pode nem abrir a boca; melhor fazer uma psicanálise, replicou Josíres. (Riso geral, como sempre.) Tobias gostou da sugestão da psicanálise e rematou, Mesmo porque a escrita pode ser terapêutica, mas a Oficina não, daí a única obrigação imposta ao grupo, a de escrever, uma linha que seja. Se não pode fazer isso...
            Diógenes, 30, cuiabano, professor de curso secundário, pede a palavra, Tobias, você criticou meu texto pelo uso excessivo de frases curtas. Então resolvi trazer, para a apreciação da classe, o primeiro parágrafo do conto Gato na chuva, de Ernest Hemingway. Com o endereço para quem se interessar em ler o conto todo: http://www.triboletras.com/2017/07/gato-na-chuva-hemingway.html?m=1. Agradeço a Alberto por tê-lo impresso.

“Havia apenas dois americanos no hotel. Eles não conheciam nenhuma das pessoas por quais passaram na escada à caminho de seu quarto. O quarto ficava no segundo andar, de frente para o mar. Também ficava de frente ao jardim público e ao monumento de guerra. Havia palmeiras e bancos verdes no jardim público. Quando o tempo está bom, há sempre algum artista com seu cavalete. Os artistas gostavam de como as palmeiras cresciam e brilhavam as cores que o hotel tinha de frente ao jardim e ao mar. Os italianos vinham de um longo caminho para ver o monumento de guerra. Era feito de bronze e relanceava na chuva. Estava chovendo. A chuva caía das palmeiras, das árvores. A água se amontoava em piscinas no caminho pavimentado. O mar se quebrava numa linha extensa na chuva, voltava para a praia e subia novamente para se quebrar numa linha extensa na chuva. Os motores dos carros já haviam partido da praça do monumento de guerra. De frente à praça, na entrada da porta, um garçom observava a praça vazia.”

            Josíres foi o primeiro a se manifestar, Tenho óóódio! (Gargalhada geral.) Tobias fez uma rápida votação, Quem gostou levanta a mão! Metade da turma gostou, metade não gostou. Tobias parece que já esperava por isto, ele tem experiência. Aproveita e  dá uma aula, Hemingway (1899-1961) é escritor de grande importância, Nobel de Literatura, ganhador do Pulitzer, sofreu grande influência da cultura espanhola ao lutar na Guerra Civil Espanhola (1936-1939), daí seu magnífico romance Por quem os sinos dobram. O valor dele é inquestionável.
            Vejamos agora, continuou Tobias, o primeiro parágrafo do monumental Inferno Provisório, do nosso Luiz Ruffato (1961-), natural de Cataguases:

“André, André pequeno, Andrezim, parto difícil, até o último suspiro a tia Maria Zoccoli suava ao lembrar: dos que chegaram pelas suas mãos e vingaram, o pior, nasceu sentado, embora doessem-lhe quantos inascidos!, abortos horrendos, monstros, anjinhos semeando o lado de trás, o das bananeiras, das casas das fazendolas nos derredores de Rodeiro, quantos! Andrezim não, vicejou, quase afatigando de vez a Micheletta velha, mulher efêmera, sempre dessangrada, azul-clara de tanta brancura, atrofiada na cama, doente todo ano, embarrigada, esvaindo a mocidade pelos baixios, vinte anos de gravidezes, um estupor, treze rebentos – oito filhas-mulheres –, espigados, cabelos de algodão tão louros, bochechas avermelhadas engordando vestidos de bolinhas, caras apimentadas enchendo calções esgarçados.”

            Senhores, não há certo nem errado no que estamos discutindo. Pão ou pães é questão de opiniães, escreveu nosso Rosa. É mais fácil escrever com frases curtas, há menos chance de errar, assim ensinam todas as oficinas de escrita, exceto a minha: peço que façam o exercício de escrever com frases longas, com fluência, ao sabor do inconsciente. Quando aprenderem – alguns aqui já o fazem –, então poderão escrever facilmente com as curtinhas. Deixo aos senhores a escolha.
            Amanhã continuaremos com as avaliações. Boa tarde a todos.

quarta-feira, 27 de maio de 2020

Oficina do Tobias V

Folhetim

Quinto encontro

“Sempre pensei que pudesse aprender a escrever apenas lendo os clássicos. A ideia de aprender com os iguais foi a grande revelação desta oficina.”

Quem inicia a apresentação do quinto encontro da Oficina do Tobias é Leontina, que prefere ser chamada de Tina, 76 anos de idade, natural e residente em Guaratinguetá, SP, mulher de fibra, mãe de cinco meninos levados na infância, agora adultos, um deles professor de renome na USP, engenheiro elétrico, eu acho, ela desde sempre mulher independente, de ideias próprias, amiga dos velhos tempos de Tobias, que colocou-a no grupo sem que precisasse de disputar a inscrição de madrugada, portanto sem passar pelo processo de seleção. Tina continua:

“Tenho 76 anos e estou cansada de leituras, a cabeça cheia, acho que chegou o tempo de escrever. Não se trata de livro de memórias, nada disso, é apenas a vontade de relembrar o tempo vivido, mas com os pés no presente. Contar casos. Rir dos erros do passado, porque como diz o poeta, “fiz o que pude”. Agora resta apenas rir do passado.
Voltemos à escrita; quando ouvimos o discurso de um sabichão, desses escritores famosos que vivem dando aulas em oficinas, em grupos de leitura, até na televisão, pouco aprendemos com eles, aturdidos que ficamos com a desenvoltura deles, com o tamanho do ego deles, e nada ou quase nada apreendemos; não temos tempo nem de pensar.
Aqui não. Podemos prestar atenção nos erros e acertos dos colegas, todos (ou quase todos) entusiasmados, podemos criticar à vontade e receber críticas à vontade, temos tempo para pensar. Assim aprendemos. A partir de então, podemos voltar aos clássicos.
Escrevo esse pequeno texto com total liberdade de expressão. O professor – sei que ele não gosta de ser chamado de professor, mas Tobias é um professor – permanece calado a maior parte do tempo, ele não nos interrompe, nunca pretende estabelecer o que é certo e o que é errado, nunca impõe a última palavra, assim aprendemos cada qual a sua maneira.
Escrever para mim tornou-se um terapia..."

            Tina continuou lendo seu texto por mais algum tempo e quando terminou os aplausos nunca foram tão sinceros e emocionados. Puxa vida, que mulher cheia de vida aos 76 anos de idade! André, 30, também residente em Guará, advogado, acrescentou, Pena que Tina não contou a vocês que é conhecida em toda a cidade, desde mocinha, por andar sempre de bicicleta, onde quer que vá! Aquilo despertava a maledicência das mulheres da cidade interiorana, preconceituosa, hipócrita, invejosa da independência intelectual de Tina. Lembro-me claramente desses acontecimentos porque minha mãe tinha alguma participação neles; ela definia as atitudes de Tina como “mania de originalidade”. Pura inveja.
            Tobias levantou-se e dirigindo-se à classe perguntou, Quem é a professora aqui? ...ao que todos responderam em uníssono, É a Tina é a Tina é a Tina, ao som de mais palmas! Beatriz, a mais nova da turma, apenas 18 anos, cursando o primeiro semestre de Jornalismo em Jundiaí, SP, fez interessante observação, Vejam meus colegas, não há problema em se revelar, não há como não se revelar ao escrever, isso significa repartir experiências, de modo claro, se possível, e organizado, pois escrever implica em organizar o pensamento.
            Esse era o gancho que Tobias precisava para convidar Moema, que permanecia calada ao fundo da sala, a ler o texto dela. Moema, por favor. Nada escrevi, e sei que este é meu último dia na oficina, murmura Moema, completamente arrasada.
Mais uma vez o silêncio, agora acompanhado de certo constrangimento, toma conta do grupo. Tobias acrescenta, Lamento, fica talvez para uma próxima oportunidade. E informa, Senhores, os dois próximos encontros serão de avaliação sobre o que produzimos até agora. Tragam suas críticas e observações por escrito, por favor. E tenham uma boa tarde.
            Ao contrário do encontro anterior, saem todos cabisbaixos.