Acontece com quem ama a Literatura: do mesmo modo que
um assunto puxa outro, quem conta um conto aumenta um ponto, um livro puxa
outro. Talvez seja isso, e mais um bocado de teoria, que os entendidos chamam
de Literatura Comparada.
Em
excelente crônica no suplemento Eu &
Fim de Semana, do Valor Econômico (13/11), a competentíssima Eliana
Cardoso, economista, escritora, especialista em Literatura Comparada, rendeu homenagem
aos 100 anos de A Metamorfose, de
Kafka.
Depois
de brilhar com a própria análise do livro, Eliana cita Nabokov, que compara o
texto de Kafka a dois outros, o romance O
médico e o monstro, de Robert Louis Stevenson, e o conto O capote, de Nikolai Gógol. Nabokov
coloca o romance de Stevenson um degrau abaixo das duas outras obras, porque “...lhe
falta unidade entre o personagem central e o cenário que o cerca”.
Como
não havia lido o conto de Gógol (a santa ignorância de sempre!), corri atrás da
ótima publicação da Editora 34, O capote
e outras histórias (2011, 2a edição), com primorosa tradução de
Paulo Bezerra.
O
conto é mesmo ótimo! Mas como um livro puxa outro, ao término da leitura, o que
me veio à mente, eu que nada entendo de Literatura Comparada, não foram Kafka e
Stevenson. Quem me apareceu subitamente e sem aviso prévio foi o Fantasma, pai
de Hamlet, que abre a tragédia de Shakespeare!
Em
meu fraco ponto de vista, o mesmo recurso utilizado por Shakespeare para
introduzir a trama hamletiana foi utilizado por Gógol para finalizar seu conto:
a intervenção de um Fantasma.
Em
ambos os textos os fantasmas são reais, muito reais. O de Shakespeare apareceu
primeiro a Marcelo, Bernardo e Horácio (para não deixar dúvida quanto a sua
existência, e não apenas uma alucinação de Hamlet, sabidamente não muito bom da
cuca), companheiros de Hamlet, e em seguida a ele próprio, com quem conversou
longamente (na bela tradução de Bárbara Heliodora, Teatro completo, Ed. Nova
Aguilar, 2009):
Fantasma:
“Sou
o espectro de teu pai;
Condenado
a vagar durante a noite,
Preso
ao fogo, até que este consuma
E
purifique as faltas criminosas
Que
cometi em vida. Mas proibido
De
contar os segredos de meu cárcere,
Pois
se os narrasse, a mínima palavra
Cortaria
tu’alma e gelaria
O
próprio sangue jovem do teu corpo;
Faria
teus dois olhos, como estrelas,
Saltar
das órbitas, e os teus cabelos
Eriçarem-se
rijos, como as cerdas
Se
eriçam no irritado porco-espinho.
Aos
ouvidos humanos. Ouve! Escuta!
Ouve!
Se amaste um dia um pai querido...”
Hamlet:
“Oh,
Deus!”
Fantasma:
“Vinga
a sua alma e o seu assassinato!”
O
Fantasma de Gógol apareceu a uma cidade inteira! Diante de um personagem que o
autor chama ironicamente de “figurão”, eis a cena:
“Mas
o pavor do nosso figurão ultrapassou
todos os limites quando viu o morto entortar a boca e, exalando pavorosamente
sobre ele o cheiro de sepultura, pronunciar essas palavras:
– Ah!
até que enfim! Até que enfim vou te... aquilo... te agarrei pela gola! É do teu
capote mesmo que estou precisando! Não intercedeste para encontrar o meu e
ainda me repreendeste – então agora me dá o teu!
O
pobre figurão por pouco não morreu.”
Nada
mais real que um bafo de fantasma, bafo de sepultura!
Pois é assim que um livro puxa outro,
que puxa outro (o bafo do Fantasma de Gógol lembrou-me o bafo de cebola do
delegado, em O ano da morte de Ricardo
Reis, de José Saramago, Companhia das Letras, 1988), até voltar ao primeiro
livro, no caso em questão, A Metamorfose.
Nabokov,
ainda segundo Eliana Cardoso, afirma com inteira propriedade:
“Gregor
é um ser humano em disfarce de inseto; sua família é composta de insetos
disfarçados de seres humanos.”
Viva
a Literatura!