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sábado, 8 de outubro de 2022

NOBEL DE LITERATURA 2022


    Neste ano de 2022 o prêmio Nobel de Literatura foi concedido à escritora francesa Annie Ernaux de quem tive conhecimento pouco tempo faz. E ainda que não tenha lido nenhum livro seu já me sinto muito interessada no que ela tem a dizer após ter assistido há algumas semanas o filme baseado em sua obra "L'evenement" disponível por aqui com o título "O acontecimento". Ela narra no livro que deu origem ao filme a saga de uma jovem mulher, no caso ela própria, que na década de  60 estuda  literatura para se tornar não professora como é esperado então, e sim escritora, e no entanto tem seus sonhos paralisados quando se vê às voltas com uma gravidez indesejada. No filme com  muita economia de sentimentalismos é impossível não se angustiar com a difícil jornada frente ao preconceito do meio  que a segrega e a muralha de regramento fundamentalmente machista que a impede de fazer um aborto. Em que pese a discordância de tantos em relação ao tema, não podemos ignorar a necessidade de olhar de perto o problema. E é isso que para mim o filme consegue fazer graças à escrita autobiográfica  dessa  autora nascida em 1940 na Normandia e a primeira  mulher  francesa a receber o Nobel de Literatura.
    Podemos entender o que ela defende quando no filme ao ser questionada por um professor a respeito da causa de seus repentinos insucessos escolares: "Você está doente?", "Tenho uma doença que só as mulheres tem e que as transforma em donas de casa." Annie Ernaux é feminista. Sua obra é construída sobre sua biografia, vinda de uma família modesta estuda com dificuldade encom sua arte ao dizer  "eu" está a falar de experiências comuns. Annie Ernaux pertence à categoria de mulheres muito necessárias nesse momento em que o conservadorismo tenta se apoderar de comportamentos, ideias e escolhas dos indivíduos. Seu livro mais recomendado é "Les années"  ("Os anos") de 2008 disponível no Brasil pela editora Fósforo.
    Recomendo muito o filme "O acontecimento" na HBO MAX.

domingo, 26 de junho de 2022

A vírgula e o buraco negro

Após longo período de silêncio sinto irresistível vontade de escrever. É que a cabeça anda vazia, os miolos consumidos pela doença, e desse oco não pode sair nada mesmo. Minha cabeça virou um buraco negro.

            Mas o desejo de escrever persiste, forte, autoritário, uma necessidade, ou mais que isso, uma ordem. Mas as ideias? Rosa Montero vem em meu socorro com seu novo livro A Boa sorte (Todavia, 2022). Meu improvável leitor não espere texto crítico sério, qualquer consideração literária de peso, mesmo porque a autora é das melhores que há nesta quadra, dona de escrita contemporânea privilegiada, livre de ranços e passadismos. (Se é para escrever puta, ela escreve puta.) Quase perfeita!

            Eu desejo apenas tocar num assunto do qual tenho me ocupado por longo tempo: o problema da vírgula. Que eu saiba, apenas Marcel Proust soube utilizar a vírgula com propriedade. Nem Machado, ouso dizer. (Isso veio do buraco negro.)

            Não sei por quanto tempo vou aguentar sentado diante do computador. Passemos sem perda de tempo à frase de Montero, à página 12.

 

“A maioria das lojas está fechada, e o fechamento deve ter ocorrido noutra era geológica.”

 

            Frase perfeita, dirão os leitores normais. Simples, clara, com arremate cheio de humor. De fato, não se pode apontar erro de qualquer espécie. Pergunto eu: para que essa vírgula? Peço que o leitor leia em voz alta a alternativa que ofereço:

 

“A maioria das lojas está fechada e o fechamento deve ter ocorrido noutra era geológica.”

 

            A ideia da autora é que a maioria das lojas está fechada há muito tempo. (Pois faz muito tempo que o povoado entrou em franca decadência.) A ideia é una, indivisível, o que vem depois da vírgula é inseparável daquilo que vem antes. A quebra da ideia por uma vírgula desnecessária enfraquece a frase. Não está errado, mas a ideia perde força. E uma ótima escritora deve manter a força de suas ideias e de sua escrita, se possível durante todo o livro.

 

            Tenho perfeita consciência da insignificância do texto acima, a não ser para os obcecados pela vírgula, como eu. Mas era tanta minha vontade de escrever! (Outra vez a Escrita Terapêutica.) De uma cabeça vazia, o que mais poderia sair? Apenas uma vírgula.

            Dois últimos comentários. Ao chegar à página 50, do total de 250, estou encantado com o livro. Ótima literatura, com destaque para a vívida construção e apresentação das personagens. Acho que vai continuar bom até o fim. Rosa Montero é uma craque; o leitor não perca seu livro anterior: A ridícula ideia de nunca mais te ver. (Alguém pode perguntar: se a leitura estava tão interessante, por que interrompê-la para escrever essa bobagem sobre uma ínfima vírgula?  Minha resposta é que UMA VÍRGULA É UMA VÍRGULA, É UMA VÍRGULA, É UMA VÍRGULA.)

            O segundo comentário refere-se à capa do livro. Poucas vezes vi coisa tão horrorosa. Portando, meu conselho é: não deixe de comprar um livro por causa da capa.

 

quarta-feira, 27 de abril de 2022

A educação de Montaigne




Michel de Montaigne 


 

O caderno Ilustríssima, da Folha de S. Paulo publicou no último fim de semana (23 abr 2022) texto reproduzindo a aula magna proferida pelo empresário Luiz Frias, Publisher da Folha, no último 7 de abril, Dia do Jornalista, na Faap. A aula é magnífica, mas destaco aqui apenas o trecho em que Frias fala da educação recebida por Montaigne. O tema há de interessar a todos nós.

 

“Planejei comentar três sugestões/palpites práticos para a formação de futuros jornalistas e profissionais de mídia e comunicações e terminar com algumas considerações sobre tecnologia, a abundância e a disponibilidade de informações propiciadas pela rede, algumas palavras sobre fake news e sobre a importância do jornalismo profissional daqui para a frente.

Gostaria de começar falando um pouco sobre Montaigne. Não a avenida luxuosa e famosa de Paris, mas o pensador renascentista francês Michel de Montaigne. Ele nasceu em 1533 e morreu em 1592, vivendo, portanto, 59 anos. Sua existência transcorre no auge do Renascimento e num mundo recém-transformado pelas grandes navegações e pelo descobrimento das Américas.

Como referência, Montaigne estava a dez dias de completar 31 anos quando Michelangelo Buonarroti morreu. E nasceu quase 14 e 13 anos após as mortes de Leonardo da Vinci e Raphael (Sanzio), o pintor, respectivamente. Teve grande influência sobre numerosos autores do Ocidente, como Shakespeare, Descartes, Voltaire, Darwin, Marx, Emerson, Foucault, Nietzsche e Freud, entre outros. De família próspera, seu avô fez fortuna como comerciante de arenque, e seu pai foi prefeito de Bordeaux.

Mas o que gostaria de destacar é a educação sui generis de Montaigne, planejada e executada em detalhe por seu pai. Logo que nasce, é levado para uma pequena cabana, onde vive seus primeiros três anos exclusivamente na companhia de uma humilde família camponesa, de modo a, nas próprias palavras de Montaigne, "atrair o menino para perto das pessoas, e das condições de vida dessas pessoas, que necessitam de nossa ajuda".

Após esses três primeiros anos de vida espartana, Montaigne é levado de volta para o château do pai. Dos 3 aos 6 anos, a educação do menino é atribuída a um tutor alemão, especialmente contratado pelo pai, um doutor que não falava uma palavra em francês, mas fluente em latim, com o objetivo de fazer dessa língua seu primeiro idioma.

O pai também admitiu outros dois auxiliares que falavam latim, com ordens estritas para apenas se dirigirem à criança nessa língua. A mesma regra era respeitada pelos pais da criança e pelos funcionários que ali trabalhavam. Só a partir dos 6 anos é que Montaigne começa a falar e estudar o francês.

Outra curiosidade engendrada pelo pai foi acordar a criança todos os dias com música tocada ao vivo. Diz Montaigne no ensaio "Sobre a Educação das Crianças": "Quanto ao grego, meu pai tencionou que eu o aprendesse metodicamente. Mas de um jeito novo, de forma de brincadeira. Ele fora aconselhado a me fazer apreciar a ciência, mas sem forçar minha vontade, meu desejo; e a educar minha alma com doçura e liberdade, sem rigor nem coação. Alguns pretendem acordar crianças de manhã aos sobressaltos e com violência perturbar seu tenro miolo, meu pai chegou a mandar me acordar ao som de um instrumento, e nunca fiquei sem alguém que me prestasse esse serviço".

Ter como primeira língua o latim facilitou a Montaigne, leitor voraz, ler os clássicos gregos e romanos e colocou a sua disposição a maior biblioteca disponível na época. E nos leva a especular se Montaigne, sem essa peculiar formação, poderia ter escrito os "Ensaios", sua única obra, de três volumes e aproximadamente mil páginas.

Aos 38 anos (lembrando que naquela época poucos ultrapassavam os 40), resolve afastar-se de seus compromissos públicos e delega a administração de seus bens a terceiros. Dentro de uma torre de sua propriedade no château que herdara do pai, Montaigne instala sua impressionante biblioteca e seu quarto. Ali trancado a maior parte do tempo, dedica seus últimos 20 anos de vida à leitura de livros e à redação dos ensaios.

"Nunca viajo sem livros, seja em tempos de paz ou de guerra. Livros, creio, são a melhor provisão que um homem pode levar na jornada de uma vida." Com essa frase de Montaigne, elenco minha primeira sugestão na formação de qualquer jovem e, em particular, daquele que almeja ser um jornalista ou trabalhar no mundo das comunicações. Leia muito. Leia tudo o que possa despertar seu interesse. Não há como aprender a escrever bem sem escrever, mas ler ajuda muito a escrever bem. Em mais de 40 anos nesse negócio, nunca vi ninguém escrever bem, com inteligência, clareza, objetividade e estilo, que não fosse um leitor compulsivo. Escreva sempre e muito, mas leia muito mais do que escreva.  (Grifo meu.)

E, se for em português, leia Machado de Assis, aconselhava Cláudio Abramo, grande jornalista brasileiro, talvez um dos mais influentes jornalistas, tanto na história da Folha como na do Estado de S. Paulo.”

 

            No início de século XVI, o pai de Montaigne sabia como educar uma criança. Os resultados comprovam a eficácia de seu método. E hoje, o que sabemos sobre isso? O que praticamos sobre isso? Vale a pena refletir.

 

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/04/apartidarismo-e-base-para-jornalismo-critico-e-independente-diz-publisher-da-folha.shtml

 

quinta-feira, 7 de abril de 2022

Homens sem mulheres

 


 

Há dois dias comentei nesse blog o filme Drive my car, dirigido por Ryusuke Hamaguchi, verdadeira obra prima, em meu ponto de vista.

http://loucoporcachorros.blogspot.com/2022/04/doraibu-mai-ka-ou-drive-my-car.html . Não estava claro para mim se o roteiro havia sido baseado em livro ou apenas em um conto de Haruki Murakami, renomado escritor japonês. Imediatamente após ver o filme, minha mulher encomendou Homens sem mulheres, de Murakami (1ª edição Objetiva, 2015; 6ª reimpressão, Alfaguara, 2022). 

            O livro – que chegou em dois dias – contém sete contos, dos quais destaco o primeiro, Drive my car, e o último, Homens sem mulheres. A escrita é agradável, fluente, correta, e prende a atenção do leitor. Logo no início da primeira história surge a contratação de uma motorista pela personagem principal. No filme, este tema é central, porém surge depois de acontecimentos decisivos para o desenrolar da trama. Posso dizer que diretor e roteirista encaixaram a história da motorista de maneira brilhante, a dar a impressão que esta surgiu em seguida ao drama principal. É a arte de escrever roteiros, aqui levada à perfeição!

            Eis pequena amostra de diálogo entre a motorista e o protagonista do conto – e do filme:

 

“– Que cruel.

– É, é uma ideia cruel.

– Como ele havia dormido com sua esposa, o senhor queria se vingar dele?

– Não é bem vingança – disse Kafuku. Mas eu não conseguia me esquecer desse fato. De jeito nenhum. Eu me esforcei muito para esquecer. Mas foi em vão. A imagem de minha mulher nos braços de outro homem não me saía da cabeça. Essa cena sempre voltava. Como se uma alma que não tinha para onde ir estivesse grudada no canto do teto, sempre me vigiando. Depois da morte da minha mulher, eu achava que esse sentimento desapareceria com o tempo. Mas não. Parece até que ficou mais forte. Precisava dar um jeito no que sentia. Para isso, eu precisava eliminar algo que era como uma ira que tinha dentro de mim.” (p.42)

 

            Este é o tema inicial do filme, seguido do aparecimento da motorista. O filme acrescenta sua dramática existência, com uma infância pobre de afeto, sem qualquer perspectiva de uma vida melhor.

 

            Tenho por hábito antigo ‘checar’ o conteúdo de livros e seus respectivos filmes. Ambos podem ser ótimos, como em O nome da rosa, obra de Humberto Eco. O livro pode ser bom e o filme ruim, o que ocorre na maioria das vezes. Ambos podem ser péssimos, como Perfume, história de um assassino. Às vezes o filme supera em muito o próprio livro; cito apenas dois exemplos: O carteiro e o poeta e Drive my car

            Literatura e Cinema formam em belo par na Arte contemporânea.

 

segunda-feira, 28 de março de 2022

Vendilhões do Templo segundo Saramago

 100 anos de José Saramago

 

O trecho a seguir, de autoria de José Saramago, está em O Evangelho segundo Jesus Cristo (Companhia das Letras, 1991, p. 425-426):

 

“Chegados às portas da cidade, logo se viu que maiores diferenças de variedade e número na multidão não as havia, e que, como de costume, iam ser precisos muito tempo e muita paciência para abrir caminho e chegar ao Templo. Não foi assim, contudo. O aspecto dos treze homens, quase todos descalços, com os seus grandes cajados, as barbas soltas, os pesados e escuros mantos sobre túnicas que pareciam terem visto o princípio do mundo, fazia afastar a gente amedrontada, perguntando uns aos outros, Quem são estes, quem é o que vai à frente, e não sabiam responder, até que um que tinha descido da Galileia disse, É Jesus de Nazaré, o que diz ser filho de Deus e faz milagres, E aonde vão, perguntava-se, e como a única maneira de o saberem era seguiram-nos, foram muitos atrás deles, de modo que ao chegarem à entrada do Templo, da parte de fora, não eram treze, mas mil, mas estes ficaram-se por ali, à espera de que os outros lhes satisfizessem a curiosidade. Foi Jesus para o lado onde estavam os cambistas e disse aos discípulos, Eis o que viemos fazer, acto contínuo começou a derrubar as mesas, empurrando e batendo a eito nos que compravam e vendiam, com o que se levantou ali um tumulto tal que não teria deixado ouvir as palavras que proferia se não se desse o estranho caso de soar a sua voz natural como um estentor de bronze, assim, Desta casa que deveria ser de oração para todos os povos, fizestes vós um covil de ladrões, e continuava a deitar as mesas abaixo, fazendo espalhar e saltar as moedas, com enorme gáudio de uns quantos dos mil que correram a colher aquele maná. Andavam os discípulos no mesmo trabalho, e por fim já os bancos de vendedores de pombas eram também atirados ao chão, e as pombas livres, voavam por sobre o Templo, rodopiando doidas, além, em redor do fumo do altar, onde não iriam ser queimadas porque havia chegado o seu salvador.” 

 

            O estilo é inconfundível, a agilidade com que as falas se sucedem é impressionante, isso é o melhor de Saramago. O tema, conhecidíssimo, é apropriado ao momento político que vivemos. Que eu saiba, este é o único momento em todo o Novo Testamento em que Jesus perde as estribeiras, deita fumo pelas orelhas, solta fogo pelas ventas, destrambelha, ensandece, descarrilha e desce o sarrafo nos que vendem e nos que compram, isso é muito importante!

            Vou desenhar, expressão em voga: O Templo é o nosso vilipendiado Ministério da Educação – casa destinada ao Ensino e à Cultura. Templo, porque de lá poderiam sair regras e normas capazes de salvar o Brasil – só a Educação salva um povo. 

            Os lobistas tomaram conta do Templo; barracas onde variados produtos de compra e venda se espalham por todo o ministério; negocia-se a peso de ouro, literalmente; os “pastores” exibem a sanha dos insaciáveis intermediários; o sumo sacerdote se esquiva de qualquer responsabilidade, diz que age a mando do presidente; desmente-se a si próprio no dia seguinte, estratégia para confundir, um tal de disse-não-disse que atordoa os de ouvidos moucos; são muitos os testemunhos de velhacaria; processos são abertos...

            

Deixemos a conclusão para José Saramago. Com a chegada de grande número de guardas do Templo, sob comando do sumo sacerdote, armados de espadas e lanças, os Treze ficaram em evidente desvantagem. Jesus adverte com sabedoria:

 

“Disse André para Jesus, que a seu lado brigava, Bem é que digas que vieste trazer a espada e não a paz, agora já sabemos que cajados não são espadas, e Jesus disse, No braço que brande o cajado e maneja a espada é que se vê a diferença, Que fazemos então, perguntou André, Tornemos a Betânia, respondeu Jesus, não é a espada que ainda nos falta, mas o braço.”

 

            Ao povo, falta-nos braço para brigar com os canalhas.

segunda-feira, 21 de março de 2022

Jargão ondiniano?

 



A crônica do erudito Mario Sergio Conti para a Folha, no último sábado, trata do novo livro de Roberto Pompeu de Toledo, O Espelho e a Mesa. “O livro traz as memórias de infância de, como ele se descreve, um "rapaz singelo", nascido em 1944: o autor.” Parece muito interessante.

Conti prossegue: “... o ser singelo pertence à classe média oriunda de migrações europeias. Mas foi essa gente dura e orgulhosa, provinciana e com fumos de cosmopolitas, que construiu as atitudes associadas à condição paulista — dos caipiras aos modernistas.”

E chega ao ponto em que provoca em mim enorme surpresa, uma grande descoberta: “O livro está cheio de expressões desse meio: há males que vem para bem, "bocca chiusa", o barato sai caro, bater perna, o que não tem remédio remediado está, USP, não se faz isso na mesa, revolução constitucionalista.”

            O cronista segue falando do livro e seu autor, eu estaquei por aqui.

            Há muitos anos que eu e meu irmão Paulo conversamos – e rimos muito – das expressões utilizadas por nossa mãe, já falecida. São incontáveis modos de falar, expressões que ouvimos desde a infância até a idade adulta, e que julgávamos fossem criadas por ela, uma espécie de jargão ondiniano, cheio de humor, às vezes ácido, provocador, absolutamente único e pessoal. 

            Agora encontro na crônica de Conti os mesmos termos por ela empregados, segundo ele provenientes da classe média oriunda de migrações europeias, ... essa gente dura e orgulhosa, provinciana e com fumos de cosmopolitas”. A descrição não podia ser melhor!

É a Dona Ondina falando! Mais importante do que isso, é este o ambiente em que fomos criados, eu e meu irmão Paulo, nascidos em 1947 e 1949, vivendo entre caipiras e modernistas. Vou ler o livro.

 

 

 

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/mariosergioconti/2022/03/roberto-pompeu-de-toledo-retrata-sao-paulo-de-novo-em-o-espelho-e-a-mesa.shtml

 

quinta-feira, 17 de março de 2022

A medalha

 


 

Assim tem início É isto um homem?, de Primo Levi (Ed. Rocco, 1988). Penso que ninguém descreveu com tanta perfeição o que se passou a denominar Processo de Desumanização, executado pelos nazistas em seus campos de concentração. Os alemães perceberam que era mais fácil matar um animal, ou mesmo uma coisa, do que matar um ser humano. O trauma (porque havia um trauma) era bem menor entre os próprios soldados alemães.

            A luta por um pedaço de pão levava aquele que desejava sobreviver a subtrair o pão de seu semelhante, mesmo que isso lhe causasse dor em si mesmo. Sobreviver a todo custo, esta era a ordem. E isso também fazia parte do Processo de Desumanização.

 

            Esta foi a associação de ideias que me ocorreu com a notícia de ontem. Bolsonaro e alguns de seus asseclas, incluindo o ministro da justiça que outorgou a honraria a si mesmo, foram condecorados com a medalha do mérito indigenista.

            Durante mais de dois anos ouvimos o presidente desmoralizar os povos indígenas, tentar apagar a cultura deles, apoiar a evangelização dos povos ainda isolados, desaparelhar a Funai, incentivar desmatamento e mineração em terras indígenas, acabar com a fiscalização de atos ilegais na Amazônia, a lista de ações nocivas destruidoras perversas contra a população indígena é interminável.

            A maioria do povo brasileiro não concorda com tais atitudes. Agora, quando o presidente recebe uma medalha de mérito indigenista, sinto como se ele gritasse na minha cara:

 

“Veja como você é um merda mesmo, como você não vale nada, como sua opinião não vale nada. Eu piso nos índios e ganho uma medalha!

Eu não reconheço qualquer sentimento em você. Não me interessa o que você pensa sobre minha medalha, se gostou ou não gostou. Eu gostei, vou ganhar votos com isso.

Se não reconheço sentimentos em você, acho que você não pertence a mesma raça que eu. Acho que você não é humano.

Se você, povo brasileiro, é não humano, posso mentir à vontade, posso desdizer amanhã o que disse ontem, posso criar historinhas para desviar sua atenção daquilo que realmente importa. 

Você, povo desumanizado, adora historinhas: é a força avassaladora do Mito sobre a manada.

Para você, basta um Mito. Quem não é homem não pensa, não tem capacidade de crítica, acredita em minha medalha. Aquele desumanizado, eu faço dele o que eu quero, e ele não reclama, até acha bom!

Povo de merda... Coisa de merda...”

 

            Por associação livre, estes foram os pensamentos e emoções despertados em mim, pela condecoração do presidente da república com a medalha do mérito indigenista. Ao terminar esse texto, posso pensar, estou certo de que não sou uma coisa. Eu sou um homem.

 


quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

Um pouco de teoria

100 anos de Semana de Arte Moderna

 



 

“Um pouco de teoria?

Acredito que o lirismo, nascido no

subconsciente, acrisolado num pensamento claro

ou confuso, cria frases que são versos inteiros,

sem prejuízo de medir tantas sílabas, com

acentuação determinada.

entroncamento é sueto para os condenados da

prisão alexandrina. Há porém raro exemplo dele

este livro. Uso de cachimbo...

 

A inspiração é fugaz, violenta. Qualquer

empecilho a perturba e mesmo emudece. Arte,

que, somada a Lirismo, dá Poesia, não

consiste em prejudicar a doida carreira do

estado lírico para avisá-lo das pedras e cercas

de arame no caminho. Deixe que tropece, caia

e se fira. Arte é montar mais tarde o poema de

repetições fastientas, de sentimentalidades

românticas, de pormenores inúteis ou

inexpressivos.”

 

            Mário de Andrade

            Pauliceia desvairada

            In Prefácio interessantíssimo, p. 39-40

            De Pauliceia desvairada a lira paulistana

            Ed. Martin Claret, 2016

 

 

domingo, 13 de fevereiro de 2022

O Retrato torto

Texto de Luiz Armando Bagolin, Professor do Instituto de Estudos Brasileiros da USP e curador da exposição "Era uma Vez o Moderno [1910-1944]", em cartaz no Centro Cultural Fiesp, em São Paulo.  Para a Folha de s. Paulo hoje.

 

          “Modernismo paulista decorrente da Semana de 22, liderado por filhos da aristocracia e burguesia, propôs uma atualização dos padrões estéticos que preservasse a cultura e a memória das elites, espécie de "ruptura negociada" em uma sociedade desigual. Críticas ao movimento centenário, contudo, não devem perder de vista um de seus grandes legados: a valorização da diversidade cultural e racial na formação do Brasil.

          “Em 27 de janeiro de 1922, no meio da madrugada, a cidade de São Paulo foi atingida por um forte tremor de terra. No dia seguinte, o jornal O Estado de S. Paulo dedicou uma página ao fenômeno, chamando a atenção para o fato de ter sido "o primeiro na capital (do Estado) de tal intensidade".

          “Dias depois, durante a abertura da Semana de Arte Moderna, realizada no Theatro Municipal de São Paulo, em 13 de fevereiro, Renata Crespi, uma alta dama da sociedade paulista, ciceroneada pelo escritor Menotti del Picchia, teria parado diante de uma pintura de Anita Malfatti e perguntado: "Não estaria torto aquele retrato?"

          "Menotti parou por um instante e respondeu, com fino humor, que não, pois o quadro havia sido realizado sob os efeitos do terremoto recém-ocorrido na cidade. O seu "estilo" era consequência das forças dinâmicas da natureza, o que causava as deformações justificáveis na pintura.”

          “Assim, em meio a ironias e paródias, se iniciava o movimento modernista brasileiro.”


          Acrescento eu: vale a pena lembrar o nome de Emílio de Menezes, mestre do trocadilho, dono de humor refinado, meu ídolo de infância! Em 22 de julho de 2014 este blog publicou: 

https://loucoporcachorros.blogspot.com/2014/07/o-trocadilho-nao-morreu-homenagem.html . 

          Vale a pena conferir. Emílio volta aqui, não pela Semana de Arte Moderna de 22, mas pela piada de Menotti dei Picchia!



https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/02/playboys-intelectuais-de-1922-lideraram-atualizacao-das-artes-negociada-com-elites.shtml

 

quinta-feira, 27 de janeiro de 2022

Dia Internacional em Memória às Vítimas do Holocausto

 



Nesta quinta-feira, 27 de janeiro, revivemos o Dia Internacional em Memória às Vítimas do Holocausto. Preservar esta memória é uma forma de evitar que aquela grande tragédia se repita.

            Em seu magnífico livro É isso um homem?, Primo Levi registrou:

 

 

“Fechem-se entre cercas de arame farpado milhares de indivíduos, diferentes quanto a idade, condição, origem, língua, cultura e hábitos, e ali submetam-nos a uma rotina constante, controlada, idêntica para todos e aquém de todas as necessidades; nenhum pesquisador poderia estabelecer um sistema mais rígido para verificar o que é congênito e o que é adquirido no comportamento do animal-homem frente à luta pela vida.

... Aqui a luta pela sobrevivência é sem remissão, porque cada qual está só, desesperadamente, cruelmente só. Se um Null Achtzehn vacila, não encontrará quem lhe dê ajuda, e sim quem o derrube de uma vez, porque ninguém tem interesse em que um “muçulmano” [com esta palavra, “Muselmann”, os veteranos do Campo designavam os fracos, os ineptos, os destinados à “seleção”] a mais se arraste a cada dia até o trabalho; e se alguém, por um milagre de sobre-humana paciência e astúcia, encontrar um novo jeito para escapar ao trabalho mais pesado, uma nova arte que lhe propicie uns gramas de pão a mais, procurará guardar seu segredo, e por isso será apreciado e respeitado, e disso tirará uma própria, exclusiva, pessoal vantagem; ficará mais forte, e portanto será temido, e quem é temido é, só por isso, candidato à sobrevivência.

Na história e na vida parece-nos, às vezes, vislumbrar uma lei feroz que soa assim: “a quem já tem, será dado; de quem não tem, será tirado”. No Campo, onde o homem está sozinho e onde a luta pela vida se reduz ao seu mecanismo primordial, essa lei iníqua vigora abertamente, observada por todos.”

 

            Capítulo Os submersos e os salvos

            In É isso um homem?

            Ed. Rocco, 1988, p. 88 a 90.

 

segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

Razão e emoção a partir do teatro grego

 

 

Das funções mais nobres da leitura, uma é a de provocar o leitor. Ela depende de dois fatores fundamentais: um bom texto, inteligente, de conteúdo instigador e boa forma literária, capaz de atrair aquele que o lê pela força da arte; em segundo lugar, o próprio leitor, se ele se deixa provocar, se preserva a curiosidade infantil e está aberto a novas ideias e especulações, se não se encontra cristalizado e imobilizado pelos ‘pré-conceitos’.

            Das formas mais eficientes de aceitar e elaborar a provocação contida numa boa leitura, uma é a de escrever sobre o que se leu e agora pode analisar, questionar, interrogar, aceitar, rejeitar ou duvidar do que se acaba de ler. Tal exercício, no mínimo, traz em si a capacidade de expandir entendimento, sentimentos e emoções, sobre o tema em questão.

            Adriane da Silva Duarte, professora de língua e literatura gregas na USP, faz a apresentação do livro O melhor do teatro grego (tradução de Mário da Gama Kury, Zahar editores, 2013), que contém as peças Prometeu acorrentadoÉdipo reiMedeia e As nuvens. Reproduzo aqui um parágrafo do belíssimo texto de Duarte:

 

“A emoção está no cerne da experiência dramática dos gregos. Platão e Aristóteles discorreram sobre o papel das emoções no teatro, especialmente no que toca à tragédia. Para Platão, buscar deliberadamente comover os expectadores, como fizeram, os tragediógrafos, é nocivo, pois enfraquece a parte racional da alma, debilitando o cidadão. Daí, entre outras razões, os poetas trágicos estarem excluídos da cidade ideal juntamente com os épicos. Já Aristóteles, embora tenha sido discípulo de Platão, compreende diversamente a questão. Para ele, o prazer da tragédia está em suscitar e purgar certas emoções, processo que ele denomina catarse. No caso da tragédia, essas emoções seriam o terror e a piedade, o que exigiria uma identificação entre o expectador e o herói trágico, de modo que aquele pudesse se colocar no lugar do último e temesse passar pelo que ele passa, apiedando-se dele, que sofre sem merecer. Desse processo, que Aristóteles não se digna a explicar na Poética, derivaria o prazer que sentimos ao contemplar obras de natureza artística.”

 

            “Buscar deliberadamente comover os expectadores” é o que chamei de provocação. A literatura faz isso magistralmente, mas não apenas a literatura; se dermos um salto para os tempos atuais, poderemos enfrentar o mesmo problema diante do cinema, tipo de arte de penetração extraordinária em todas as camadas sociais, e que por isso serve ao propósito deste texto quase ingênuo. 

            Há o filme e há o expectador. Por que existe o aficionado pelos filmes de terror? O que pretende ele ao desafiar o medo que as imagens lhe causam? (Porque se não causam, não faz sentido ver filme de terror...) Deseja apenas provar que é corajoso e valente? Ou se trata de desafiar as próprias emoções, na tentativa de dominá-las? 

            Há quem prefira ‘filme de amor’. Tipo sessão da tarde, daquele romantismo derramado que provoca suspiros e derrama lágrimas. Por que chorar diante da fantasia? Isso causa prazer ou dor? A emoção, represada, precisa transbordar? Para outros, serão lágrimas de enfado.

            Cinema de violência explícita e incontida faz sucesso mundo afora: são murros, tiros, rajadas de metralhadora, golpes de espada a transfixar o inimigo, jugulares esguichando suco de tomate, cenas horripilantes de tortura, tudo é apreciado a ponto da saliva escorrer pelo canto da boca de certo tipo de expectador. Para que? O que está a extravasar agora? Agressividade? Ódio? Ou é simplesmente a catarse aristotélica! Enquanto isso, “Alguns, achando bárbaro o espetáculo prefeririam (os delicados) morrer”, afirma Drummond em Os ombros suportam o mundo

            Filmes de suspense costumam ser apreciados, exceto pelos que não toleram sustos, seja porque prefiram a calma contemplativa, ou porque talvez vivam permanentemente assustados. As razões de tais preferências e aversões quase sempre nem o expectador conhece, bem guardadas no inconsciente de cada um. 

            O que todos ‘pré-sentem’ é a necessidade de aprender a lidar melhor com os próprios sentimentos e emoções. Para tal, há quem prescreva os clássicos da literatura; outros, a rodriguiana “vida como ela é”; ouvir Mozart ou Beethoven pode vir a ser um santo remédio; o cinema também serve, e muito – terminado o filme, é bom conversar sobre ele. Para os adeptos do bungee jumping, talvez seja necessária mesmo uma terapia.

            Estas são apenas algumas associações que me ocorreram diante das magníficas provocações de Adriane da Silva Duarte. Meu eventual leitor, pensa o quê?

domingo, 16 de janeiro de 2022

Autobiografia 3

100 anos de José Saramago



“Também por essas alturas tinha começado a frequentar, nos períodos nocturnos de funcionamento, uma biblioteca pública de Lisboa. E foi aí, sem ajudas nem conselhos, apenas guiado pela curiosidade e pela vontade de aprender, que o meu gosto pela leitura se desenvolveu e apurou.

Quando casei, em 1944, já tinha mudado de actividade, passara a trabalhar num organismo de Segurança Social como empregado administrativo. Minha mulher, Ilda Reis, então dactilógrafa nos Caminhos de Ferro, viria a ser, muitos anos mais tarde, um dos mais importantes gravadores portugueses. Faleceria em 1998. Em 1947, ano do nascimento da minha única filha, Violante, publiquei o primeiro livro, um romance que intitulei A Viúva, mas que por conveniências editoriais viria a sair com o nome de Terra do Pecado. Escrevi ainda outro romance, Clarabóia, que permanece inédito até hoje, e principiei um outro, que não passou das primeiras páginas: chamar-se-ia O Mel e o Fel ou talvez Luís, filho de Tadeu… A questão ficou resolvida quando abandonei o projecto: começava a tornar-se claro para mim que não tinha para dizer algo que valesse a pena. Durante 19 anos, até 1966, quando publicaria Os Poemas Possíveis , estive ausente do mundo literário português, onde devem ter sido pouquíssimas as pessoas que deram pela minha falta.”


            José Saramago

 

https://www.josesaramago.org/biografia/

quinta-feira, 6 de janeiro de 2022

Contos morais de J. M. Coetzee

 


No Natal, os Anos de chumbo, de Chico Buarque; na entrada do ano novo, os Contos morais, de J. M. Coetzee. Chico publica seu primeiro livro do gênero conto; Coetzee é escritor de fama internacional, ganhador do Nobel de Literatura em 2003. De qualquer modo, vale a pena comparar estilos e escolhas de temas. (Minha opinião sobre Anos de chumbo está em

 http://loucoporcachorros.blogspot.com/2021/12/anos-de-chumbo.html).

            Vejamos o primeiro parágrafo do primeiro conto de Coetzee, O cachorro:


"A placa no portão diz Chien méchant e o cachorro é méchant mesmo. Cada vez que ele passa, ele se joga contra o portão, uivando de desejo de alcançá-la e despedaçá-la. É um cachorro grande, um cachorro sério, alguma espécie de pastor-alemão ou rottweiler (ela sabe pouco sobre raças de cachorros). Em seus olhos amarelos ela sente ódio do tipo mais puro brilhando para ela.”


      Em meu ponto de vista, este texto poderia estar no livro do Chico Buarque; tem a mesma crueza, que se prolonga pelo restante da narrativa. Rubem Fonseca também poderia ter sido o autor. Talvez Dalton Trevisan ou Sergio Sant'Anna. Esta é a literatura contemporânea, moderna no sentido de atual, que eu aprecio e muita gente detesta. Gostei de encontrá-la no primeiro conto do Coetzee, datado de 2017.

      O segundo texto, cujo título é Conto, de 2014, vai pelo mesmo caminho:

 

“Ela não sente culpa. Isso é que a surpreende. Nenhuma culpa.

Uma vez por semana, às vezes duas, ela vai ao apartamento do homem na cidade, se despe, faz amor com ele, se veste, sai do apartamento, dirige até a escola para pegar sua filha e a filha do vizinho.”


           A partir daí seguem-se os contos Vaidade (2016), Quando uma mulher envelhece (2003-2007), A velha e os gatos (2008-2013), Mentiras (2011) e O matadouro de vidro (2016-2017). Em todos eles, está presente a relação entre mãe e dois filhos, e esta mãe é ninguém menos que Elizabeth Costello, o alter ego do escritor. Estilo e conteúdo são outros, bem mais parecidos com a literatura anterior do sul-africano.            

           Há vinte anos eu e minha mulher éramos leitores assíduos de Coetzee; adorávamos a fala corajosa e incisiva de Elizabeth Costello em defesa dos animais (A vida dos Animais (1999) e Elizabeth Costello (2003) são livros preciosos!). Depois vem Desonra, livro assustador, talvez o melhor de Coetzee; seguem-se À espera dos bárbarosDiário de um ano ruimO homem lento, e muitos outros.

            Agora, é uma alegria reencontrar Costello, ainda vociferando a favor dos animais! A velha e os gatos é uma pequena obra-prima! Transcrevo o primeiro parágrafo para que meu eventualíssimo leitor note a diferença de estilo:

 

“Ele acha difícil aceitar que, para ter essa conversa comum, mesmo que necessária, com sua mãe tenha de vir até onde ela mora nessa aldeia atrasada do platô castelhano, onde se passa frio o tempo todo, onde o jantar que servem é um prato de feijão com espinafre, e onde, além disso, é preciso ser polido sobre os gatos semisselvagens dela que se espalham para todo lado cada vez que alguém entra na sala. Por que, na noite de sua vida, ela não pode se instalar em algum lugar civilizado?”


            Gosto muito desses longos períodos, mas há que deteste.

            Contos morais poderia ser criticado por uma possível falta de unidade entre os textos. Penso que não: a leitura é tão agradável, tão elegante, a alma do escritor desnudada por inteiro, os temas tão bem escolhidos, com destaque para o processo de envelhecimento do homem, que nada mais importa.

            Em O matadouro de vidro, título que mais parece ter saído de um conto de Kafka, Costello admite que a senilidade está avançando: “Eu não sou mais eu mesma, John. Está acontecendo alguma coisa comigo, com minha mente”. Parece não haver dúvida que Coetzee fala de si próprio. (O tema tem a preferência deste blogueiro, nos textos contidos em Diário da demenciação, no Louco por cachorros.)

       Um grande livro, sem dúvida!


quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

Anos de chumbo

 

 

Não raro, aqueles que pretendem escrever e publicar começam por um volume de contos. Parece mais fácil, as histórias são mais curtas, talvez não haja necessidade de tanta engenhosidade criativa. Parece, mas não é bem assim. 

            Atribui-se ao argentino Julio Cortázar a frase que compara o romance ao conto, segundo as regras do boxe: “o romance é uma luta que se vence por pontos e o conto, por nocaute”.  É preciso ser muito bom para vencer por nocaute em literatura!

Há trinta anos Chico Buarque estreava com Estorvo, um belíssimo romance; desde então ele publicou outros seis romances, com os quais ganhou prêmios, incluindo o Camões, em 2019, e três Jabutis. Agora, só agora, aos 77 anos, Chico Buarque, estreia como contista, com Anos de chumbo (Companhia da Letras, 2021). E que estreia! 

            Logo no primeiro conto – Meu tio – ele tonteia o leitor; no segundo – O passaporte –, é nocaute na certa. Seguem-se Os primos de Campos, Cida, Copacabana, Para Clarice Lispector, com candura, O sítio, e o pequeno volume se encerra com o conto que dá nome ao livro.

Os oitos contos revelam, através de escrita realista, um Brasil duro, perverso, atrasado, sórdido, miserável, repleto de bandidos, assassinos, milicianos poderosos. Em frases curtas, secas, sem rodeios, o autor captura a atenção do leitor, que mergulha em cada história como se estivesse vendo uma reportagem na tevê, só que com a arte da boa literatura.

É possível sentir a influência de um Rubem Fonseca, de Dalton Trevisan, de Sergio Sant’Anna, dentre outros, o que apenas engrandece a forma elegante e personalíssima do já consagrado escritor Chico Buarque.

Em tempo, a edição é bem cuidada, com belíssima capa (dura) de Raul Loureiro.

Sem dúvida, um ótimo livro em minha opinião de simples leitor.

 

terça-feira, 21 de dezembro de 2021

A figura do Narrador em Flaubert, Llosa e Saramago

 

Mario Vargas Llosa escreveu hoje (21) para O Estado de S.Paulo: “Em algum momento do século passado, cheguei a Paris e no mesmo dia comprei um exemplar de Madame Bovary numa livraria do Quartier Latin chamada Joie de lire. Depois de passar a maior parte da noite lendo, ao amanhecer já sabia o tipo de escritor que queria ser e, graças a Flaubert, estava começando a aprender todos os segredos da arte do romance.” 

      Trata-se de um depoimento importante, de um dos monstros sagrados da literatura da América Latina. Diz ele:

      “Ninguém deu maior ímpeto ao gênero romance que o solitário de Croisset. Ele descobriu que o narrador era o personagem mais importante que o romancista podia criar, e que este poderia ser um narrador impessoal que sabia de tudo - uma imitação de Deus Pai - ou um contador personagem, e que estes podiam ser vários e diversos. Desse modo, Flaubert criou o romance moderno e lançou as bases daquilo que, anos depois, seriam os infinitos arranjos e figuras inventadas por James Joyce para dotar o romance e diferenciá-lo do passado, dos clássicos.” (Tradução de Renato Prelorentzou)

Na Revista Ler #38 (Primavera/Verão de 1997), José Saramago publica o ensaio "O autor como narrador", causando certa polêmica ao acrescentar importante contribuição à ideia do que seria o verdadeiro papel de um narrador. Reproduzo aqui alguns trechos do brilhante ensaio, respeitando a escrita de Portugal utilizada pelo autor.

 

“...a minha ousada declaração de que a figura do narrador não existe, e de que só o autor exerce função narrativa real na obra de ficção, qualquer que ela seja, romance, conto ou teatro. E quando, indo procurar auxílio a uma duvidosa ou, pelo menos, problemática correspondência das artes, argumento que entre um quadro e a pessoa que o contempla não há outra mediação que não seja a do respectivo autor, e portanto não é possível identificar ou sequer imaginar, por exemplo, a figura de um narrador na Gioconda ou na Parábola dos Cegos, o que se me responde é que, sendo as artes diferentes, diferentes teriam igualmente de ser as regras que as traduzem e as leis que as governam. Esta peremptória resposta parece querer ignorar o facto, fundamental no meu entender, de que não há, objectivamente, nenhuma diferença essencial entre a mão que guia o pincel ou o vaporizador sobre a tela, e a mão que desenha as letras sobre o papel ou as faz aparecer no ecrã do computador, que ambas são, com adestramento e eficácia similares, prolongamentos de um cérebro, ambas instrumentos mecânicos e sensitivos capazes de composições e ordenações sem mais barreiras ou intermediários que os da fisiologia e da psicologia.” 

“Nesta contestação, claro está, não vou ao ponto de negar que a figura do que denominamos narrador possa ser demonstrada no texto, ao menos, com o devido respeito, segundo uma lógica bastante similar à das provas definitivas da existência Deus formuladas por Santo Anselmo... Aceito, até, a probabilidade de variantes ou desdobramentos de um narrador central, com o encargo de expressarem uma pluralidade de pontos de vista e de juízos considerada útil à dialéctica dos conflitos. A pergunta que me faço é se a obsessiva atenção dada pelos analistas de texto a tão escorregadias entidades, propiciadora, sem dúvida, de suculentas e gratificantes especulações teóricas, não estará a contribuir para a redução do autor e do seu pensamento a um papel de perigosa secundaridade na compreensão complexiva da obra.” 

... "O escritor de histórias, manifestas ou disfarçadas, é portanto um mistificador: conta histórias e sabe que elas não são mais do que umas quantas palavras suspensas no que eu chamaria o instável equilíbrio do fingimento, palavras frágeis, assustadas pela atracção de um não-sentido que constantemente as empurra para o caos de códigos cuja chave a cada momento ameaça perder-se.” 

“Muito pelo contrário: o autor está no livro todo, o autor é todo o livro, mesmo quando o livro não consiga ser todo o autor. Não foi simplesmente para chocar a sociedade do seu tempo que Gustave Flaubert declarou que Madame Bovary era ele próprio. Parece-me, até, que, ao dizê-lo, não fez mais do que arrombar uma porta desde sempre aberta. Sem faltar ao respeito devido ao autor de Bouvard et Pécuchet, poder-se-ia mesmo dizer que uma tal afirmação não peca por excesso, mas por defeito: faltou a Flaubert acrescentar que ele era também o marido e os amantes de Emma, que era a casa e a rua, que era a cidade e todos quantos, de todas as condições e idades, nela viviam, casa, rua e cidade reais ou imaginadas, tanto faz. Porque a imagem e o espírito, o sangue e a carne de tudo isto, tiveram de passar, inteiros, por uma só pessoa: Gustave Flaubert, isto é, o autor, o homem, a pessoa. Também eu, ainda que sendo tão pouca coisa em comparação, sou a Blimunda e o Baltasar de Memorial do Convento, e em O Evangelho Segundo Jesus Cristo não sou apenas Jesus e Maria Madalena, ou José e Maria, por-que sou também o Deus e Diabo que lá estão..."

E Saramago conclui: "O que o autor vai narrando nos seus livros é, tão-somente, a sua história pessoal, Não o relato da sua vida, não a sua biografia, quantas vezes anódina, quantas vezes desinteressante, mas uma outra, a secreta, a profunda, a labiríntica, aquela que com o seu próprio nome dificilmente ousaria ou saberia contar. Talvez porque o que há de grande em cada ser humano seja demasiado grande para caber nas palavras com que ele a si mesmo se define e nas sucessivas figuras de si mesmo que povoam um passado que não é apenas seu, e por isso lhe escapará sempre que tentar isolá-lo e isolar-se nele. Talvez, também, porque aquilo em que somos mesquinhos e pequenos é a tal ponto comum que nada de novo poderia ensinar a esse outro ser pequeno e grande que é o leitor. Finalmente, talvez seja por alguma destas razões que certos autores, entre os quais julgo dever incluir-me, privilegiem, nas histórias que contam, não a história que vivem ou viveram, mas a história da sua própria memória, com as suas exactidões, os seus desfalecimentos, as suas mentiras que também são verdades, as suas verdades que não podem impedir-se de ser mentiras. Bem vistas da coisas, sou só a memória que tenho, e essa é a história que conto. Omniscientemente.” 

“Quanto ao narrador, que poderá ele ser senão uma personagem a mais de uma história que não é a sua?" 

 

      Temos aqui as opiniões de três gigantes da literatura mundial: Flaubert, Llosa e Saramago. É bastante educativo poder compará-las. Sem contar a delícia que é reler José Saramago, o nosso Nobel da Língua Portuguesa.

 

https://cultura.estadao.com.br/noticias/literatura,duzentos-anos,70003932112

 

http://desaramago.blogspot.com/2016/05/o-autor-como-narrador-jose-saramago.html

 

quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

A crônica vive

 

O bom cronista é aquele que, ao escrever sobre algum gênio do gênero, um Rubem Braga, um Carlinhos de Oliveira, uma Clarice Lispector, é capaz de revelar luz própria e sair da sombra daquele sobre quem ele escreve. Não é fácil, pois o brilho do gênio ofusca, atemoriza, acovarda mesmo; como ele se tornou uma referência, a tendência é de que seja copiado, desastre na certa. 

            A crônica deve ser leve por natureza; ela não pretende aprofundar assuntos, entrar em altas filosofias, descobrir o sentido da vida. Mas não pode se tornar pueril. Não é fácil escrever uma crônica original. Ainda mais que a forma conta muitíssimo.

            Gregorio Duvivier pode ser considerado um cronista da nova geração. Os mais rigorosos diriam que ele ainda está em cueiros nesse gênero literário. Mas hoje ele brilhou sozinho – Rubem Braga sorriu no céu dos cronistas!

            Duvivier publicou hoje na Folha texto com o título Ou Sérgio Porto adivinhava o futuro, ou é o Brasil que nunca saiu do passado. O título está perfeito, antecipa o tema, por si só constitui um aforismo na forma de interrogação.

Escreve ele: “Stanislaw Ponte Preta não foi um personagem nem um escritor, mas uma espécie de espírito zombeteiro que baixou em Sérgio Porto. Incorporado, realizou o sonho oswaldiano: serviu às massas o biscoito fino da autoironia. Devora-me ou devoro-me. Sua antropofagia começava por deglutir a si mesma.”

Ainda: "Se Vinicius de Moraes não fossem muitos, se chamaria Vinicio de Moral" dizia a Tia Zulmira, heterônimo do Stanislaw Ponte Preta, que por sua vez era um heterônimo do Sérgio Porto. Sim, os heterônimos de Sérgio tinham, por sua vez, heterônimos. Quando falava sobre Vinicius, falava sobre si mesmo: devia se chamar Sergius Portos.” 

Duvivier conclui avisando que Álvaro Costa e Silva acaba de lançar "A Fina Flor de Stanislaw Ponte Preta", coletânea de crônicas que poderiam ter sido escritas hoje: “militares locupletados, moralistas de araque, tá tudo lá. Ou era o Sérgio Porto que adivinhava o futuro, ou é o Brasil que nunca saiu do passado”.

Parabéns, Gregório Duvivier!

 

 

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/gregorioduvivier/2021/12/ou-sergio-porto-adivinhava-o-futuro-ou-e-o-brasil-que-nunca-saiu-do-passado.shtml


segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

Mansa neurose

 

 

De antemão confesso que desde sempre cultivei o hábito de comprar mais livros do poderia lê-los. Frequentador assíduo de sebos e livrarias, desde os tempos da mocidade no Rio de Janeiro, com frequência levava para casa dois ou três volumes, quando a situação financeira era favorável. Por esta mania recebi duras críticas ao longo da vida, até mesmo de amigos próximos; às vezes, o riso era de mofa. 

            O riso de mofa se repetia quando adquiria o mesmo livro várias vezes, no lançamento de edições comemorativas, por exemplo. Grande Sertão, do Rosa, que me lembro, comprei quatro ou cinco exemplares. A meu favor digo que é a única coisa que gosto de comprar nessa vida. 

            Em tempos de isolamento pandêmico, que sigo à risca, a mansa neurose muito tem me valido. Ontem mesmo, domingo de chuva, fui a minha biblioteca à cata de um certo volume de Mircea Eliade, depois de assistir Youth Without Youth (Velha juventude, em português), filme teuto-franco-ítalo-romeno-estadunidense de 2007, dirigido por Francis Ford Coppola, baseado em novela do autor romeno. (Destacam-se os atores Tim Roth e Bruno Ganz.)

            Não encontrei o livro procurado – está cada vez mais difícil torcer o pescoço diante de uma prateleira, tirar os óculos, me aproximar, colocar os óculos, me afastar, tudo embaçado. Em remota estante, que não vasculhava há anos, para grande espanto, descobri uma preciosidade que não me lembrava ter adquirido! Um livro de Paulo Leminski! Ensaios e anseios crípticos, da Editora Unicamp, segunda edição ampliada, 2012. Edição bem cuidada, uma felicidade.

            Após consultar a ficha catalográfica e ver o detalhado índice, duas outras manias deste leitor, abri o livro aleatoriamente e li: 

 

M., DE MEMÓRIA

 
            Os livros sabem de cor
milhares de poemas.
            Que memória!
Lembrar, assim, vale a pena.
 
            Vale a pena o desperdício,
Ulisses voltou de Troia,
            Assim como Dante disse,
o céu não vale uma história.
 
            Um dia, o diabo veio
seduzir um doutor Fausto.
            Byron era verdadeiro.
Fernando, pessoa, era falso.
 
            Mallarmé era tão pálido,
mais parecia uma página.
            Rimbaud se mandou pra África,
Hemingway de miragens.
 
            Os livros sabem de tudo.
Já sabem deste dilema.
            Só não sabem que, no fundo,
ler não passa de uma lenda.

 

 

            É assim que um poema fecha a crônica. Obrigado Leminski. E ri, quem não sabe que pode valer a pena cultivar uma neurose.