sexta-feira, 26 de agosto de 2022

 O HOMEM IDEAL


    Nos habituamos o André e eu há muitos anos a assistir juntos a um ou dois filmes nos finais de semana. Alguns inesquecíveis e muitos umas verdadeiras patacoadas. Quando bons, tínhamos mote certo para longas conversas. Nas últimas semanas de vida do André sem querer arriscar perder tempo, passamos a rever bons filmes mais antigos: "As horas", "Fale com ela". O último filme que vimos juntos era um filme novo de 2021 que tem em português um título a meu ver pobre para o que é - "O homem ideal". Dirigido pela alemã Maria Schrader, tem como título original "Ich bin dein Mensch", que meu amigo alemão traduziu como em inglês "Eu sou o seu homem". Há meses após ler crítica elogiosa sobre o premiado filme aguardo seu lançamento nas plataformas de streaming, até que há pouco mais de um mês apareceu para alugar numa delas. O início é meio desconcertante, um pouco desconfortável. O expectador titubeia um pouco, mas segue. Ainda bem. Acompanhado por uma trilha sonora além do impecável o filme é de uma delicadeza que alguns certamente atribuirão à condução feminina da trama, eu penso que ela vem simplesmente celebrar o tema tratado: o que é SER humano e estar aberto ao amor.

    Sem entrar em detalhes para não dar spoiler, até porque as sinopses falam disso, a protagonista aceita participar de um experimento no qual vai conviver por alguns dias com um robô, um androide ou como se queira designar uma máquina em formato de homem, desenhado para atender a todos os seus desejos, necessidades e fantasias, devendo ao final fazer um relatório recomendando ou não a experiência. A ação se passa numa Berlim moderna, mas nada a ver com o cenário futurista de filmes semelhantes (quem se lembrou de Blade Runner pode tratar de esquecer). O homem ideal quer agradar com cuidadinhos, flores, champagne e sexo, por que não? No entanto esse ser humanoide não é de modo algum desprovido de senso crítico, ele observa os humanos com curiosidade e algum sarcasmo. Nada lhe escapa. Pensará a máquina no que está fazendo num mundo desses? Ele é aceito naturalmente pelos animais e se espanta com a falta de empatia dos humanos.

    E o que parecia uma experiência fácil para uma mulher já madura, uma cientista especialista em escrita cuneiforme tradutora de acádio, transforma-se numa armadilha na qual ela é forçada a olhar de frente os sonhos que foram desfeitos, frustrações que a vida amorosa e profissional nos impõem, a decrepitude e fragilidade da velhice, a morte, a inveja da felicidade alheia. E se de repente nada mais disso acontecesse? E se a imprevisibilidade da vida se extinguisse? Seríamos então destituídos do que nos faz humanos, transformados em autômatos perderíamos a capacidade extraordinária que temos de aprender a lidar com as perdas, encontrar consolo para esperanças frustradas, usar como se diz na psicanálise os recursos da mente. O resto fica por conta de quem se interesse por assistir.

    A atriz principal Maren Eggert tem uma beleza sem adornos e uma atuação maravilhosa que lhe rendeu o Urso de Prata no Festival de Berlim 2021. Já seu par Dan Stevens consegue compor um personagem que não é humano mas que nos comove ao expor ao longo do filme atitudes do homem que muitas mulheres desejam. A diretora Maria Schrader já é conhecida do público brasileiro pela impressionante minissérie exibida em plataforma de streaming "Nada ortodoxa" que trata da fuga de uma jovem da comunidade judaica ortodoxa de Nova Iorque.

    O homem ideal tem apenas uma característica que nos tempos atuais invejo: não morre nunca. Até a última vez que pude conversar com o André repeti para ele: queria muito que você fosse o homem ideal. Dávamos juntos uma risadinha triste sempre que eu falava isso. O homem ideal não existe. 




Disponível para aluguel na Apple TV ou para os assinantes Prime da Amazon

   

sábado, 13 de agosto de 2022

O LUTO E A TORTA DE MAÇÃ

 

            O luto é o tempo da saudade, das lembranças, da solidão, do remorso, por vezes do desespero. A mente retorna à experiência de uma vida muito compartilhada numa conversação aberta, fértil troca de ideias e pensamentos expostos sem censura. Um ou outro desejo silenciado. É essa a tessitura da convivência harmônica. A vida transcorreu como se as ameaças cotidianas fossem unicamente vislumbres de um futuro muito, muito distante. Mas elas estavam lá sempre à espreita.

            Remorso não tenho das palavras atravessadas, do que poderia ter sido dito, de desculpas nunca verbalizadas. Não almejando a perfeição fui até onde consegui. O que me mortifica são as tortas de maçã que deixei de fazer. Numa gaveta da geladeira ficaram cinco maçãs verdes à espera de uma torta que foi sendo adiada. Foram ficando. O desinteresse pela vida contagia. Cozinhar para que? Qual é mesmo o sentido de acordar de manhã, se arrumar para o trabalho, tomar café (que difícil que desce esse café!), dirigir até o trabalho, escutar histórias banais tidas como trágicas, escutar histórias trágicas e prescrever um analgésico para dor de garganta? Então é disso que se trata estar vivo? É!

Hoje celebramos o dia dos pais com três pais ausentes: dois mortos e um distante. Todos muito importantes para as quatro filhas que aqui estamos. Cada um a seu modo absolutamente insubstituível como é natural que seja. Hoje a torta de maçã foi ao forno e sem falsa modéstia estava perfeita. Não poderei jamais e nem quero saber se minimamente se aproximou daquela feita pela mãe, aquela da memória afetiva. Por vezes tentei inovar: sem tampa, com creme de gemas, tarte tatin. Nenhuma convenceu: “eu gosto de torta com recheio massa em cima e em baixo.” Para os entendidos está dito. Que arrogância que é tentar competir com mãe! 

Gostava muito que você estivesse aqui comendo essa torta que foi feita para você, André. Servi um vinho italiano no almoço, fiz um churrasco de bife ancho muito bom, tomates, cebolas e abobrinhas assados na brasa como você gostava! E preciso contar que a Gabi está linda com o cabelo cortado curto e pintado de ruivo. Está a cara da Shirley MacLaine quando muito jovem, mas não pode falar que ela fica encabulada. As meninas estão com saudades e eu também. “Com açúcar e com afeto..."