domingo, 17 de fevereiro de 2019

Suzete escreve um microconto


Meu querido André,

mostrei a última cartinha que você me escreveu a minha colega Abigail e ela quase morreu de inveja, que nunca recebera uma carta assim, tão delicada, embora não tenha apreciado um certo palavrão, como é que pode começar falando de cachorros, passar ao amigo e terminar com microcontos, no que concordei com ela em tudo, menos no palavrão muito bem colocado diante do dentinho afiado de Lila, ai como dói, putaqueopariu! 
            Ao final da carta você me pede que escreva um microconto! Muito difícil, meu amigo, para uma simples cabeleireira. Não é de hoje que venho acompanhando esta sua predileção pelo gênero e penso que preciso desenvolver capacidade de síntese para escrevê-los, o que não é fácil diante das conversas de salão de beleza, onde as pessoas falam falam falam até secar a garganta, para não dizer nada. Parece que o bom microconto é aquele que dá um recado.
            Em seu livro minimalismosvocê escreveu aquele que achei um belo microconto, na forma e conteúdo:

“Esperava pelo irmão como quem espera pelo Messias. Ao chegar, viu que o irmão era de carne-e-osso. Amou-o ainda mais.”

            Acho que não consigo fazer nada parecido, André. Mas estou tentando, e de tanto tentar, saiu-me isso:

Diante da desilusão amorosa, Sansão pediu-me que lhe raspasse a cabeça. Foi perdendo forças, definhando, até morrer. 

            E você acha que podia sair outra coisa do bestunto de uma cabeleireira que só corta cabelo de homem? Diga-me, sinceramente, posso continuar tentando?
            Pelo que você tem escrito no blog, a visita de seu amigo Sergio foi um sucesso. Agora sou eu quem fica com inveja. Amizade dessas não tem preço. Pois vou lhe contar o sucedido recentemente comigo. 
            Há 8 meses e meio apareceu por aqui uma tal de Mara, vinda de Santa Catarina (em toda a minha vida eu nunca havia conhecido ninguém de Santa Catarina), toda branquinha que nem leite, quase transparente, fala mansa de gente educada, pegou a cadeira ao lado da minha, mas só cortava cabelo de mulher. Foi se chegando, ficou minha amiga, nos fins de semana não saía lá de casa, elogiava minha comida, gostava dos meus livros, e acho que foi isso que acabou por me cativar, gostar dos meus livros. Também eu me apeguei. 
            André, não vale a pena encompridar essa história patética (é a primeira vez que uso a palavra patética). Certo dia Mara me disse que precisava visitar a mãe doente em Santa Catarina (já viu desculpa mais esfarrapada?), pediu-me dinheiro emprestado para a viagem, nunca mais deu notícia. Acabou-se a amizade, acabou-se a patética história. 
            Eram todas as minhas economias, acredita? Foi o que me deixou putadavida, não senti a perda da amizade porque não era mesmo amizade, não me senti ludibriada porque não fiz nada de errado, nem boba me senti porque continuo acreditando nas pessoas e é possível que volte a cair num golpe desses, mas perder meu dinheirinho ganho honestamente cortando cabelo de homem – e alguns são muito chatos –, aí não, isso eu não me conformo. 
            Estava juntando dinheiro para visitar Nova Iorque. Agora não dá nem pra ir a Aparecida do Norte, a pé, e lá não vou mesmo, ateia degenerada (não foi assim que seu irmão chamou você?, degenerado?) que sou, que se creditasse em promessa fazia uma para Santo Expedito, o das causas perdidas, para ter meu dinheirinho de volta.
            Portanto, de volta ao salão, isso sim. Haja cabelo de homem.
            Termino por aqui, meio chateada com esta resposta tão sem graça desenxabida insossa insípida inodora, longe da graça com que me escreveu. Paciência. A próxima será mais inspirada.
            Beijo da sempre sua

                                                           Suzete.