quarta-feira, 28 de março de 2012

Beatriz aluga uma casa



Capítulo V

(Romance em construção,
vivido em Londres nos anos 80)


(Você já morou no exterior? Em qualquer lugar. Seja lá qual for a língua que se fale neste lugar, sejam quais forem os costumes, clima moeda religião. Já morou? Então há de saber que nos primeiros tempos você não se cansa de dar vexame. Aliás, isso cansa, cansa muito. É um vexame atrás do outro, fora após fora, vergonha em cima de vergonha. São mal-entendidos, detalhes insignificantes, bobagens que geram sobressaltos que vão minando nossa autoconfiança e nos mantém em estado de permanente apreensão. Somos estrangeiros, enfim.)
Alugar uma casa foi uma epopeia para Beatriz. Primeiro, o locador implicou-se com o fato de que ela era uma mulher solteira, jovem bonita solteira,
- será isso um pecado?,
depois os preços exorbitantes dos alugueis, que a empurraram para o sul de Londres, para áreas empobrecidas, degradadas, feias, sujas. Encontrou pequena casa numa rua sem saída, com uma linha de trem cortando os fundos do minúsculo quintal. Em noites de extrema solidão o barulho do trem era sempre uma boa companhia. (Quando você está só, até o ruído do caminhão do lixo pode trazer boas recordações.)
Além de pobre, a casa era precarissimamente mobiliada. A cozinha forrada de carpete surrado, sujo de manchas de comida,
- que nojo,
e o banheiro?, sujeira de séculos, a banheira amarela voltou a ser branca depois de areada, a privada amarela voltou a ser branca, a pia amarela voltou a ser branca, os azulejos amarelos voltaram a ser brancos, até o espelho voltou a espelhar,
            - custou-me um mês de trabalho, três vidros de sapólio, quatro pares de luvas de borracha, só no banheiro,
e foi preciso um aspirador de pó novo para limpar os carpetes da pequena sala, do quarto de dormir e da cozinha, que passaram de um cinza-chumbo-malhado a um verde-musgo-sem-convicção, que a cor original jamais poderia ser reconstituída, ou mesmo adivinhada. Quanto à parede da sala, Bia nada pôde fazer: depois que a espessa tinta a óleo foi limpa com bucha-água-e-sabão, permaneceu com um inexplicável tom verde-garrafa-pegajoso desagradável,
            - um pesadelo meu deus.
            Portanto, além de pobre e precarissimamente mobiliada, a casa estava suja, e Beatriz reclamou com o locador, na expectativa de que ele a limpasse antes de alugá-la, ao que ele respondeu amavelmente,
            - isso de limpeza ou sujeira é muito relativo,
e dito assim amavelmente, a fala mansa conciliadora, despertou nela uma súbita compreensão,
            - é verdade!, tudo é relativo!,
e tratou de limpar a casa ela mesma, já que não poderia mudar conceitos seculares entranhados, tal qual aquela sujeira, na cultura local,
            - se o Natal não pode mudar, mudo eu,
pensou, parodiando Machado de Assis.
(As coisas ficam mais fáceis quando podemos reconhecer de imediato a verdade do outro, bem diferente de nossa própria verdade; fica mais fácil tolerar a diferença e manter o diálogo; se desejamos  que prevaleça a nossa verdade, a conversa desanda, e se prossegue, não é mais conversa, vira bate-boca-sem-fim.)
E não foi de imediato que Beatriz atinou com o motivo da cozinha forrada com aquele carpete cinza-chumbo-malhado; o entendimento ocorreu quando o inverno chegou. A calefação deixava a desejar; desligado o aquecimento elétrico – e  precisava ser desligado por volta da meia-noite porque energia elétrica era coisa muito cara – ela não conseguia mais sair debaixo das cobertas, o frio era de matar; levantar à noite para um xixi, nem pensar; meia hora antes de acordar o aquecimento era automaticamente ligado, e desligado 15 minutos antes de Bia deixar a casa rumo ao trabalho. O chão da cozinha precisava mesmo de carpete.
            Para disfarçar a feiura da casa, Beatriz resolveu pendurar alguns quadros nas paredes, reproduções de pinturas célebres que havia ganho de propaganda de laboratório. Descobriu que na casa não havia martelo, não havia qualquer tipo de ferramenta, chave-de-fenda, alicate, nada, e uma casa exige estes petrechos básicos. No comércio local havia uma dessas lojas que vendem de um tudo, tudo mesmo, de roupas a ferramentas, quinquilharias dependuradas pelo teto e pelas paredes, entulhadas pelos cantos, no meio do caminho, a atravancar a entrada e obstruir a saída. A vendedora, uma senhora perto de seus 70 anos, distinta, de boa aparência, bem vestida para quem vivia metida em meio a tantas bugigangas. Beatriz escolheu as ferramentas de que precisava, tudo muito velho e usado, mas um martelo, um alicate, uma chave-de-fenda, uma pua, são instrumentos indestrutíveis, ficam velhos e preservam sua função, sua utilidade, (ao passo que gente velha não, gente velha já não martela, não alicata, não chavedefenda, não pua, não nada),  
            - that's it,
concluiu Bia, colocando os objetos no balcão de madeira, e a distinta senhora - havia mesmo dignidade em sua postura - fez as contas da despesa,
            - 87 pence,
finalizou a senhora. Beatriz vasculhou a bolsa e encontrou 86 pence. Deu-se por satisfeita,
- coisa velha gasta mas de muito préstimo, e baratíssimo!,
pensou, e entregou o dinheiro à vendedora, certa de que o penny que faltava não seria um estorvo, era apenas one penny, e qual não foi seu espanto quando súbito a velha levantou a voz, encrespou o sobrolho, cuspiu marimbondo, esculhambou com a moça,
            - what are you thinking about my lady?,
e esbravejava espumando a boca agora visivelmente desdentada,
            - silly girl, do you think I`m stupid?,
vociferava a já não tão distinta senhora, Bia perplexa paralisada estupefacta, a velha indignada raivosa agressiva, Bia já não entendia metade do ela falava, roxa apoplética,
            - essa mulher vai ter um infarto agora mesmo e aí é que estou fodida de verdade,
e a velha foi logo despejando os 86 pence na bolsa de Beatriz,
- pegue seu dinheirinho e enfie in your ass,
ou foi mais ou menos isso que Bia compreendeu, que compostura a velha já havia perdido, não restando a Bia outra alternativa senão escafeder-se esbaforida portafora em desabalada carreira tropeçando por sobre aquele mundaréu de trastes que se esparramavam pelo chão com escandalosa estridência,
            - gente mais maluca meu deus,
antes que levasse com o martelo na cabeça.
(Agora veja você: dois anos mais tarde, ao relatar estes mesmos acontecimentos ao seu analista, Beatriz pôde perceber que a distinta senhora inglesa vivia era daqueles trocados, comprava objetos usados por tutameia e os vendia por tutameia-e-meia, vivia de pennies portanto, e não havia motivo algum para que ela não cobrasse de Bia o penny faltante e que Bia não lhe pagasse o que devia pelo justo preço estabelecido para cada mercadoria, e se one penny era nada para Bia, para a velha senhora inglesa significava boa parte de seu lucro de cada dia. A verdade de cada um, visto está. Ou como gostava de dizer Dr. Axe, o analista de Bia,
- o passado a gente não muda, mas podemos dar um outro significado a ele.)