segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Ainda O Filho de Saul



Ilana Feldman, ao publicar a crítica sobre “O irrepresentável no filme "Filho de Saul” (Folha de S. Paulo, 28/02/2016), ainda não sabia que ele foi mesmo o ganhador de melhor filme estrangeiro no Oscar de 2016. A moça (37, doutora em cinema pela ECA-USP), inicia sua belíssima crônica do jeito que o Louco gosta, superlativa: “Não seria exagero afirmar que "Filho de Saul", filme de estreia do húngaro László Nemes, é um dos maiores acontecimentos cinematográficos das últimas décadas.”
Prossegue Ilana: “É da guerra das imagens que se trata: é possível e moralmente aceitável representar um evento-limite, terrível e singular como o Holocausto? É possível e tolerável espetacularizar aquilo que há de mais extremo e obsceno na vida humana, o momento de sua morte?”
Este blog havia já se ocupado deste grande filme: http://loucoporcachorros.blogspot.com.br/2016/02/o-filho-de-saul.html
Repito aqui um trecho da postagem anterior, que coincide com a crítica de Ilana: “Porque a câmera está permanentemente grudada em Saul, a profundidade de campo torna-se limitadíssima, pois só importa o que ele vive em cada momento. O segundo plano é mostrado quase sempre fora de foco, o que haverá de gerar grande desconforto em alguns expectadores, especialmente naqueles que desconhecem certos detalhes do que foi a vida num campo de concentração como o de Auschwitz. Parece que o desejo do diretor foi mesmo este, de indicar que é impossível construir uma visão total e completa daquilo que foi um desses campos. Primo Levi (1919-1987), autor do monumental É isso um homem?, haveria de concordar.”
Afirma Ilana: “Recusando a banalidade realista e a indecência do melodrama no contexto do extermínio, Nemes opta por uma linguagem rigorosa, de uma parcialidade radical: assim como o protagonista, não vemos "o" campo, não temos acesso a nenhuma forma de totalidade do que se passa. ... Para o espectador, ainda pior do que estar lá, é imaginar.”
A tese de Ilana Feldman é a de não aceitar a “banalidade realista”, e que um “evento-limite” como o Holocausto é irrepresentável, sob pena de transformá-lo em “indecente melodrama”.
Aqui, o Louco discorda frontalmente. O filme de László Nemes só existe, só foi possível concebê-lo, porque houve uma série de filmes anteriores a ele, revelando aquela realidade impossível de ser revelada completamente. "Kapò", de Gillo Pontecorvo (1961), "Shoah", de Claude Lanzmann (1985), "A Lista de Schindler", de Steven Spielberg (1993), e tantos outros são exemplos de tratamento realista do tema. A denúncia daqueles crimes exigia que fossem mostrados cruamente, como Primo Levi fez em seus livros, sem que estes fossem rotulados de melodramáticos.
Ao sairmos do cinema, minha mulher ouviu a conversa de três mulheres e uma delas dizia, em alto e bom som: “Alguém pode me explicar este filme?” Suponho que ela desconhecia a realidade de um campo de extermínio como o de Auschwitz-Birkenau. O filme de László Nemes, com toda a sua arte, não foi capaz de revelar a ela a extensão da insanidade nazista.
Por isso, afirmo que O filho de Saul, ganhador do Oscar de melhor filme estrangeiro de 2016, repito, é mesmo “um dos maiores acontecimentos cinematográficos das últimas décadas”, como escreve Ilana Feldman, porém como a maioria dos feitos humanos, “vem montado nos ombros de gigantes”!