quarta-feira, 13 de abril de 2016

A morte de Aldemir Vasconcelos e Albuquerque Prado da Silva

           
          Aldemir Vasconcelos e Albuquerque Prado da Silva, aos 60 anos de idade não poderia se queixar da vida, até o fatídico episódio ocorrido há 6 meses. Ao longo de toda a sua existência, ele que nascera em berço de ouro e sempre vivera na abundância, desde a mais primitiva infância, queixava-se apenas de um ínfimo detalhe, uma peça do destino, ínfimo para os outros, que para ele aquilo constituía-se numa mancha, numa nódoa, numa mágoa indelével, pois que ao carregar um nome tão pomposo, aristocrático, quase monárquico, que haveria de diferenciar-lhe dos simples mortais, que tivesse também de carregar o Silva como último sobrenome. Silva!, coisa de pobre, da classe baixa. O que mais o incomodava era o “da” Silva. Por que “da” Silva?, perguntava-se. Se fosse apenas Silva, vá lá; mas da Silva! Felizmente, pouca gente sabia deste último sobrenome, que constava dos documentos oficiais de identidade, passaporte, certidão de casamento, documentos relativos a  negócios. Aldemir assinava apenas Aldemir Vasconcelos e Albuquerque Prado.
            A vida de um milionário nada tem a acrescentar à literatura universal. Ele é herdeiro do nome e sobrenome, é educado em Oxford, Sorbonne ou Harvard, mora numa mansão, tem um iate e um apartamento em Paris, é simplesmente um herdeiro. Não passa disso. De modo que vamos saltar seus 59 anos e meio de existência medíocre, e passemos ao referido episódio ocorrido há 6 meses.
            Aldemir Vasconcelos e Albuquerque Prado da Silva sofreu um grave acidente vascular cerebral e graças ao atendimento médico de excelência, não morreu: ficou tetraplégico, preso a uma cadeira de rodas, capaz de mover o dedo mínimo esquerdo com muita dificuldade. Com sérios problemas na fala, utilizava-se de um computador capaz de emitir sons agudos, metálicos, secos, semelhantes à voz humana, compreensíveis enfim.
            A vida para ele perdera o sentido, inconformado com aquela perda de autonomia. Perda perda perda, era só no que pensava, já que permanecia completamente lúcido. Nada mais o mantinha ligado à vida, as pessoas já não o interessavam, muito menos a política, o país, o mundo.
            Resolveu suicidar-se.
            De que maneira suicidar-se quando se perde a autonomia, a capacidade de ir e vir? Aldemir lembrou-se de Albert Camus e seu enunciado sobre o suicídio, o único problema filosófico realmente importante. Mas Camus não tratou do “como” suicidar-se, revoltava-se Aldemir, imóvel em sua cadeira de rodas.
            Além do que havia a cuidadora, ou melhor dizendo, as inúmeras cuidadoras, 24 horas do dia ao seu lado, cuidando cuidando cuidando, dirigindo a cadeira de rodas para lá e para cá, solícitas ao extremo, alimentando-o nas horas marcadas com uma comida sem gosto, e o faziam não por amor a ele, mas preocupadas em desempenhar a contento suas funções profissionais, para que pudessem receber os régios pagamentos ao final de cada mês. Deus queira que ele nunca morra!, diziam  elas secretamente.
            Mas ele desejava morrer.
            Difícil parar de respirar. Ou parar de alimentar-se. Esses atos despertavam logo a comoção na família, que redobrava os cuidados com o enfermo.         Enfermo? Que enfermo? Morto, isso sim, pensava Aldemir.
            Até que ele pediu uma cadeira de rodas motorizada! A família recebeu a ideia como uma manifestação de vontade de viver, e a cadeira, de última geração, foi providenciada imediatamente.
            Cumprida a primeira etapa do plano, pensou Aldemir.
            Agora, era lidar com Alcilene, a cuidadora dos períodos matutinos. Zelosa ao extremo, Alcilene não desgrudava de seu paciente, dedicava-lhe atenção exclusiva, antecipava as vontades dele, a cuidadora perfeita. Uma chata, pensava Aldemir.
            Com o dedo mínimo esquerdo ele conseguia mover a cadeira para frente, somente para frente. A família elogiava-o, via naquilo um enorme progresso rumo à recuperação total. Pelo menos, era o que diziam ao paciente, que ouvia com indisfarçável impaciência.
            Segunda etapa: convencer Alcilene a deixá-lo na beira da piscina para o banho de sol matutino. Ela costumava deixá-lo no gramado da mansão dos Vasconcelos e Albuquerque Prado da Silva, sempre bem longe da piscina. A ordem vinha de Dona Leontina Henriques Vasconcelos e Albuquerque Prado (mantivera o sobrenome de solteira por parte de pai, Henriques, e suprimira o famigerado da Silva, por parte do marido), esposa de Aldemir, aquela que cuidava de tudo e de todos, a que mandava na casa.
Depois de muita insistência, a voz metálica do computador batendo em pedra dura, Alcilene concordou, passou a estacionar a cadeira nas pedras de Pirenópolis que recobriam as margens da piscina. No primeiro dia em que a cuidadora deixou-o só, apenas um instantinho para ir ao banheiro, Aldemir pressionou a pequena alavanca com o dedo mínimo esquerdo, e  SPLAAASSSH!, a cadeira e seu ocupante precipitaram-se na água, a cadeira emborcada, por cima, o ocupante por baixo, invisível, submerso pelo peso da própria cadeira, água espirrando por todo lado, um deus nos acuda.
Acho que consegui, ainda teve tempo de pensar Aldemir, assim que mergulhou na piscina, com um sorriso assustado na face, que ninguém viu. Mais não pôde pensar, água entrando pelo nariz, pela boca, pelos ouvidos, água sendo engolida, até que Aldemir ouviu o ruído de alguma coisa caindo na água, em seguida a cadeira sendo violentamente desvirada, o ocupante agora na superfície e olhando para o céu azul, respirando ar em vez de engolir água, a cadeira sendo conduzida para a borda da piscina, os gritos das cuidadoras e de Dona Leontina que acorreram assustadíssimas, o choro convulso e histérico de Alcilene, um pandemônio, enquanto todos ajudavam Onofre, o jardineiro que naquele exato momento passava por perto, a retirar da água a cadeira e seu ocupante.
Falhou, pensou Aldemir. Esse filho da puta do Onofre precisava me salvar da morte tão desejada? Outra peça do destino...
O banho de sol agora acontecia a quinhentos metros da piscina. Alcilene, naturalmente, fora despedida. Aldemir Vasconcelos e Albuquerque Prado da Silva tornou-se um homem ainda mais triste.
Morreu oito anos mais tarde, de outro devastador acidente vascular cerebral, sem nunca mais ter feito qualquer alusão ao sobrenome da Silva.

            

Primo Levi revisitado

                      


Há alguns anos li É isto um homem?, de Primo Levi (Rocco, 1988), e o livro não me saiu mais da cabeça. Tenho-o como um livro fundamental, relato da vida em Auschwitz, que há de impressionar a todos aqueles que se interessam por certos aspectos da alma humana.
Levi foi o primeiro a tornar públicos os acontecimentos ocorridos nos campos de extermínio durante a Segunda Guerra Mundial, dois ou três anos após seu término, portanto ainda sob o traumático impacto da experiência vivida pelo autor, um sobrevivente. O livro teve difusão mundial apenas após sua segunda edição, em 1958, causando estrondosa repercussão.
Em É isto um homem?, na tradução de Luigi del Re, impressiona a ausência de ódio e desejo de vingança por parte de Primo Levi, a despeito de tanto sofrimento.
Quarenta anos depois, o mesmo Levi publica Os afogados e os sobreviventes, que só agora é traduzido no Brasil (Luiz Sérgio Henriques, Paz & Terra, 2016).  (Por que tão longo tempo para esta tradução?) O distanciamento no tempo permitiu ao autor uma análise ainda mais equilibrada sobre o ocorrido, mas não menos sofrida. Vejamos o que ele diz no prefácio:

“Por todos os motivos aqui expostos, a verdade sobre os Lager [campos de concentração] veio à luz através de um caminho longo e de uma porta estreita, e muitos aspectos do universo concentracionário ainda não foram aprofundados. Já transcorreram mais de quarenta anos desde a libertação dos Lager nazistas; este considerável intervalo suscitou, em termos de esclarecimento, efeitos diferenciados, que buscarei arrolar.
Houve, em primeiro lugar, a decantação, processo desejável e normal, graças ao qual os fatos históricos só adquirem suas linhas e sua perspectiva alguns decênios após sua conclusão. No fim da Segunda Guerra Mundial, os dados quantitativos sobre as deportações e sobre os massacres nazistas, nos Lager e em outros lugares, não estavam disponíveis, nem era fácil entender seu alcance e sua especificidade. Somente há poucos anos se veio a compreender que o massacre nazista foi tremendamente “exemplar” e que, se um outro pior não acontecer nos próximos anos, ele será lembrado como o fato central, como a mancha deste século.”

            A mancha de um século não diz respeito apenas a nazistas e judeus, diz respeito a toda humanidade.
            O próprio Levi assinala em toda a sua narrativa que o problema é complexo. Por isso sugiro ao leitor interessado no assunto que leia também Hanna Arendt: Eichmann em Jerusalém – um relato sobre a banalidade do mal. É outro livro fundamental. Não que esta abordagem represente uma outra face da moeda, nada disso; trata-se apenas de outra perspectiva de análise do complexo problema.
            Até hoje há quem faça perguntas do tipo Por que os judeus não fugiram?, Por que não se rebelaram? São questões de difícil resposta, abordadas por Levi com a autoridade de quem vivenciou o problema na carne.
            O interessantíssimo penúltimo capítulo de Os afogados faz referência a cartas escritas por alemães a Primo Levi, depois que o É isto um homem? foi traduzido para o alemão e publicado na Alemanha, para surpresa do autor. São depoimentos tocantes, verdadeiros documentos de valor histórico inestimável, que muito acrescentam ao nosso entendimento.