terça-feira, 24 de março de 2015

Imprevidência


Às vezes deixava aberta a porta da frente, às vezes a dos fundos, para facilitar a entrada da mulher. Certo dia entrou um ladrão.

A morte das flores




             O homem tem por hábito comprar flores às sextas-feiras.
           
Não se trata de flores colhidas em jardins ou floriculturas, como acontece com rosas e flores-do-campo, oferecidas em buquês ou ramalhetes. Ele compra flores em pequenos vasos, plantas já formadas, floridas, são margaridas brancas e amarelas, sempre-vivas, crisântemos, orquídeas, não-me-toques, begônias, bromélias, flores-de-maio, cravos, cravinas, dálias, gazânias, girassóis, azaleias, violetas.
           
Elas enfeitam a sala, alegram a casa, até o dia em que morrem. Mas não morrem de morte súbita, desmanchando-se no vaso, de repente, da noite para o dia. Morrem aos poucos, dia após dia. Hoje uma flor que murcha, amanhã uma folha que amarelece, depois outra flor que cai, mais uma folha envelhecida, até que o vaso todo morre e é jogado no lixo.
           
À medida que as plantas vão morrendo o homem vai podando cuidadosamente as folhas amarelas, poda as flores murchas, continua regando a planta com cuidado – a dose certa de água –, borrifa água fresca nas flores sobreviventes, para que a planta permaneça viva o quanto puder.
           
Até que a última flor se vá.

Foto: A.Vianna, mar. 2015.
             

Uma façanha!

A foto do dia.



Gabriela aprende a pregar botão! Uma façanha!

Foto: Mercêdes, março 2015.

Bala perdida


John não podia chegar à janela de seu pequeno barraco na comunidade de Nova Fronteira. Era bala que zunia. Ele tinha certeza de que em algum lugar do morro havia alguém à espreita, um atirador de elite munido de um fuzil de última geração, com mira telescópica, apontando para sua janela, pronto para estourar sua cabeça.
            Quando John queria sair de casa, e ele precisava sair por causa dos negócios, usava a janela dos fundos, porque porta não havia nos fundos, havia apenas a porta da frente, que não podia ser usada por causa do atirador de elite. Pular a janela não era difícil. Depois, era embrenhar-se pelas vielas do morro, dar uma volta enorme para despistar o atirador, estratégia que às vezes chegava a lhe tomar duas horas ou mais, não podia correr riscos, sabia que sua cabeça estava a prêmio.
            Tudo para continuar cuidando dos negócios. A mãe aconselhava, Mude de ramo, meu filho. John fingia que dava ouvidos, dispensava palavra carinhosa para com a mãe, ela o tinha como um bom filho, trabalhador, Nunca faltou dinheiro em casa, dizia orgulhosa, tratava a irmã mais nova como se fosse filha, custeava-lhe os estudos em escola particular, a menina andava bem vestida, roupas de grife, unhas feitas, cabelo cortado em cabeleireiro de madame, era mesmo de chamar atenção, entrando na adolescência, os peitinhos despontando, braços torneados, coxas duras, ela que já frequentava a melhor academia da comunidade, tudo por conta de John, O melhor irmão do mundo!
Ele, longe de mudar de ramo. O negócio prosperava. Como disfarce, John vestia-se da maneira mais discreta possível, uma calça jeans surrada, camiseta cinza-chumbo sem qualquer marca ou estampa, nada de relógios dourados ou grossas correntes no pescoço, um boné cáqui sempre enterrado na cabeça, a aba voltada para frente. John tornava-se praticamente invisível, e afirmava que esse modo de ser fazia parte dos negócios, era sucesso garantido.
A volta para casa, noite fechada, obedecia a mesma estratégia, cuidado redobrado, voltas e mais voltas, apenas as rotas eram diferentes, nunca os mesmos caminhos, o boné ainda mais enterrado na cabeça, um vulto ágil percorrendo as vielas, até que a mãe ouvia a janela dos fundos se abrindo, para alívio do coração de mãe.
Terminado o jantar, saboreada a latinha de cerveja, John não chegava à janela da sala, a mira do fuzil podia ser daquelas que enxergam à noite.
No dia seguinte, a rotina de sempre, inclusive aos sábados. John só não trabalhava aos domingos, quando ficava em casa, dava atenção à mãe e à irmã, lia algum romance policial – era viciado em romances policiais – que trazia da banca de livros usados que mantinha no centro da cidade, negócio que prosperava a olhos vistos, a clientela fiel, cativa, que considerava John o melhor livreiro do mundo.
Só não chegava à janela do barraco.