terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

Por quê esse livro não é bom




            Acabo de ler a magnífica crônica publicada no Blog do Paulo com o instigante título O que faz um bom livro? 
            Paulo relata que ganhou um certo livro de presente – presente de grego, segundo o próprio amigo que lhe presenteara – e que, a despeito de se tratar de autor renomado, parece que o tal livro não agradou, nem ao amigo nem ao Paulo. Para o primeiro, trata-se de “livro chatíssimo”. Para o segundo, “livro pesado, monótono, prolixo, repetitivo, em muitas páginas cansativo e até sonífero”.
Com tantos predicados, (“o autor é conceituadíssimo, quase unanimidade nas letras nacionais, domina à perfeição a língua, com elegância no estilo e perspicácia no traçado de ideias originais; o tema é do mais alto interesse e a pesquisa histórica, impecável; a edição, se não é luxuosa, é sóbria e agradável”), e mesmo assim o livro não agrada, torna-se inevitável a pergunta: “O que faz um bom livro?”
            A inspiradora crônica do Paulo aguçou-me o desejo de contar o sucedido comigo dias atrás, naturalmente sem a mesma maestria e arte do ilustre esperantista, mas que tem certa analogia e poderá adicionar algum elemento interessante à crítica literária.
            Há meses venho acompanhando pelos jornais a notícia de que estava próxima a publicação de Machado, de autoria de Silviano Santiago; a cada visita que fazia à livraria (sempre a mesma), indagava pelo livro, ainda por vir à luz. O próprio autor informava que não se trata de biografia propriamente dita, mas de mistura de ficção, história, ensaio, alguns dados biográficos dos últimos anos da vida do grande Machado de Assis, autor por quem ele sempre teve a máxima admiração, enfim, os ingredientes são de dar água na boca, ainda mais que tratados pelo conceituadíssimo Santiago, que há anos vem trabalhando na obra.
            Até que dei de cara com Machado, bem à minha frente, logo na entrada da livraria, e o coração disparou, do mesmo modo que disparava quando eu esperava que a loja abrisse para comprar o último romance de José Saramago, no dia do lançamento; levava o livro para casa, iniciava imediatamente a leitura, emocionava-me sempre, e tanto melhor o livro mais triste eu ficava ao terminá-lo; restava-me esperar o próximo lançamento do português. E assim foi com o livro de Santiago, amante que todos somos do Mago do Cosme Velho.
            Paulo, que prima pela elegância, não deu nome aos bois; para o objetivo da crônica dele não vinha mesmo ao caso nomear, e acho pouco provável que se trate do mesmo livro: a coincidência reside em outro aspecto: Na Grande Decepção!
            Findo o primeiro capítulo, incrédulo, fechei o livro, lembrei-me de meu avô que gostava de uma certa expressão, passadiça nos dias de hoje, Que maçada! (Saiba o leitor que maçada também pode significar o duro golpe desfechado com uma maça! Aplica-se ao caso em questão, de modo figurativo, é claro.)
            Aquilo não estava acontecendo, pensei, o livro iria melhorar, alguma história interessante haveria de surgir em se tratando de Machado de Assis, só poderia vir algo de muito bom, o autor estava apenas no aquecimento, nos preliminares, que eu tivesse paciência, coisa que tenho cada vez menos com o passar da idade, diferentemente do Paulo, praticamente um herói, pois chegou ao final do livro dele (um outro livro, repito), homem disciplinadíssimo que é, um verdadeiro Jó, um asceta, o que lhe possibilitou que escrevesse a brilhante crônica a que fiz alusão no início, e não esta bosta de crônica que agora escrevo, puto-da-vida por perder meu precioso tempo com o Machado do Santiago, a ponto de começar a perder as estribeiras e começar com os palavrões costumeiros do Louco por cachorros, Mas que merda!
            Passei pois ao segundo capítulo: a mesma xaropada! Com a agravante que surgiram novas personagens, todas desinteressantíssimas, ocupando o espaço que eu esperava ser dedicado ao velho Machado, meu herói.
            Terceiro capítulo: mais do mesmo! Quarto capítulo: ah! não, assim não dá! Enlouqueceu o Natal ou enlouqueço eu? Senti que eu havia perdido alguma coisa, uma passagem sutil, algumas entrelinhas, faltava-me compreensão, eu não estava à altura do que lia, isso mesmo, a deficiência era toda minha, o livro devia ser bom, precisava voltar ao princípio, proustianamente em busca de algo perdido.
            Fechei o livro e tornei a abri-lo. Foi aí que me dei conta de uma ilustração em cores, a Transfiguração, do glorioso Rafael, logo na terceira folha, a qual tinha me passado despercebido. Assim, sem qualquer comentário adicional, sem qualquer explicação, apenas Transfiguração, Rafael.
            Veio-me um estalo! Fui ao segundo capítulo de Machado, página 49, e reli o seguinte trecho:

“A arapuca foi armada pela minha admiração ao romancista Machado de Assis e, como pardal cheio de fome à cata de alpiste numa manhã de inverno carioca, sou seduzido pelo volume que recolhe as cartas trocadas nos últimos anos de vida.
            As dez digitais dos meus dedos, já semiapagadas pela velhice da pele, ganham dez olhos de sondar e explorar o livro antes de lê-lo. Apropriam o significado das páginas e mais páginas antes que sejam percorridas pelo sol da atenção. As duas mãos se transformam em memória epidérmica das palavras impressas. Num desses espantosos passes de mágica, que vêm desde sempre norteando, ilustrando e reestruturando minha própria vida, as cartas escritas e recebidas pelo famoso escritor brasileiro do século XIX se interiorizam entranhas adentro em processo inédito de metamorfose. No novo milênio, encontram abrigo sob as asas da minha imaginação.
            Transfiguro-me. Sou o outro sendo eu. Sou o tomo V da correspondência de Machado de Assis: 1905-1908.”


            Aí está! A pintura de Rafael retrata a transfiguração de Cristo no Monte Tabor, levitando entre a Terra e o Céu, acompanhado dos discípulos Pedro, Tiago e João, com suas vestes brancas, banhado em luz, falando com Moisés e Elias, personagens do Antigo Testamento, revelando assim a sua essência divina. Da mesma maneira, Santiago, que se utiliza de expressões como “passes de mágica”, “processo inédito de metamorfose”, “asas da minha imaginação”, confessa que se transfigura, sendo o outro e sendo ele mesmo: o deus Machado de Assis e o filho Silviano, feito da mesma divina essência, agora são um só. Silviano é Machado de Assis!
            Em outras palavras, Silviano delirou. E como ele não pode ser Machado de Assis – ninguém o será jamais –, perdeu-se na prosa delirante desconexa boba chata melodramática repetitiva sonífera insuportável.
            Ou deliro eu? Quem sou eu para criticar Silviano Santiago, que por três vezes ganhou o prêmio Jabuti, recebeu o prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto da obra. “Afinal, o autor é conceituadíssimo, quase unanimidade nas letras nacionais, domina à perfeição a língua, com elegância no estilo e perspicácia no traçado de ideias originais; o tema é do mais alto interesse e a pesquisa histórica, impecável...”: reproduzo as  palavras que Paulo empregou para descrever de forma tão brilhante o autor do livro que ele leu (um outro livro, não o meu, nunca é demais repetir...).
            O mais provável é que minha explicação do porquê o livro não é bom – o  delírio do autor – seja mesmo fruto de um delírio meu. Ando delirando ultimamente, coisa da idade, agora que passei dos 70, pois não é que pensei ter assistido pela tevê a troca do prêmio de melhor filme no Oscar desse ano?, pois não é que um ministro do Supremo mandou soltar um conhecido assassino?, pois não é que os políticos vão acabar tornando o caixa 2 algo normal?, pois não é que o Trump descobriu atentado terrorista na Suécia?, e assim se desenrola a não-trama de Machado, o autor pulando de galho em galho, falando de gente desconhecida, gente chata, só não fala de quem deveria ocupar todas as páginas do alentado volume, prolongando-se “em repetições e prolixidade inexplicável”, como bem afirmou Paulo sobre o livro que ganhou do amigo-da-onça (diga-se que a construção paulina está corretíssima, inexplicável é a prolixidade, embora se ele escrevesse em repetições e prolixidade inexplicáveis também estaria corretíssimo, o plural referindo-se a ambos os substantivos, muito bem empregados por sinal), o autor pulando de galho em galho, repito como repete Santiago incansavelmente, exausto fica o leitor, dai a César o que é de César porque tantas vezes vai o pote à fonte que um dia ele se quebra, daí que acabada a galinha, acaba o resguardo, agora não resta mais dúvida de que eu deliro.

            Confesso, interrompi a leitura no quarto capítulo, impaciente, rabugento, puto-da-vida (repito), cuspindo cobras lagartos lagartixas calangos gambás fétidos, pulei para o último capítulo na esperança de que Santiago descrevesse com a arte que lhe é peculiar a morte de Machado de Assis. Nem isso. A mesma chatice, a mesma prolixidade, a mesma falta de rumo, fluxo, caminho, estrutura, o que Paulo chamou de “falta de costura” (referindo-se ao livro dele, não ao meu, repito, como repetiria Santiago).
            Bem, aí está o que chamei de A Grande Decepção. E por que o autor precisa ser sempre brilhante? Alguém acerta sempre nesse mundo de deus?
            Agora, o que faz um bom livro, isso não faço a menor ideia.


segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

Cícero Dias em Brasília

Cícero Dias nasceu em Escada, Pernambuco, em 1907, e passou a infância num engenho, na Zona da Mata pernambucana. Em 1920 foi para o Rio de Janeiro, estudou pintura e conheceu os modernistas.
Em 1927, realizou sua primeira exposição individual, no Rio de Janeiro, com grande sucesso de crítica.
Em 1937, expôs em Nova Iorque; em seguida viajou a Paris, onde se fixou definitivamente, tornando-se amigo de Picasso, Paul Éluard e outros artistas. Durante a ocupação da França foi feito prisioneiro dos alemães.
Em 1943, participou do Salão de Arte Moderna de Lisboa, onde obteve premiação e, em 1945, voltou a Paris e ligou-se aos abstratos.
Em 1965, a Bienal de Veneza realizou uma exposição retrospectiva de quarenta anos de pintura de Cícero Dias. Em 1970, realizou individuais no Recife, Rio de Janeiro e em São Paulo. Em 1981, o MAM realizou retrospectiva de sua obra.
Na década de 1960, Cícero volta à pintura figurativa. Permanecem em seus quadros o clima de sonho e os elementos recorrentes: mulheres, casarios, folhagens, o mar.
Morreu em 28 de janeiro de 2003, em Paris.
Eis algumas aquarelas da fase inicial do pintor, expostas em Brasília (CCBB) atualmente:




Os sobrinhos do Prof. Piccard (década de 1920)



Freiras e meninas (idem)



Noivos (idem)



Banho de rio (1931)



O sonho (1931)


Amizade (1929)



Jogos (1928)


sábado, 25 de fevereiro de 2017

Moonlight



            Moonlight, o filme dirigido por Barry Jenkins, que também assina o roteiro, é autobiográfico, segundo o próprio diretor.
            Chiron, chamado pelos colegas de Litlle (Pequeno), é vítima de abandono afetivo durante toda a infância. Ele tem uma “mãe morta”, na concepção de André Green, psicanalista francês nascido no Cairo (1927-1912). A mãe, prostituta e viciada em crack (Naomie Harris, com ótima atuação), oferece a Chiron o que há de pior para uma criança: a falta de afeto. (Se esta mãe viesse a morrer, provavelmente o menino teria um destino melhor, seria adotado por Teresa, que às vezes faz o papel de mãe. Isso pode ocorrer na vida real.)
            Pai, Chiron nunca teve. Até que surge John (o excelente ator Mahershala Ali), um traficante de crack que se impressiona (chega a se emocionar em certo momento) com a apatia e mutismo do garoto, e faz as vezes de pai.
            Esta é apenas a introdução para o que virá depois!
            Chiron adolescente e adulto revela as consequências daquela infância traumática, pobre em afeto: um homem triste perdido no mundo.
            No entanto, o filme que parece igualmente pobre pela descrição que apresento até aqui, torna-se extremamente rico, pleno de sensibilidade, originalíssimo, com a introdução da sexualidade como elemento fundamental na vida de Chiron. O tema não tem sido tratado no cinema entre os negros.
            Um grande filme, para ser visto, revisto, e discutido com que gosta de cinema. (Recebeu 8 indicações para o Oscar, o que não tem a menor importância.)