quinta-feira, 10 de setembro de 2020

Duas irmãs


Josefa e Ofélia nasceram com apenas um ano de diferença, de modo que eram tratadas como gêmeas, tamanha a semelhança física entre elas, parecença que acentuava com o passar dos anos, elas entradas nos quarenta. A despeito dessa característica, eram inconfundíveis perante a sociedade de C., cidade pequena onde nasceram e sempre viveram, por razões que passo a expor. 

A família era de pequenos proprietários de terra, todos envolvidos com pecuária, remediados apesar das oscilações constantes do preço do leite. A produção de queijo era bem mais rendosa, porém a trabalheira era sem conta, trabalho duro interminável sem domingo nem feriado nem dia santo para manter a fabriqueta funcionando, a qualidade dos produtos a ganhar fama na região, queijos de tipos variados exportados até para São Paulo, onde eram vendidos por uma fortuna em lojas especializadas.

Foi daí que surgiu a primeira rusga entre as irmãs.  A pequena Fábrica de Queijos Santa Madalena ganhou nome e cobiça de Ofélia. Sem  conhecimento da irmã, ela foi ao cartório e registrou a empresa em seu único nome, assinou a carteira de trabalho de Josefa, agora uma simples empregada, paga com salário mínimo. Estava fechado o negócio.

A população de C. não chegou a se escandalizar, havia precedentes. Há poucos anos o marido de Ofélia havia morrido do coração, Chagas, morte súbita. Ofélia não verteu lágrima; contratou advogado seu amigo de infância e abocanhou a herança deixada por Dionísio, uma casinha, pequena roça de milho, uma dúzia de cabeças de gado, a criação de porcos, deixando os três filhos do primeiro casamento do falecido na miséria.

A irmã Josefa estaria melhor em um convento; aceitava de bom grado as atitudes da irmã mais velha, concordava calada cabisbaixa como quem comungasse com as ideias de Ofélia; no fundo, bem no fundo, percebia o egoísmo doentio da irmã e entristecia com isso. Josefa era de paz, queria apenas cuidar de seu avencário.

Correu mundo a fama de Ofélia, de pessoa má, perversa, nefasta, malévola, virosa, molestosa, deletéria, maligna, funesta, venenosa e envenenada, sinistra, e para alguns, amaldiçoada mesmo – tinha parte com o coisa-ruim, o capiroto. Quem se metesse a negociar com ela sairia perdendo, isso era batata.

Daí que houve um certo alvoroço quando correu a notícia que Ofélia iria se casar novamente. O homem era bem mais velho que ela, possuía bens, de modo que a população de C. ficou de orelha em pé, o leitor há de me desculpar a expressão batida, mas que descreve bem a expectativa de todos que conheciam a megera. Aí tem coisa, se comentava pela cidade; a suposição era evidente: o homem não demoraria a morrer, seu único filho sofrera morte súbita ainda jovem, Chagas, vaticinaram os médicos; ele vivia com duas irmãs mais novas, bem simplórias e fáceis de enganar; era mais uma herança a ser embolsada por Ofélia. 

O homem não morreu: dois meses após o matrimônio sofreu um derrame, ficou paralisado de um lado, completamente mudo, desorientado, um imprestável largado numa enxerga, no dizer do Ofélia. Ela não se deu ao trabalho de levá-lo ao hospital. O paciente recebeu a visita do Dr. Faustino, o médico mais antigo da cidade, que com frequência nem cobrava pela consulta e que colocou a mulher a par do triste prognóstico, Ele pode viver muitos anos nessa condição, Dona Ofélia. 

Ofélia não pensou duas vezes: devolveu o marido para a família. As irmãs que cuidassem do traste.

Dessa vez Josefa não se aguentou calada. Procurou pela irmã, chamou-lhe à razão, aquilo era demais, Um pouco de piedade pelo amor de Deus, Não tenho tempo para piedade, preciso cuidar da nossa indústria de queijos, Mas Ofélia..., Nem mais nem menos!, o monstro despachou a irmã, Mas que bobinha!, ainda exclamou.

Passados seis meses, as irmãs que cuidavam do ex-marido de Ofélia precisaram se ausentar da cidade por um dia, em visita a uma amiga doente, e não encontraram quem pudesse cuidar do enfermo. O remédio era apelar para a ex-mulher, quem sabe ela poderia ajudar, quem sabe um sopro de arrependimento e misericórdia.

Expuseram com cuidado o problema a Ofélia, não podiam deixar de visitar a amiga portadora de um cancro à beira da morte, seria apenas por um dia, será que poderiam contar com ela? A resposta veio curta e grossa:

– Ajudo, mas cobro a diária.