Freud e o amigo Fliess, no início de 1890.
Um amigo fraterno, seguidor deste blog, e que inicia
a formação em Psicanálise, dirige-me a seguinte pergunta, para ser respondida –
um pedido dele – no Loucoporcachorros: “Por que é importante à formação do
psicanalista o conhecimento da biografia do Dr Freud?”. Ele argumenta ainda que
“em outras ciências isso não é necessário em absoluto”.
Comecemos pelo princípio. De fato, Freud, ao escrever
o artigo Recomendações aos médicos que
exercem a psicanálise (Ed. Standard Brasileira, Vol. XII, p. 125, 1912),
não fez qualquer referência à necessidade da leitura da própria biografia. Esta
leitura, portanto, não é indispensável.
Todavia, em muitos momentos a vida de Freud
confunde-se com a própria ciência que ele desejava fundar. Sim, porque ele é
considerado o criador da
Psicanálise.
Dois bons exemplos desta inter-relação entre vida e
obra são a autoanálise e a interpretação dos próprios sonhos. Evidentemente,
Freud não dispunha de um colega psicanalista, para que pudesse ser por ele
analisado. Dispôs-se então, com incrível disciplina, perseverança, coragem
acima de tudo, a iniciar o que ele chamou de autoanálise. A tarefa era
dificílima, se não impossível; certamente foi realizada de forma imperfeita e
incompleta. Mas era o que ele podia fazer naquele momento, dispondo apenas de
seu gênio.
A interpretação dos próprios sonhos é parte
fundamental desta autoanálise. Este trabalho minucioso, diuturno, pôde ser
compartilhado com alguns amigos, através de uma infinidade de cartas, em
particular com Wilhelm Fliess (1858-1928), médico otorrinolaringologista, de
quem Freud tornou-se íntimo. (Penso que é indispensável a leitura de algumas
destas cartas, saborosíssimas porque muito bem escritas!1)
Na longa carta datada de 15 de outubro de 1897
(anterior, portanto, à Interpretação dos
sonhos), endereçada ao “Querido Wilhelm”, onde um importante sonho é
relatado, lemos:
“... Ser totalmente
franco consigo mesmo é um bom exercício. Uma única ideia de valor geral
despontou em mim. Descobri, também em meu próprio caso, o fenômeno de me
apaixonar por mamãe e ter ciúme de papai, e agora o considero um acontecimento
universal do início da infância, mesmo que não ocorra tão cedo nas crianças que
se tornam histéricas. ... Se assim for, podemos entender o poder de atração do Oedipus Rex, a despeito de todas as
objeções que a razão levanta contra a pressuposição do destino. ...Cada pessoa
da plateia foi, um dia, um Édipo em potencial na fantasia, e cada uma recua,
horrorizada, diante da realização de sonho ali transplantada para a realidade,
com toda a carga de recalcamento que separa seu estado infantil do estado
atual.”
Aqui nesta carta, onde a intimidade do autor é corajosamente exposta, vida e obra se
confundem. Não fosse por qualquer uma dessas razões, ou por tantas outras, o
fato de tratar-se de um gênio, como poucos até hoje, só isso justificaria a
leitura da biografia de Sigmund Freud.
É o que penso sobre a
questão levantada por meu amigo. Ele tem razão quando afirma que isso não se verificou em outras ciências. A vida de Albert Einstein pouco ou nada tem a ver com a Teoria da relatividade em si mesma. Tampouco a de Charles Darwin com a Teoria da evolução das espécies. Com Freud, foi diferente.
(1) Masson J M, editor. A correspondência completa de Sigmund Freud para
Wilhem Fliess – 1887-1904, Imago editora,1986.