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quinta-feira, 19 de setembro de 2013

H de Haicai


俳句


ainda há lugar para o haicai
nos tempos de hoje?

dias de gás sarin
líquido incolor e sem cheiro
que mata sem ferimentos
e é proibido
até nas guerras
quando matar é permitido

ainda há lugar para o haicai
em tempos de fome?

a fome da África
eterna e desumana
a fome dos refugiados
nos campos do Oriente
enquanto o Ocidente
esbanja diplomacias

ainda há lugar para o haicai
em tempos de analfabetismo?

se não pode ler
ou se não compreende
aquilo que lê
a alma permanece
primitiva e pobre
– perde-se o haicai

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

D de Dispersar


“Nenhum homem é uma ilha”, afirmou John Donne no séc. XVII.
           
“Todo homem é uma ilha”, retrucou José Saramago no séc. XX.

Digo que cada palavra é uma ilha, e seu sentido decorre do mar em que flutua.

Tomemos a palavra DISPERSAR, verbo com múltiplos significados e analogias:

desabelhar, desbaratar, debandar, derramar, alastrar, espraiar, distanciar, separar, defluir, descentralizar, vagar, espalhar, disseminar, desmembrar, grassar, arramar, repartir, circunfundir, circunfluir, propagar, invadir, infestar, inçar, contagiar, pegar, desdobrar, desenvolver-se, lavrar, infiltrar-se, irradiar; pôr em fuga/em debandada, esquadrilhar, desenxamear, desarregimentar, licenciar, dissolver, pulverizar, semear, sementar, difundir, desconcentrar, desacumular, desacavalar, desmontar, desarmar, espargir, esparzir, atirar aos ventos, impelir para diferentes partes, borrifar, salpicar, desgarrar-se, extraviar-se.

São sinônimos, analogias, similitudes, porém cada palavra guarda sua feição particular, única, inconfundível, tal qual uma ilha. A depender do mar:

DISPERSAR, é o que fazem as Escolas de Samba quando chegam ao final do desfile, carros alegóricos vão para terrenos baldios, os sambistas conversam sobre o desempenho da Escola, avaliam as chances de ganhar o campeonato, uns choram, outros riem, algumas fantasias são guardadas para o próximo Carnaval, outras vão para o lixo, as crianças para a cama, os adultos todos tomam suas biritas e cantam cantam cantam o samba-enredo.

DISPERSAR, é o que fazem os manifestantes mascarados quando a polícia chega e baixa o pau, espirra gás de pimenta, explode bomba de efeito moral, atira gás lacrimogêneo, desfere tiros com balas de borracha e balas de verdade, cada um por si e deus por todos, correria geral, alguns vão para casa, outros para o pronto-socorro, um número menor para a delegacia, talvez reúnam-se horas depois para a avaliação dos resultados e traçar novas estratégias e, quem sabe, tomar suas biritas.

Uma coisa é dispersar em mar de alegria e felicidade, outra é dispersar em mar de violência e sangue. O mar dá sentido à palavra. Como o outro dá sentido à ilha que somos.


quinta-feira, 30 de agosto de 2012

P de Palavra


 Da série Abecedário Pessoal
           

   Começo a procurar uma palavra, que de alguma forma me seja cara, especial, significativa, íntima, para acrescentar ao meu Abecedário Pessoal, e me deparo com a existência deste mar oceano a que chamamos dicionário, imensidão em superfície e profundidade. Porque há palavras que boiam, sobrenadam, pertencem à superfície das coisas e das ideias. Consciência, por exemplo, e não sei bem por quê, é colocada sempre na superfície, em oposição à profundidade onde se encontra o Inconsciente. Ou, pelo menos, assim os humanos as dispomos, nem sempre de forma racional.

   Tão logo inicio minha busca e percebo que minha escolha (talvez inconsciente) recai sobre a Palavra. Mas de que Palavra estarei a falar? Da palavra dada, empenhada, palavra de Deus (sobre todas as coisas), de honra, de rei (aquela que não volta atrás), de prata (pois o ouro pertence ao silêncio), da palavra fácil (nem sempre muito responsável), da autorizada (que tem peso), ou da palavra por palavra (vã), daquela adocicada, açucarada, melíflua, amarga, ríspida, áspera, dura (às vezes necessária), ou da palavra mole (sem consistência), oca (que, quando se junta a outras tantas vazias, damos o nome de palavreado ou palavrório), econômica (talvez mais próxima da sabedoria), profética (que antecipa), estranha (estrabuleguice, lanfranhudo, afuazado, grugunzar, mangorra, catrâmbias, abrenuncio, baldroca, todas dicionarizadas, diga-se de passagem), ou da bombástica (explosiva), retumbante (que ecoa), da palavra amiga (feita de mel), palavra que não enche barriga, ou do palavrão (espécie particular, de múltipla utilidade e vítima de enormes preconceitos)? De que Palavra estou a falar?

   De nenhuma delas e de todas elas.

   O vocábulo, informa o dicionário etimológico, vem do grego parabolé, que no latim ficou parabola, e acabou em palavra, na última flor do Lácio. É assim que as palavras vão mudando de forma e significado ao longo do tempo e conforme o uso: Parábola transmudou-se em transmissão de preceitos; Palavra não, serve pra dizer tudo, sem qualquer restrição moral. A liberdade da palavra é o que mais aprecio: a mesma palavra, para diferentes pessoas, tem significados diferentes (o que complica muito a vida da gente!). Também interfere no significado de uma mesma palavra a entonação, a altura, o timbre (qualidades do som) com que é proferida. Isso não é incrível?!

   Como controlar todas estas variáveis, por parte de quem fala? Daí que parece mais seguro escrever do que falar. Porém, quando se escreve, a palavra fica registrada, outro tipo de perigo. A palavra dita, o vento leva; a escrita, permanece.

   Inventaram até que não se pode pecar em palavras, atos e pensamentos! Isso também é incrível: a palavra que não pode nem ao menos ser pensada! E como impedir que a palavra pensada venha à nossa mente? Então, se ela vem, independentemente de nossa vontade, só nos resta a sensação de culpa?

   Ah!, ninguém manda na Palavra.

   Por isso é que, para mim, em meu Abecedário Pessoal, P é de Palavra!

           



quinta-feira, 3 de maio de 2012

E de Escrever

Da série Abecedário Pessoal


Para alguns, escrever é martírio, suplício, penitência, castigo, sufocação, asfixia, ameaça de morte. O sentimento costuma ser expresso numa frase simples e definitiva: não gosto de escrever. Como quem diz: não gosto de cachorro. Ou, para outros: não gosto de gato. Dito assim, não há mais o que pensar sobre o assunto: não gosto e pronto.
            Para muitos, escrever é como respirar o ar da montanha, comer uma comida gostosa, beber água gelada ou vinho bom, ler um ótimo romance. Mas ninguém é indiferente ao verbo escrever, a ponto de podermos dividir a humanidade em duas categorias: as pessoas que gostam de escrever e as que não gostam.
            Visto está que pertenço à categoria daqueles que gostam de escrever, ou o leitor não estaria lendo o que agora lê. Mas estou só, escrevo só, que o processo é mesmo solitário e por ora ainda não há leitor algum. Nesse instante, sou meu próprio leitor, ou leitor de mim mesmo.
            Quando um compositor registra as notas da nova composição na partitura – vale dizer, no ato da criação – ainda não há música, não ao menos como a conhecemos, nós meros ouvintes: uma sequência de sons e silêncios. Bem verdade que já há um outro tipo de música, aquela existente (ou pré-existente) na mente do compositor, e que só ele é capaz de ouvir, porque feita de silêncio ainda. Podemos pensar então que a música ganha existência real – ganha vida, podemos dizer – quando é tocada por um ou múltiplos intérpretes, e por nós ouvida.
            Com o escritor isso não acontece. Antes mesmo que algum leitor se apresente, o texto já é um texto, ganha vida própria assim que é escrito. Ele pode ser lido, relido, editado (até à exaustão, caso o autor seja um neurótico perfeccionista), por aquele que acaba de escrevê-lo. Torná-lo público é uma outra questão. Kafka que nos diga!
            A esta fase, a da publicação, aqueles que não escrevem evidentemente não chegam a ela. (Um problema a menos, portanto.) Os que escrevem conhecem bem o dilema: publicar ou não publicar, eis a questão! Porque traz à luz a existência do Outro. Aquele que escreve, em teoria ao menos, pode escrever apenas para si. (O escritor profissional escreve sempre para o outro.) Quando o autor pensa em publicar, o Outro surge com força e a repercussão deste fato sobre aquele que escreve torna-se inexorável. O autor projeta suas ideias e pensamentos e, em seguida, esta projeção volta-se para ele mesmo, em sua direção, e ao recebe-la ele já não será o mesmo, e seu texto já não será o mesmo.
            Independentemente do dilema da publicação, ou antes dele, para alguns surge aquilo que podemos chamar de a necessidade de escrever. Não se trata apenas de um desejo, capricho, veleidade, veneta, extravagância, esdruxulez, frivolidade, mania, telhice, luada, destempero, pendor (ou falta de pendor), mas de uma necessidade. Como pré-requisito, apenas este gosto pelas palavras. Gosto que também se manifesta no ato da leitura. Para aquele que escreve, ler e escrever são irmãos siameses: desde sempre. Mas há um momento em que a necessidade da escrita suplanta o prazer da leitura; o escritor já não pode ler o que o Outro escreveu; está concentrado (condenado?), possuído mesmo pela própria necessidade de escrever, e esta não pode ser perturbada; a busca agora é da própria palavra original, pessoal, sem contaminação.
Daí o sentido de se encontrar o abecedário próprio de cada um. Para alguns, E é de Espanto; ou Estorvo; ou Erudição; ou Engravidar; ou Espernear; ou Erradicar; ou Experimentar; ou Epifania; ou Empreendimento; ou Escape; ou Estupidez; ou Estultícia; ou Esperança; ou Esperanto; Entre-outras-coisas...
            Em meu abecedário atual: E de Escrever.

quinta-feira, 29 de março de 2012

C de Clareira

Da série Abecedário Pessoal

A palavra mais bonita da língua portuguesa não é saudade, é clareira.
Claro está que se origina do latim clarus, e tem como derivados aclaração aclarador aclarar clara clarão clarear clareza claridade clarificação clarificar clarividência claraboia esclarecer esclarecido preclaro, findo aqui este esclarecimento.
Clara Clarice Clarisse Clarissa Clarinda são nomes de mulher - que privilégio! - com a mesma origem.
Claro é o que clareia, que alumia, que é brilhante, luminoso, resplandecente.Mas é ainda o que se distingue bem, que é penetrante, perspicaz, nítido, evidente. Quando juntamos a noção de espaço a todos esses significados, surge então a ideia de clareira. Em bosque, mata ou floresta, é o espaço onde as árvores rareiam ou faltam por completo; clarão, claro, limpo.
Se na dantesca floresta escura surge uma clareira...
Se na dantesca floresta escura surge uma clareira, posso então morrer e ali ser sepultado. Se na dantesca floresta escura surge uma clareira, posso então viver e ali ser coroado.
Clareira é lugar de descanso. Lugar de relva macia onde a luz do sol penetra livremente e alimenta as flores-do-campo regadas por um riacho de águas claras. Clareira é lugar de matar a sede.
Clareira não rima com poesia porque não precisa: é a poesia. Se o viajante, depois de árdua caminhada, encontra uma clareira, e se ele carrega na mochila um livro de poemas, ele se deita na macia relva, ao som do riacho, e lê:

caminhada

na dantesca
floresta escura
uma clareira - você

Se o viajante, depois de árdua caminhada, encontra uma clareira, e se ele carrega na mochila um livro de orações do santo Bandeira, ele se deita na macia relva, ao som do riacho, e lê:

Santa Clara, clareai

Estes ares.

Dai-nos ventos regulares,

de feição.

Estes mares, estes ares
clareai.”

Clareira é o espaço que aclara, limpo geral, e Bandeira bem que podia ter escrito:

oração do vivente

Santa Clara
clareai, mostrai-nos
uma clareira

Eis porque eu penso que clareira é a palavra mais bonita da língua portuguesa.