domingo, 12 de abril de 2020

Pobres velhos



Minha avó Cici


 “Ao ouvir que “só os mais velhos” estão sujeitos ao novo coronavírus e que a força jovem e criativa da parte dos vivos que interessa à humanidade deve voltar aos trabalhos agora para que o país não derreta, penso logo em como se sentem esses tais “mais velhos” aos quais o suspiro de alívio da frase se refere. Dizer que a doença “só mata velhos” é como dizer “tudo bem, só morre quem está com o pé na cova” ou “quem vai se abalar com a morte de alguém que já viveu tanto?” Escreveu Júlio Maria, crítico e repórter de O Estado de São Paulo, com o sugestivo título Velhos, o peso do mundo (25 mar 2020).
            Desde o início da pandemia ouço a mesma cantilena, só os velhos morrem, aqueles com mais de 60 anos, eles precisam ficar isolados. Quem tem mais de 70 então nem se fala. Se você tem mais de 80 já morreu e ainda não sabe disso! 
            A sensação que em mim despertam tais afirmações é bastante desconfortável, para dizer o mínimo. E como leio e vejo a mesma notícia todos os dias desse isolamento social, vou aos poucos me abatendo, me sentindo pária no mundo, condenado ao degredo, verdadeiro leproso isolado em uma caverna escura, longe do restante das gentes, dos mais jovens sadios imunes ao vírus.
            Como bem escreveu Julio Maria, “Os velhos se tornaram o peso do mundo”. Perfeitamente dispensáveis, já que são inúteis mesmo, acrescento eu.
            Mas como ficarão nossos netos e netas, sem cada um de seus avós? 
            Minha avó Cici, mãe de meu pai, talvez tenha sido a pessoa mais importante em toda minha infância. Discreta, silenciosa, amorosa ao extremo, tratava o menino como se ele fosse gente grande, respeitosamente. Que teria sido de minha infância sem minha querida avó Cici?
            Pensando melhor, ninguém é dispensável nesse mundo de deus. Diria Manoel de Barros:

          Até um velho jogado fora
          serve para a poesia.

            Julio Maria termina sua crônica pedindo respeito aos velhos: “Há um momento da vida em que morrer por um vírus não é o problema. O que dói é ser assassinado antes de tudo acabar.”



Moisés e o Toc


Toc

– Que menina organizada! Tudo limpo e perfumado. Continue assim filhinha – ouvia, orgulhosa.



Toc toc

Quando todos iam dormir, ela tornava a lavar a louça do jantar e assistia o ciclo completo da máquina de lavar roupas, triunfante.



Toc toc toc

O casal se mudou para um flat de quarenta metros quadrados para diminuir as tarefas. Os elevadores do edifício ficaram um brinco.



Toc toc toc toc

Madrugada. Ele se levanta silenciosamente da cama. Urina sentado no escuro. Ao sair do banheiro, ela entra de luvas, rodo e balde. Exausta. 


                   Moisés Tito Lobo Furtado,
                   para alegria do blog, pois o homem
                   é o gênio do microconto!

aos pés dos donos





aos pés de seus donos
felicidade total
de barriga cheia
          o amor incondicional
          que nos dedicam os cães



Foto: autor desconhecido

camélias





jardim em silêncio
quando as camélias florescem
das flores, rainha
            verdadeiro encantamento
    pureza e intenso perfume






Fotos: AVianna, mai 2020

Tanka e Renga




pleno fim de outono
o imperador do jardim
jequitibá-rosa
            as folhas ainda verdes
            enfeitam o céu azul

***

            Tanka é um tipo de poesia japonesa formada por 31 sílabas, distribuídas no formato 5-7-5/77, em 2 estrofes. Importante notar que os dois últimos versos não podem ser uma continuação natural, explícita, dos três primeiros, embora devam ter significado correlato.
            Depois de algum tempo, por volta do século XV, o tanka passou a ser composto por duas pessoas, um responsável pela primeira estrofe, outro pela segunda. Recebeu então o nome de Renga.  
            Exemplo de renga e seus autores, Mercêdes e André respectivamente:




no escuro da noite
o roseiral sorve as gotas                                
derradeira chuva
          na manhã de fim de outono
          delicioso perfume

***


           Mais tarde a primeira estrofe do tanka ganhou autonomia, vida própria, vindo a chamar-se Haikai, forma de grande prestígio até hoje no mundo da poesia.



Fotos: AVianna e Mercêdes, abr 2020.