Antônio,
pedreiro de profissão, considerava sagrada a missão de deixar o filho de seis
anos na escola, antes de dirigir-se para o trabalho. Saíam cedo de casa, de
bicicleta, uma Philips antiga mas em boa forma, o menino na garupa, abraçado ao
pai.
O trajeto
era quase sempre plano, exigindo pouco esforço de Antônio, já entrado nos
cinquenta, fora o desgaste produzido pelo contínuo trabalho pesado, pedra
cimento areia andaime concreto, tudo pesado, a minar a saúde do trabalhador.
Até que chegavam à Ladeira da Misericórdia, íngreme subida, interminável,
extenuante, era preciso descer da bicicleta e empurrá-la – de que
Marcelinho mais gostava –, para chegar ao pátio da Igreja Nossa Senhora da
Consolação, aí sim, o trajeto voltava a ser plano macio.
Bem no meio
da ladeira havia uma casa antiga, espaçosa, e uma bonita janela chamava a
atenção. Embora sempre fechada, Antônio podia ouvir o
som de um piano através da janela, diminuía a marcha da caminhada, gostava do
que ouvia. Certo dia chegou mesmo a parar diante da janela por alguns minutos,
embevecido com a música, ele, humilde pedreiro, a apreciar o que lhe era
desconhecido.
Foi numa
quarta-feira que tudo começou. Em vez do som do piano, a janela estava aberta e
nela, debruçada, uma simpática mulher, com um generoso decote e pele alvíssima.
Antônio parou e respeitosamente perguntou É a senhora que toca piano? Eu mesma,
gosta? Gosto muito, mas não tenho educação suficiente para apreciar melhor,
Pois vou convidá-lo para ouvir Chopin aqui em casa, o senhor viria? Claro, com
muito gosto, E traga o menino, é seu filho? É sim, tem seis anos e o levo para
a escola todos os dias, Pois estão convidados, na próxima sexta-feira, às 8 da
noite está bem?
O diálogo
foi tão rápido quanto inesperado e Antônio exultava, excitadíssimo com a
oportunidade de conhecer de perto aquela mulher e ouvi-la tocar. Resolveu que
não levaria Marcelinho, ele ficaria com a avó, que ajudou a criá-lo, a mãe
havia morrido no parto. Viúvo, solitário, Antônio sonhava.
Beatriz
serviu um jantar bem simples, salada filé de frango suco de graviola e um
cafezinho coado na hora, e em seguida sentou-se ao piano. Tocou lindamente! Ao
terminar, explicou a Antônio, embasbacado, que se tratava dos Noturnos de Chopin.
Conversaram, Antônio aceitou mais um café, voltou para casa nas nuvens. O
convite para novo sarau na semana seguinte foi aceito como sinal de que aquela
relação parecia promissora.
No entanto,
alguma coisa que ela ainda não definira, incomodava Beatriz. Gostou do homem,
simples, bonito até, de bons modos, silencioso, e que adorava sua música. Mas...
Caprichou no
segundo jantar, preparou apetitoso frango com açafrão acompanhado de mandioca
cozida, e para aquecer o ambiente, vinho tinto, servido em taças apropriadas,
aquelas de pé longo e bojo avantajado. Queria impressionar o homem.
Antônio foi
pontual, estava nervoso, porém animado, falante, elogiou a comida, bebeu o
vinho com espanto e gosto, Forte, não? Ao levar a taça à boca foi que Beatriz
deu-se conta da razão de seu indefinido mal estar: as mãos de pedreiro.
A janela
permaneceu fechada daí em diante; ainda podia se ouvir o som do piano; Antônio
arriscou bater na porta por duas vezes, ninguém atendeu; abatido, passava
empurrando a bicicleta, diminuía um pouco a marcha, nem sombra de Beatriz.
A música permaneceu
impregnada em Antônio. Soube de uma escola de música na cidade, matriculou
Marcelinho, que mesmo sem ter demonstrado entusiasmo pela novidade, revelou
aptidão para o piano. Após um ano de estudo, Dona Augustina, a professora,
procurou Antônio e sugeriu que se mudassem para cidade grande, pois o menino
necessitava de orientação musical sofisticada, Ele tem o dom da música, é um
pequeno gênio, acrescentou Dona Augustina, para espanto do pai.
Antônio não
titubeou. Vendeu a casa que construíra ele mesmo antes do casamento, juntou
mais uns trocados, mudaram-se para a cidade grande.
Marcelinho
agora era chamado de Marcelo Dantas. Ainda adolescente, seu primeiro concerto
público foi um tremendo sucesso, aplaudido de pé, voltou ao palco por três
vezes, respondeu ao pedido de bis com dois noturnos de Chopin.
O jovem
artista tocou no exterior, tornou-se conhecido dos amantes da música erudita, porém
sua felicidade não era completa porque sentia a falta do pai, ainda trabalhando
como pedreiro na cidade grande; Nasci pedreiro, meu filho, respondia Antônio
diante do pedido de Marcelo para que fosse morar com ele no exterior.
No próximo
concerto no Brasil, Marcelo fez questão que o pai ocupasse o principal camarote
da sala. Comprou-lhe um terno novo, Antônio cortou o cabelo, aparou a barba,
engraxou o sapato de ver Deus, e lá se foram, pai e filho, de limusine para a
apresentação. Era a primeira vez que Antônio via um teatro daqueles, muitas
luzes, cadeiras forradas de veludo vermelho, a orquestra disposta
cuidadosamente no palco de acordo com o tipo do instrumento a ser tocado, muita
emoção para o pai do virtuose.
Ocupando lugar
de destaque, Antônio podia ser visto por quase toda a plateia. E, de fato, foi
visto por ninguém menos que Beatriz, que viera do interior para a ocasião, sentada
não muito longe dele. Ela esperou o momento do intervalo para que pudessem se
encontrar, ele em busca de um copo d’água, ela, uma taça de champanhe.
– Antônio,
você por aqui! Não sabia que frequentava salas de concerto!
– Esta é a primeira vez, meu filho arranjou
tudo.
– E quem é
seu filho?
– Marcelo
Dantas, o pianista.
Boquiaberta,
Beatriz deixou cair a taça de champanhe que se espatifou com estridente alarido.
Antônio nada disse. Virou-lhe as costas, voltou ao seu camarote, para a segunda
parte do concerto. Marcelo tocaria o Concerto no. 4 para Piano e
Orquestra de Beethoven.