segunda-feira, 30 de março de 2015

Rendição

A foto do dia,
sugerida por Paulo Sergio.


Ao confundir a câmara com uma arma, menina síria de 4 anos se rende.

Foto: Nadia AbuShaban

http://g1.globo.com/mundo/noticia/2015/03/menina-siria-comove-ao-erguer-maos-ao-confundir-camera-com-arma.html

Nota acrescentada em Primeiro de Abril de 2015: a foto foi tirada por Osman Sargili, segundo a reportagem: 

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/214326-turco-diz-como-fez-foto-de-crianca-que-se-rende.shtml

quinta-feira, 26 de março de 2015

O baú de Suzete


Uma trabalheira danada tem sido a catalogação das cartas, contos, poemas, aforismos, esboços, ideias soltas, distribuídos em cadernos de capa dura, cada um de uma cor, além de simples bilhetes rabiscados em papel de guardanapo, contidos no que passei a chamar O baú de Suzete. Se o leitor está lembrado, Dona Osvaldina entregou-me a correspondência da filha dois anos após a morte dela, numa enorme caixa de papelão, e que pretendo um dia publicar, nem tanto pelo valor literário dos escritos, muito mais pelo inusitado das circunstâncias – uma cabeleireira que gostava de ler e escrever. Me perdoem as cabeleireiras, mas até que – preconceito meu? – Suzete escreve bem...
            Não estou bem certo se Suzete chegava a enviar as cartas que escrevia, especialmente as endereçadas à amiga Débora. A correspondência é caudalosa, mas desconfio que ela escrevia para si, pelo prazer de escrever, pelo exercício terapêutico de escrever, embora ela não tivesse consciência disso, que a escrita pode ser terapêutica. Ou tinha?
            Reforça esta hipótese o fato de que ela não tinha com quem conversar sobre literatura, queixava-se da solidão da cabeleireira-leitora, no salão a conversa girava invariavelmente sobre fofocas das revistas baratas ou sobre as novelas da televisão. Todas as colegas sabiam da paixão de Suzete pela leitura, o que, em vez de aproximá-las, afastava as meninas, algumas chegavam a chamá-la de besta, metida, afetada, pedante.
            Então Suzete contava histórias para si mesma. É o que sugere a carta endereçada à Débora, sem data, que agora transcrevo.

“Querida Débora,

encontrei naquele sebo aqui perto de casa um livrinho de poesia de uma tal de Adélia Prado, publicado em 1976, sujinho coitado, as folhas amarelas, algumas rabiscadas por mão de criança pequena, sabe aqueles traços incertos sem direção ou sentido que só criança pequena sabe fazer?, pois é, comprei assim mesmo, baratinho. Gostei do título: Bagagem. Gostei mais ainda dos poemas, e um deles em particular tem me ajudado muito, tem me feito pensar. Mais pra frente copio ele aqui para você ver se não tenho razão.
            Como é que uma poesia pode ajudar a gente? Eu nem desconfiava que podia, agora sei.
            Vou lhe contar toda a história. Mês passado apareceu-me no salão um rapaz pedindo corte de cabelo. De início, gentilíssimo o moço. Viu meu livro sobre a bancada, com a capa voltada para baixo, como faço sempre, para não chamar atenção, mas aí é que entra a curiosidade das pessoas, ninguém resiste, pediu licença para vê-lo, concedi, naturalmente, elogiou-me a escolha, Está gostando?, Estou, Também adorei, Ah! você gosta de ler?, É o que mais gosto nessa vida, Então somos dois, só que eu gosto também de cortar cabelo de homem.
            Débora, esta minha última frase deixou o rapaz desconcertado! Ficamos em silêncio, ele sentou-se, perguntei como queria o corte, Escovinha, respondeu curto e grosso.
            Depois de alguns minutos perguntou-me Qual seu autor favorito? (Desconfio que quando as pessoas ficam sem assunto acabam fazendo esta pergunta idiota. Como autor favorito? São milhares de favoritos, não tem como responder. Devo começar por D. Quixote? Enumerar os portugueses todos, Eça, Pessoa, Saramago, Cardoso Pires, José Luís Peixoto, os africanos que migraram para Portugal, Mia Couto, os brasileiros todos, a começar por José J. Veiga, que também só se encontra em sebos, Machado, meu querido Drummond, a lista de favoritos é interminável. De onde se conclui que quem faz uma pergunta dessa não tem o hábito da leitura. E isso me irritou, dá para notar, Débora?) (Acho chique isso de escrever entre parênteses... É para que você saiba, Débora, que significa apenas um pequeno desvio, não é o centro da história, e volto a ela assim que fecho o parêntese.)
            Também não respondi. Fiquei muda. O rapaz não insistiu. Isso está me saindo um total desencontro, pensei. Para aliviar o clima perguntei Qual o seu nome? Ricardo.
            Débora, nem te conto, aí é que aconteceu a tragédia! Tive vontade de morrer, sumir do mapa, virar fumaça, explodir sem deixar vestígio. Assim que ele pronunciou o nome, como um raio, sem pensar, perguntei Ricardo Terceiro?
            Nada disso teria importância se o moço não fosse feio, Débora, mas muito feio, feíssimo, horroroso, meio aleijado das pernas, andava usando uma pequena muleta apoiada no antebraço direito, a cara esburacada, um narigão enorme, estrábico ainda por cima, e o cabelo escovinha dava-lhe um ar de pessoa pouco inteligente.
            Ele não perdeu a pose, Débora, e acrescentou, Gostei muito da peça, você gostou? Tentei corrigir, Shakespeare é um dos meus favoritos... E ele não perdoou, Mas o homem era feio, não!?
            Perdi a fala, Ricardo não disse mais nada. Terminei o corte, ele perguntou quanto era, pagou, saiu sem se despedir.
            Porra, Débora, juro que foi sem querer.
            E onde entra o poema da mineirinha Adélia Prado nessa história?, você há de estar se perguntando. Pois você veja e confira:

Amor feinho

Eu quero amor feinho.
Amor feinho não olha um pro outro.
Uma vez encontrado é igual fé,
não teologa mais.
Duro de forte o amor feinho é magro, doido por sexo
e filhos tem os quantos haja.
Tudo que não fala, faz.
Planta beijo de três cores ao redor da casa
e saudade roxa e branca,
da comum e da dobrada.
Amor feinho é bom porque não fica velho.
Cuida do essencial; o que brilha nos olhos é o que é:
eu sou homem você é mulher.
Amor feinho não tem ilusão,
o que ele tem é esperança:
eu quero amor feinho.
           
            Lindo, não é! O resto é preconceito, Débora. Tenho pensado muito nisso.
           
Da sempre sua,

                                                            Suzete.