segunda-feira, 29 de junho de 2015

A arte do microconto


Este blog, carinhosamente apelidado de Louco, não esconde sua predileção pelo microconto, gênero literário contemporâneo que faz sucesso na Internet. (Encontra-se no prelo – palavra mais antiga! – livrinho intitulado “minimalismos: microcontos, aforismos e haicais”, de autoria do blogueiro, que inicia aqui a propaganda sobre a referida obra. E adianta: o melhor do livro são as orelhas.) 
            Bem, tudo isso para apresentar, para quem não o leu, o ótimo microconto do Veríssimo, publicado neste domingo último no Caderno 2 de O Estado de São Paulo. Veríssimo nomeia sua coluna de “Contículos”, nova denominação para o microconto, também chamado de miniconto, nanoconto, micronarrativa, narrativa breve, micro-história, conto minimalista, ministória.
            Eis o contículo do Veríssimo:

Sentimento

“Quase se casaram, mas ela se chamava Dulcineide e ele pressentiu que teria problemas com os sogros.”

Uma obra prima de síntese! Um noivado desfeito por causa de um nome. Provavelmente os pais da moça foram os responsáveis pela escolha, mas que escolha! O noivo resolveu não arriscar. Quem não viu o filme Parenti serpenti, de Mario Monicelli (1992)?

E tudo isso com apenas 99 toques!

            Em resumo, aqui vai o sábio conselho do Veríssimo aos moços e moças casadoiros: preocupem-se também com a família da noiva ou do noivo. Lá estará a origem de tudo...


O roubo do orelhão

A pequena cidade do interior orgulhava-se de seu benfeitor. Era ele que, com mão de ferro, mantinha a ordem, o respeito aos valores morais da sociedade, o recato dos mais jovens, a garantia da segurança da população. Não exercia qualquer cargo oficial, e portanto não era remunerado por seu trabalho, o que lhe emprestava ares de santidade, de missionário, e por isso mesmo idolatrado. Vivia da aposentadoria de oficial reformado das Forças Armadas. Poucos, muito poucos conheciam seu nome de batismo; chamavam-no simplesmente Coronel.
Coronel seguia a cartilha do Exército, aprimorada por ele, na qual a lei continha apenas dois parágrafos, o Certo e o Errado. Nada de adendos ou incisos, que a interpretação ficava por conta dele mesmo. Bem verdade que para Coronel havia a lei de Deus acima da lei dos homens, mas isso ele deixava para o Padre – assim o presbítero era conhecido na cidade – responsável pela paróquia, porém submisso às ordens do Coronel.
Em dias de sol ou de chuva, Coronel nunca dispensava o sobretudo preto que lhe chegava aos joelhos, a esconder a pistola automática 9 mm que trazia à cintura. Homem moderno, em dia com o mundo digital, Coronel utilizava com desenvoltura os mais sofisticados programas de segurança pública e privada, armas imprescindíveis para a manutenção da segurança da comunidade, alardeava ele.
Pois foi exatamente através de seu potente computador que recebeu a fatídica denúncia, e em anexo a fotografia que não deixava dúvida sobre o crime:



Carroceiro roubou nosso orelhão!


            Havia um único orelhão em Paraíso do Leste, e era considerado pela população patrimônio inalienável (seja lá o que signifique tal vocábulo). A prefeitura mantinha o aparelho em perfeito funcionamento, embora fosse pouco utilizado nessa era de celulares, o que de modo algum seria considerado uma atenuante para o pérfido larápio.
            Coronel, ao receber a mensagem e ver a fotografia espumou de ódio. Há anos não havia um único caso de roubo em Paraíso do Leste, do que ele muito se orgulhava, e agora o roubo do orelhão, logo do orelhão, aquele patrimônio da cidade. Coronel sentia-se desonrado, sua autoridade desafiada, sua macheza posta à prova. Desligou o computador, colocou o cinturão com a 9 mm, vestiu o sobretudo preto, saiu feito louco atrás de Carroceiro.
            Todos na cidade conheciam Carroceiro, homem pacato nos seus 50 anos, meio bobo, pobre de espírito, sujo, catador de papel, garrafas vazias, latinhas de alumínio, qualquer ferro velho; tudo que fosse enjeitado pelo povo de Paraíso do Leste – ele mesmo um enjeitado –, servia para Carroceiro. Perambulava incansavelmente pela cidade, dormia debaixo de qualquer marquise ou árvore, revirava lixo atrás de restos de comida, sempre seguido por Diógenes, um vira-lata de cor indefinida, porte médio, cão esperto, fiel, amigo inseparável, que caminhava à sombra da carroça.
            Bastou que Coronel desse algumas voltas pela cidade em seu indefectível (seja lá o que esta palavra signifique) jipe 4x4 para que localizasse o meliante, tomando a fresca debaixo de uma mangueira.
            – Você está preso, seu safado.
            – Mas o que foi que eu fiz?
            – Não abre a boca ou lhe arrebento o resto de seus dentes. Vamos para a delegacia.
            Diante de Delegado – assim ele era conhecido na cidade –, outro subalterno de Coronel, começou a tortura.
            – Diga lá onde enfiou nosso orelhão!
            – Mas que orelhão?
            E tome safanão, coronhada, e quanto mais negava mais porrada, aí vieram os choques elétricos, especialidade de Coronel, artifício infalível, segundo ele, e Carroceiro negava, Que orelhão?, e era pau-de-arara, as unhas sendo arrancadas uma a uma, sessões de afogamento, sal grosso jogado nas feridas, É pra não infeccionar, debochava Coronel, Sei não Sei não Sei não, era só o que Carroceiro repetia, e quanto mais repetia mais apanhava, Delegado começava a fraquejar com pena do homem e tomava esporro de Coronel, Seja macho, Delegado, ou vamos ficar sem nosso orelhão, Sei não Sei não Sei não, sangue vertendo por tudo quanto era buraco na cara de Carroceiro, e quanto mais sangrava mais apanhava, Sei não Sei não Sei não, e quando Coronel mandou trazer o saco plástico foi que se ouviu pancadas na porta.
            – Que porra é essa? Eu não disse para não ser interrompido? – gritou Coronel.
            Mais batidas na porta, agora com insistência. Delegado resolveu abrir, era o Cabo – assim era conhecido em Paraíso do Leste.
            – Desembucha logo, caralho!
            – Coronel, o orelhão está lá...
    – Lá onde, seu veado?
            – Lá, onde sempre esteve...
           
            Nunca se soube quem fez a denúncia e enviou a fatídica fotografia a Coronel. Muito machucado, Carroceiro retornou à labuta diária, seguido por Diógenes, que permanecera à porta da delegacia até a soltura de seu amo. Quem cruzasse com Carroceiro pelas ruas de Paraíso, sempre de cabeça baixa, poderia ouvi-lo repetir o monótono murmúrio, Sei não Sei não Sei não...



sexta-feira, 26 de junho de 2015

haicai caipira ou haicai de são joão


na roça, o inverno
coruja não sai da toca
frio dos inferno


José Pedrosa, escultor





José Pedrosa (1915-2002): Dois nus femininos entrelaçados.
Bronze, 26 x 34 cm.
Pinacoteca do Estado, São Paulo.

Fotos: A.Vianna, jun 2015.

Orelhão móvel?

A foto do dia!


A foto sensacional, de autoria de Paulo Sergio Viana, foi tirada em Lorena, SP, e dá margem a diversas especulações:

1. trata-se de orelhão móvel?

2. obsoleto, o orelhão está sendo tirado de circulação?

3. ou simplesmente está sendo surrupiado pelo carroceiro?

4. propaganda de alguma outra marca de telefonia?

5. tão somente a Arte do fotógrafo?

Parabéns, Paulo!

quinta-feira, 25 de junho de 2015

Fascinação

Ao completar 115 anos de idade, ganhou de presente o único objeto que de fato a fascinara ao longo da vida: uma calcinha de renda.    


A visita

Ao meu irmão Paulo.


O almoço de domingo, regado a caipirinha e cerveja, ainda não havia terminado quando Fagundes recebeu de sua mulher a terrível notícia:
            – O Ferreirinha virá visitá-lo hoje à tarde...
            – Que merda, Matilde! Esse chato do Ferreirinha então não sabe que hoje tem jogo do Corinthians? Só porque ele não gosta de futebol há de pensar que ninguém mais gosta? Um grandessíssimo filho da puta, isso sim! E você, o que disse, Matilde?
            – Nada, ora bolas! Dizer o quê? Para ele não vir?
            – Pois então, se vire, Matilde. Diga que estou com uma gripe fortíssima, diga que estou com caganeira, diga que estou com Ebola, diga o que você quiser, mas eu não sairei do quarto para fazer sala ao mala do Ferreirinha por nada desse mundo. E tenho dito.
            Assim terminaram o áspero diálogo e o almoço de domingo. Fagundes ainda pegou duas ou três latinhas de cerveja, trancou-se no quarto, ligou a tv no canal de esportes, tirou a camiseta e a bermuda, ficou apenas de cuecas, concentrou-se à espera do jogo.
            Matilde, mulher educada e sensível, não pôde conter algumas lágrimas:
            – Meu marido é um grosseirão, mas esse Ferreirinha é mesmo um chato... Precisava aparecer logo hoje, dia de decisão de campeonato?
            De qualquer maneira, Matilde preparou-se para receber o homem. Fez um bolo de chocolate do cacau colhido no próprio quintal, esquentou água para o café, deu uma varrida na sala, colocou a melhor louça na mesa de jantar. Às 4 da tarde em ponto – hora do início do jogo –, toca a campainha. Era o casal, Ferreirinha e senhora.
            – Vocês desculpem a ausência do Fagundes, ele pegou essa tal de chicungunha, virose gravíssima, que o deixou prostrado na cama com 41 graus de febre. Coitado, até falou no perigo em transmitir a doença ao casal amigo, e por isso não virá recebê-los.
            – Pobre amigo, murmurou Ferreirinha, visivelmente desapontado.
            O ruído da campainha fora abafado pelo foguetório à entrada do Corinthians em campo, de modo que Fagundes nada percebeu, os olhos pregados na tv, sofrendo como estão habituados a sofrer os corinthianos. O primeiro tempo terminou 0 a 0. Fagundes levantou-se apenas para esvaziar a bexiga e voltou para sua poltrona, esquecido do mundo, esquecido da vida. Só a vitória do seu time importava naquele momento, nada mais.
            Enquanto isso, na sala de jantar, Matilde fazia das tripas coração, tentando manter uma conversa civilizada com o chatíssimo casal. Lá pelas tantas, Ferreirinha iniciou feroz doutrinação religiosa, moralista ao extremo, esbravejando sobre como estavam corrompidos os costumes nos tempos atuais, vociferando contra os homossexuais, contra a maconha, contra as cenas de sexo nas novelas, até o Papa entrou na dança, acusado de permissivo e moderninho demais. A esposa, dona Efigênia, entretida com o delicioso bolo de chocolate do cacau colhido no próprio quintal, acompanhado do café preto coado na hora, apenas concordava com o marido, balançando a gorda cabeça enterrada no volumoso corpanzil. Matilde, embora educada e sensível, não gostava de sermão de qualquer natureza, e matutava consigo mesma: se Fagundes estivesse aqui, o Ferreirinha não estaria com essa conversinha besta; dava-lhe logo uns trancos...
            O jogo chegava ao fim, ainda no 0 a 0, para desespero de nosso torcedor. A cada perigo de gol, para um time ou outro, Fagundes revirava-se violentamente na poltrona, soltava urros destemperados, esmurrava a parede, num sofrimento atroz. Eis que, aos 47 minutos do segundo tempo, o Corinthians faz o gol da vitória!
            Fagundes salta da cadeira feito louco, aos berros de É CAMPEÃÃÃO, É CAMPEÃÃÃO, É CAMPEÃÃÃO, abre a porta do quarto com estrondo, entra no corredor de braços erguidos, continua gritando até alcançar a sala de jantar, onde entra rebolando, numa felicidade esfuziante, quando se depara com as visitas, Matilde de olhos esbugalhados, muda de terror, apontando para o traje do marido, apenas uma florida cueca samba-canção. Ferreirinha, apoplético de indignação, só tem tempo de tapar com a mão espalmada os olhos de dona Efigênia, ainda de boca cheia.
            O casal levanta-se e sai sem se despedir. Passado o susto, Fagundes volta às comemorações: É CAMPEÃÃÃO, É CAMPEÃÃÃO, É CAMPEÃÃÃO... Matilde, depois de um copo dágua com açúcar, exclama:
            – Bem que dizia um grande amigo nosso, alto funcionário do Banco do Brasil: boa romaria faz, quem em sua casa fica em paz...