domingo, 23 de dezembro de 2012

Homenagem a Lêdo Ivo


                   Soneto da porta

Quem bate à minha porta não me busca.
Procura sempre aquele que não sou
e, vulto imóvel atrás de qualquer muro,
é meu sósia ou meu clone, em mim oculto.

Que saiba quem me busca e não me encontra:
sou aquele que está além de mim,
sombra que bebe o sol, angra e laguna
unidos na quimera do horizonte.

Sempre andei me buscando e não me achei:
E ao pôr-do-sol, enquanto espero a vinda
da luz perdida de uma estrela morta,

sinto saudades do que nunca fui,
do que deixei de ser, do que sonhei
e se escondeu de mim atrás da porta.


                                         Lêdo Ivo

Foto: A.Vianna, Sevilha, 2008.

dois poetas se encontram



          Lêdo Ivo morreu em Sevilha
            na esperança de encontrar
            João Cabral de Melo Neto

A lógica dos massacres


As notícias mais recentes veiculadas pelas mais variadas mídias sobre o último massacre ocorrido numa pequena cidade dos Estados Unidos não cansam de repetir que as investigações policiais que podem se estender por vários meses procuram desvendar as razões pelas quais os horrendos crimes foram cometidos, sem poder garantir, no entanto, à população do país e ao mundo, que conclusões claras e definitivas possam vir à tona tendo em vista o fato inexorável e definitivo de que o agente criminoso que não poupou a própria vida também não deixou qualquer relato que pudesse explicar seu próprio comportamento, nem mesmo em seu computador pessoal, onde as pessoas hoje em dia costumam deixar gravados os próprios pensamentos ideias sentimentos confidências intimidades reais ou ficcionais, nas mídias sociais ou em blogs, o que infelizmente não se verificou após exaustivo vasculhamento do hard disk do criminoso, muito embora uma frase tenha despertado a curiosidade dos incansáveis investigadores, inscrita no centro da tela de abertura do computador em verdana 18, negrito, é claro, portanto bem à vista dos vasculhadores,

Proust não morreu

o que em definitivo não combina com o jovem aparentemente desmiolado que assassinou tantas crianças numa escola primária, a menos que ele não tenha sido tão desmiolado assim, ponderou experiente detetive com certos pendores literários e que se dispôs a ler os sete volumes do Em busca do tempo perdido, agora em busca de alguma pista que pudesse desvendar as motivações daquela mente criminosa, ideia que mereceu restrições do chefe de polícia pelo tempo a ser dispendido na tarefa, muito tempo perdido segundo ele, além da incerteza de que algum resultado positivo pudesse ser encontrado, ao que outro policial prontamente sugeriu que fosse lida uma recente versão da mesma obra em quadrinhos, portanto mais curta e mais acessível, o que foi prontamente aceito pela comunidade investigativa, já que nenhuma outra pista tinha sido levantada até aquele momento, fato já salientado pelos experts, o de que as investigações policiais poderiam se estender por vários meses procurando desvendar as razões pelas quais os horrendos crimes foram cometidos, sem poder garantir, no entanto, à população do país e ao mundo, que conclusões claras e definitivas pudessem vir à tona, tendo em vista o fato inexorável e definitivo de que o agente criminoso que não poupou a própria vida não deixou qualquer relato que pudesse explicar seu próprio comportamento, nem mesmo em seu computador pessoal, exceto por uma enigmática frase inscrita na tela de abertura do computador dele, uma possível real indicação motivadora dos crimes, embora cheia de mistério e ocultamento, quase impenetrável pela sua hermeticidade, mas que está neste preciso momento sendo submetida à minuciosa análise pelo moderníssimo computador de última geração da NASA, e que a polícia prefere não divulgar ainda para não atrapalhar o rumo das investigações.

Comporte-se!


A mãe, sempre amantíssima, ao deixar a filhinha de dois anos com os avós, para que estes pudessem usufruir da companhia da neta por um dia, ao despedir-se da menina, recomendou séria, compenetrada no tom de voz, com a inabalável autoridade de mãe, Comporte-se direitinho, minha filha!
            O avô tomou a criança nos braços e não pôde evitar um pensamento, O que será que passa pela cabeça de uma criança de dois anos ao ouvir recomendação como esta, Comporte-se direitinho, minha filha! Pôde inferir, o avô, pela carinhosa e íntima entonação da mãe, que aquela não era a primeira vez que tal prescrição era transmitida à criança, que, de fato, recebeu-a com tranquilidade.
Como uma menina de dois anos deve comportar-se?, interrogou-se o avô. Ele mesmo não encontrou resposta fácil à pergunta, embora caminhasse célere para os setenta. Lembrou-se então de Marcel Proust, no monumental Em busca do tempo perdido, logo no início de No caminho de Swann, ao dar voz ao narrador, ainda um menino mal entrado na adolescência:

“Ergui-me, tinha um desejo irresistível de beijar a mão da dama de cor-de-rosa, mas parecia que seria algo de audacioso como um rapto. Meu coração palpitava enquanto eu dizia “Devo fazê-lo, não devo fazê-lo”, depois deixei de me perguntar o que devia fazer, para que pudesse fazer qualquer coisa. E em um gesto cego e insensato, despojado de todas as razões que um momento antes encontrara em seu favor, levei aos lábios a mão que ela me estendia.”

            Tempos atrás, às voltas com pensamentos semelhantes àqueles que vieram ao avô ao tomar no colo a netinha de dois anos, escrevi o que chamei de:

Inútil dilema

certo      errado
certo      errado
certo      errado

inútil dilema

o que se aprende
(no limite)
é que a vida
pode ser vivida

de forma
deliciosamente irresponsável

            Fui (mal) interpretado, julgado com severidade e condenado, sem direito a apelação. Suspeito que a expressão acusatória chave do processo a que fui submetido tenha sido aquela “deliciosamente irresponsável”. A expressão é composta por duas palavras, à primeira vista, irreconciliáveis, sob o ponto de vista moral: se há irresponsabilidade não pode haver prazer; se há prazer, há que haver responsabilidade. Definitivamente, irresponsabilidade prazerosa é proibido!
            O que pode fazer uma criança de dois anos entregue aos avós, liberta portanto do “jugo” dos pais, por um dia que seja? O que pode fazer um adolescente diante do impulso sexual frente à primeira namorada? Comportarem-se?
            Em meu ponto de vista, a expressão que merece real consideração no poemeto aqui apresentado é “no limite”, intencionalmente colocada entre parêntesis. Vamos aprendendo, ao longo da vida (antes mesmo até dos dois anos de idade), que há um limite a ser obedecido entre a busca do prazer e a realidade, mas que não precisa transformar-se em um dilema (inútil) excessivo, contínuo, permanente, trágico, rígido, punitivo, carrasco, moralista, religioso, entre o certo e o errado.
            O “gesto cego e insensato” diante de “um desejo irresistível” descrito por Proust não me parece nem cego nem insensato, sob a óptica do Inconsciente. Se vivido sem culpa, torna-se deliciosamente irresponsável. Ou seja, livre daquela responsabilidade excessiva, contínua, permanente, trágica, rígida, punitiva, moralista, religiosa do inútil dilema entre o “devo, não devo” proustiano, entre o certo e o errado.
            Proust vai mais além ao afirmar que “depois deixei de me perguntar o que devia fazer, para que pudesse fazer qualquer coisa”. Ora, deixar de perguntar beira a irresponsabilidade, se é que não se constitui nela mesma! Fazer qualquer coisa também sugere total falta de responsabilidade. Porém, há um outro modo de ver as coisas, o de que é preciso, às vezes, deixar de cercear-se para ser o que se é. O que pode ser feito de maneira deliciosamente irresponsável, obedecidos os limites.
            E a netinha comportou-se maravilhosamente, para felicidade plena dos avós!