segunda-feira, 10 de março de 2014

Sobre dilemas morais


Por que não admitir? O Papa Francisco surpreendeu o mundo dias atrás, ao confessar publicamente que havia surrupiado o crucifixo que repousava sobre o corpo de um padre amigo, no momento em que o velório estava vazio, cruz que carrega até hoje (sem qualquer conotação metafórica...) e à qual apela nos momentos difíceis. Como tudo é mesmo relativo nessa vida, suponho que o Santo Padre só tenha granjeado louros e simpatias com este insólito gesto: um roubo.
A lembrança que me veio ao bestunto foi a de meu saudoso José Saramago, em seu belíssimo livro Viagem a Portugal. Ao passar por Carrazedo de Montenegro, o escritor foi “tentado pelo demónio”. Visitava uma igreja local quando deu com uma grande imagem de Nossa Senhora, com anjos dispostos aos pés, “mesmo à mão de apanhar”. Surge-lhe o tinhoso, provocador: “Vinha dizer-te que estes anjos estão seguros só por um espigão. Basta puxar e ficam-te nas mãos. A Virgem, não te aconselho. É pesada, grande, e viam-te à saída.”
Depois de um rápido bate-boca entre os dois, o viajante zangou-se e saiu da igreja. Descia já os degraus em frente à edificação quando resolveu voltar; tornou a entrar no coro deserto, postou-se frente à imagem, agarrou um anjo, puxou-o, e, de fato, como havia instruído o demônio, ficou com ele nas mãos. “Durante três segundos, céu e terra pararam para ver o que ia acontecer: perdia-se aquela alma, ou salvava-se”, escreve Saramago.
Recolocou o anjo aos pés da Virgem e partiu.
Pouco tempo depois da morte de Saramago, encontrava-me numa grande livraria do Rio de Janeiro, quando dei com uma linda fotografia do escritor, com seu nome, anos de nascimento (1922) e morte (2010), e as palavras Saudade não tem remédio. A foto, em papel brilhante de ótima qualidade, vinha colada a um cartão com dispositivo dobrável por detrás, de modo que permanecia de pé, chamando a atenção dos transeuntes. Desejei imediatamente aquela fotografia, que seria emoldurada e posta em meu consultório, em homenagem ao grande escritor! Procurei o gerente da livraria e pedi-a de presente. Ele negou. Implorei que ma vendesse. Ele negou mais uma vez, alegando que o “produto” precisava ser devolvido à editora, terminada a campanha publicitária. Só não lhe sugeri o que devia fazer com o tal produto, em virtude do retratado ser quem era.
Na semana seguinte, chegando a Brasília, ao entrar em outra grande livraria, dei de cara com a mesma fotografia! Freguês antigo que sou, pensei, Agora está no papo. Engano meu. Nem de presente, nem comprada. A gerente veio com o mesmo argumento, tinha que ser devolvida à editora, blá blá blá blá blá. Puta que pariu!
Passada a raiva inicial, resolvi arquitetar um plano mais ou menos complicado. A porta da livraria dispunha de alarme, qualquer livro que passasse sem ser desmagnetizado, era aquele escândalo. Examinei cuidadosamente o objeto e não encontrei sinal do dispositivo que faria soar o alarme. Mesmo assim, fingindo que falava ao telefone, “distraído” portanto, peguei a fotografia, passei pela porta e retornei imediatamente para o interior da livraria. Silêncio! Nada de alarme. Recoloqueia-a debaixo de uma pilha de livros, onde não seria encontrada por ninguém e fui almoçar com meus três amigos, que presenciavam estupefatos todas aquelas minhas estranhas manobras.
Não se tocou no assunto durante o almoço. Voltamos à livraria para o café. Depois do café, escolhi um livro de tamanho maior que a fotografia, paguei-o no caixa e coloquei-o numa sacola de plástico. Voltei à pilha de livros, coloquei o produto – agora a palavra aplica-se com perfeição – na sacola juntamente com o livro, deixei a livraria sem alarde.
Um dos amigos que me acompanhava exclamou:
– Mas isso é roubo!
– É, respondi.
Nada mais foi dito, nada foi perguntado.
Não há quem deixe de elogiar a fotografia belamente emoldurada, ao vê-la em minha casa. Não é para qualquer um que relato a origem da mesma, mas sempre há o pretexto para uma boa conversa sobre José Saramago.
Deixo por conta do leitor o possível julgamento do dilema moral vivido pelos três personagens desta história, se é que dilema houve no primeiro e terceiro exemplos. Parece que Saramago foi tentado pelo demônio interior que habita todos nós. Francisco e eu, suponho, consideramos as circunstâncias, certos de que daríamos – e demos – melhor destino aos dois objetos subtraídos, e trazemos a consciência tranquila – também suponho.
Tudo é mesmo muito relativo, quando se trata de ganhar ou perder as almas.