terça-feira, 13 de outubro de 2020

Um certo crucifixo

 

De tempos em tempos refaço a pergunta: 

– O que faz aquele crucifixo ao fundo no salão principal do Supremo Tribunal Federal de um país laico?

No art. 5o da Constituição, que trata dos direitos e garantias fundamentais, o parágrafo VI diz que “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias.” Estará sugerindo subliminarmente o Supremo que o culto a ser seguido é o do crucifixo?

Por que então um certo ministro, legalista ao extremo, zeloso guardião da palavra constitucional, que não lê capa de processo e manda soltar um bandido facínora traficante internacional de drogas, condenado a 25 anos de prisão em segunda instância, foragido contumaz, por que este ministro não ordena seja removido o crucifixo do solene salão da Corte, em nome da liberdade de crença, reafirmando assim a laicidade nacional.

Quem explica é Hélio Schwartsman, em sua crônica de hoje Bem-vindos ao clube, para a Folha de S. Paulo. Afirma Schwartsman:

O ministro Marco Aurélio Mello agiu bem ao determinar a soltura de um dos chefões do PCC? Se você, dileto leitor, pensa que ele extrapolou, seja bem-vindo ao clube do consequencialismo, corrente filosófica que, devido a uma campanha de propaganda negativa, não goza da melhor das reputações, ainda que funcione bem em grande parte das situações.”

Schwartsman cita Immanuel Kant, que escreveu “fiat iustitia, et pereat mundus” (faça-se justiça, mesmo que o mundo pereça).    

Nosso colunista aconselha “um pouquinho de  consequencialismo: não é prudente utilizar uma interpretação mecanicista da lei para pôr em liberdade alguém que representa perigo físico para a sociedade...”

Schwartsman pensa que Marco Aurélio poderia ter optado por outro caminho, sem trair o espírito da lei: “ele poderia ter exigido que o procurador e o juiz do caso se manifestassem ou ter levado a questão ao pleno do STF, para fixar os limites do novo dispositivo, mas aí Marco Aurélio não teria sido Marco Aurélio".

O grifo é meu, na brilhante conclusão do articulista da Folha: o homem é o que é. Para Nietzsche, não haverá exemplo melhor de niilismo. Para Schwartsman, Marco Aurélio ignora o consequencialismo, se aferra a uma verdade absoluta. (O crucifixo é uma verdade absoluta.) 

Para mim, somos nós que pagamos o pato.

 

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/helioschwartsman/2020/10/bem-vindos-ao-clube.shtml

 

 

O audiófilo, o lutier e o poeta revisitados


Agora que todos já sabem o que significa ser um audiófilo, pelo menos os que leram minha postagem recente, vamos ao contraditório. https://loucoporcachorros.blogspot.com/2020/10/o-audiofilo-o-lutier-e-o-poeta.html

            Que privilégio possuir ouvido absoluto! Seja em uma sala de concerto, seja ao ouvir boa gravação, o audiófilo que aprecia a boa música – e é claro que ele existe! – é capaz perceber todo o brilhantismo orquestral de Stravinski em Petrushka ou na Sagração da primavera, coisa que orelhas comuns não conseguem. Para ele, os últimos quartetos de Beethoven devem soar como uma grande orquestra de cordas. Se ele escuta o que ninguém ouve, então pode sentir o que poucos sentem. Que inveja eu sinto de quem dispõe de um ouvido absoluto.

 

            Imaginem aquele que possui o dom de construir um instrumento de cordas perfeito! (Há poucos anos foi a leilão pela Sotheby`s uma viola fabricada por Antonio Stradivarius com lance inicial de 45 milhões de dólares.) Todos os grandes virtuoses tocam em instrumentos de mestres luthiers, e os sons que produzem – e que nós ouvimos – não seriam os mesmos se produzidos por instrumentos de qualidade inferior. Mesmo os mortais que nunca tivemos ouvido absoluto nos beneficiamos com a arte de um bom luthier. 

            (Reza a lenda que o grande Yo-Yo-Ma quando viaja de avião leva no acento ao lado seu precioso instrumento de trabalho.)

            Eu gostava de ter sido um luthier.

 

            Quem pode viver sem Poesia?!

            “O poeta é um fingidor”, é verdade, porém ele finge “a dor que deveras sente”. Ao transcrever essa dor em forma de poema ele nos ajuda a suportar nosso próprio sofrimento.

            Ler poesia é aspirar o ar puro da manhã na orla do mar. Ler poesia é a felicidade à mão – quem precisa de mais? Cada um pode escolher seu poeta favorito e passar a vida lendo relendo sorrindo chorando diante de seu poeta favorito, e a cada leitura há de encontrar um poeta favorito diferente. Faço isso com o infinito Carlos Drummond de Andrade, que certo dia vi com “minhas retinas cansadas” andando por uma rua de Ipanema. Como não se emocionar com outro poeta, que afirmou “eles passarão... eu passarinho”? Como poderia eu renegar a poesia se tenho querido irmão grande poeta!

A poesia nunca passará.

 

            Afirma Viviane Mosé em seu brilhante livro Nietzsche hoje (ed. Vozes, 2018), ao comentar as ideias do filósofo sobre a linguagem e as palavras:

 

“A palavra nasce de uma simplificação do mundo, uma redução. Para que a linguagem se tornasse possível, para que o homem aceitasse se relacionar com o conjunto reduzido de signos da linguagem para representar a multiplicidade do mundo, foi preciso que as palavras não remetessem às coisas, mas a outras palavras.”

 

            Bem, no princípio era o Verbo...