quinta-feira, 1 de setembro de 2016

Canivete suíço

– Por que não comprou o livrinho? Tão lindo!
– Não ia ler mesmo...
– Mas além de comprar, precisa ler?

Aldravias de Pedro Cardoso

            De uma conversa com meu amigo Pedro Cardoso (de Brasília), sobre literatura, poesia e aldravias, ele elaborou o belo e interessantíssimo texto que agora publico no Louco. Obrigado, Pedro!

Aldravias concretas, é possível?

            Sempre gostei dos desafios, principalmente os poéticos. Na poesia a palavra ganha novos sentidos, novas dimensões e por que não dizer, novos e irreverentes significados? Pensando nisto foi que me veio a ideia de construir Aldravias no formato dos poemas concretos. Sei que muitos haverão de achar estranho esta nova vertente, mas ela não deixa de ser uma outra forma de deliciar-se com os ditos poemas.

            Um dos grandes segredos da poesia é que ela nos leva a imaginar coisas, fenômenos, acontecimentos, que, de certo modo, vão além do significado puro e simples da escrita. Este vislumbre pode ter vários significados e várias interpretações, isto, a meu ver, é o que faz dos poemas algo sempre atual e desafiador.

            Esta construção que ora proponho confere ao autor a possibilidade do desenvolvimento de uma arte visual e intelectual ao mesmo tempo, sem que haja prejuízo algum para o texto. Por outro lado, poderá oferecer ao leitor mais atento uma configuração singular, uma vez que a figura proposta nem sempre trará, em seu bojo, algo transparente ao primeiro olhar.
            A imagem deverá ser “lida” independentemente do poema. Para que isto aconteça terá que estar, no mínimo, subliminarmente contida no contexto. Por exemplo:

       avião
   comissão
de
  frente
      turbinas
         recauchutadas

            A figura, retratada, não pode ser vista como uma fotografia. Terá, obrigatoriamente, que nos levar a percebê-la. Neste caso, seriam os seios de uma mulher desnuda, dada a disposição em que os vocábulos foram milimetricamente expostos.
            A leitura precisa ser feita como se descêssemos os degraus de uma escada, aos trancos. Isto mesmo, tem que ser: palavra por palavra como elas foram expostas. Para que a imagem criativa se  torne uma realidade concreta em nosso cérebro. É importante ressaltar que neste caso o poeta Aldravista se torna um Artista Plástico por excelência.
            Veja que não há, de forma alguma, prejuízo para a Aldravia. Muito pelo contrário, a concretude do poema oferece algo novo, diferente, apenas mais elaborado. Isto não implica dizer que teremos um esforço extremo para sua elaboração.

Outro exemplo de Aldravia concreta:

ipê                            ipê
  branco                   amarelo
    neve                  ouro
       em               em
          pleno      pleno
        cerrado   semiárido

André Viana    e   Pedro Cardoso

            Aqui temos uma Aldravia composta, feita por dois autores. Uma completa a outra, o que não deve ser uma obrigação. Podem perfeitamente ser opostas que não mudará nada.
            Mesmo sendo dois autores distintos, acredito que não seja necessário a autorização prévia do primeiro, porque os créditos estão literalmente consignados. É imperioso dizer que as parcerias criam vínculos poéticos duradouros. Aqui é possível imaginar que o ipê-branco nasce no cerrado e que o amarelo, o de grande porte, floresce nos pés de serra.

            Outro ponto que gostaria de abordar nesta minha proposta é o fato de que as Aldravias  deveriam ser tituladas. Por exemplo:

                                    Maria Fulô

                                         saia
                                        justa
                                      atributos
                                     relevantes
                                       mulata 
                                     assanhada

            Veja que nesta composição acrescentei propositalmente o título: Maria Fulô. No meu entender este detalhe nada mais é do que o registro cabal do nascimento de um poema oriundo de seis palavras aleatórias. Este fato confere a ele vida própria e longa.
            O título deve servir como um norte para o leitor. É ele que indica o assunto da obra na sua essência. Além disto, facilita sua identificação no contexto histórico. No pior das hipóteses, individualiza a obra.
            Para ilustrar meu raciocínio, exemplifico com um fato bíblico e histórico: quando me refiro a um dos sonetos de Camões que foi escrito há centenas de anos, tenho que me reportar a ele através dos seus personagens, Labão, Lia e Raquel. Sem estes dados sua identificação fica, no mínimo, comprometida. Se ele fosse individualizado, sua identificação certamente seria muito mais tranquila e fácil.

Para finalizar minhas conjecturas apresento mais dois exemplos que julgo relevantes:

1º - Espelho

     pétalas                   pétalas
   perfumadas            perfumadas
      alhures               alhures
          vasos            vasos
                 de       de
                    flores

2º - Vaso de flores

      ipê                     ipê
  branco                    amarelo
    neve                    ouro
       em                 riqueza
           pleno      do
                cerrado

André Viana    e   Pedro Cardoso

            A palavra CERRADO serviu aos dois poemas sem que um se sobressaísse ao outro e viva a poesia concreta!!!



Pedro Cardoso

Esperança

A foto do dia.


Foto: Duda Sampaio / Estadão