quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Carta a Débora, abril de 2001.


Carta à amiga Débora.
Brasília, abril de 2001.

Querida Débora,

nem te conto!
            Uma das razões pelas quais adoro a minha profissão é que fico conhecendo gente, principalmente homens, porque você sabe, sou a única do Salão a cortar cabelo de homem, aparecem meninos pequenos levados pela mãe, mocinhos, homens maduros e velhos, para cada geração há um corte diferente, gosto disso, às vezes invento um corte novo, sempre com a autorização do freguês, é claro. Mas digo isso para contar que outro dia apareceu um senhor muito distinto, a cabeça toda branca, tristíssimo porque havia se separado da esposa, e mesmo assim tivemos uma ótima conversa. Ele percebeu que eu estava lendo Dalton Trevisan – vou lhe contar um segredo, Débora, deixo os livros sobre o balcão, bem à vista, de propósito, pretexto para começar uma conversa – ele viu o livrinho e perguntou se eu gostava de ler, Ler, escrever e cortar cabelo de homem, esta é minha infalível resposta. Se o sujeito tem o mesmo gosto, pronto, o papo vai longe!
            E o Dr. Alberto, esse o seu nome, era dos que gostavam. Quando soube que eu escrevia, convidou-me para uma oficina de escrita literária que ele coordena, imagine você! Não tenho coragem de contar isso para ninguém, Débora, vão dizer que estou ficando cada dia mais besta. Será que estou mesmo?
            Bem, já fui a duas reuniões, mais ou menos dez pessoas, gente instruída, médicos, psicólogos, um engenheiro, e eu lá, CABELEIREIRA. Não me fiz de rogada. No segundo dia levei um continho que escrevi faz tempo, cheio de palavrões, fiz o maior sucesso, você nem sabe!
            É assim que funciona a oficina: primeiro Dr. Alberto lê um trecho de um livro qualquer que ele escolhe, de Pe. António Vieira a Marcelo Mirisola, e todos comentam – ele faz questão de dizer que não é professor de literatura, que está ali para aprender. Mas ele tem uma biblioteca enorme, quase morri de inveja, e lê pra caralho, menina! Depois cada um apresenta seu próprio texto e todos comentam. Tudo muito democrático e amigável, se você quer saber. Não tenho dúvidas de que meu texto tinha falhas, mas as críticas foram feitas tão delicadas que até pareciam elogios. Estou aproveitando muito, Débora.
            Você pode me perguntar, Pra que serve isso tudo, de que adianta uma cabeleireira saber escrever, o que você ganha com isso, Suzete? Não sei responder, Débora, só sei que me dá um enorme prazer; a gente não precisa comer, beber água, fazer as tais necessidades fisiológicas? Para mim, escrever virou mais uma dessas necessidades. Você não imagina o gosto que me dá, escrever estas cartas para você!
            Outro dia encontrei num sebo um livrinho com a correspondência entre Carlos Drummond de Andrade e Mário de Andrade. Você precisa ver com que carinho eles se tratavam, e com que cuidado escreviam as cartas! Vou copiar um trechinho de carta de Drummond a Mário, escrita em Itabira, em agosto de 1926:

“Mário amigo
Sei que você terá notado meu silêncio porém não se zangou com ele. Em todo caso, com a minha velha mania de explicar, explico. Andei numa afobação danada montando casa. Agora casa está montada e você sabe que tem um lugarzinho nela. Não sei o que você pensará desse oferecimento duma hospedagem tão problemática, mas é certo que mesmo as coisas impossíveis acontecem, e quem sabe se um dia, quando tivermos automóvel, não abraçarei você aqui nessas serranias? Fico sonhando com a alegre possibilidade e me sinto feliz com isso. Pois é. Moro numa casinha branca, a única do beco, entre laranjeiras, jaboticabeiras e uma casuarina toda trançada de erva de passarinho que mesmo assim assobia de fazer gosto. Minha vida ficou simples de repente, sem sustos, sem especulações, sem inquietação. Tudo influência do cenário novo sobre a sensibilidade sequiosa de novas formas repousantes. É possível que amanhã eu acorde com um gosto ruim na boca e um bruto peso na alma dizendo diabo! E maldizendo a vida. Não creio muito em mim não, acho que sou um grandessíssimo bilontra, por isso depois da confissão otimista faço esta reserva necessária. Só digo que neste momento, escrevendo a você sou feliz dentro das quatro paredes brancas do meu escritório. E como você desempenha um papel muito importante na minha vida sentimental preciso dizer isso a você, como quem abraça agradecido a um benfeitor.”

            Não é lindo de chorar, Débora! Que carinho, que intimidade respeitosa, que amizade! E assim vou aprendendo um pouquinho, copiando estas cartas de gente que sabe escrever cartas.
            Um beijo grande da sempre sua
                                                                                    Suzete.

P.S.: Eu não sabia o que era bilontra e tive que ir ao dicionário: pode ser patife, velhaco, mas pode ser também pessoa de pouca importância, um joão-ninguém. Acho que o Carlos empregou a palavra neste segundo significado. Puxa, logo ele, o grande Carlos Drummond de Andrade!

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Carta a Débora, março de 2001


Carta à amiga Débora.
Brasília, março de 2001.

Querida Débora,

nem te conto!
Sabe quem apareceu hoje no Salão? Claro que você não sabe, né, pois estou contando agora, você é a única pessoa a quem posso escrever estas coisas, peço que guarde segredo.
Um tal de Afonso!
Você precisa ver que conversa gostosa, ele professor de Português, a fala macia, educadíssimo, e bonito ainda por cima, alto, espadaúdo, o sorriso largo. Você há de pensar que estou exagerando, com essa minha mania de ler romances, A cabeça sempre nos livros, como dizem minhas colegas de trabalho. Exagero não, juro!
Quando ele entrou eu lia Machado de Assis: coloquei o livro sobre o balcão mas ele logo percebeu, Vejo que gosta de ler..., Adoro, é a minha vida, ler, escrever e cortar cabelo de homem, fui logo dizendo, e ele me olhou espantado, como quem diz, Uma cabeleireira?
Pois é, puta preconceito este, minha vida toda sofri com ele, as pessoas pensam que toda cabeleireira é burra, e burra eu sei que não sou. Outro dia fui a uma dessas lojas de utensílios domésticos, puxei papo com a vendedora, que me contou que estava lendo Proust, Em busca do tempo perdido, imagine você. Achei o máximo! Então. Não posso?
Às tantas ele perguntou do que eu gostava de ler, e foi aí que dei o maior fora, Débora, Tudo que é bom, menos essa merda de autoajuda, respondi. Que vergonha, meu Deus, nem conhecia o homem e já soltava um palavrão. Pedi desculpas, depois me arrependi, se você quer saber. Nada tenho contra o palavrão, ao contrário, dito na hora certa e com a devida entonação, ele é insubstituível. Conheci um professor que dominava a arte de falar palavrões. Quando ele percebia que aula começava a ficar chata, ou via um aluno querendo dormir ao fundo da sala, lascava um retumbante puta-que-pariu, era todo mundo pulando nas cadeiras, aquele espanto geral, alguns riam, outros assustavam-se, ninguém ficava indiferente. Em inglês não se diz palavrão, eles dizem taboo word, o que eu acho lindinho, não desmerece a palavra, não há nada de feio com ela, sem julgamento, se você quer saber. É só tabu.
Mas já nem sei por quê estou a lhe escrever sobre isso, Débora. Ah! foi a merda que falei para o professor e depois me arrependi, por pedir desculpas. Acho que eu estava um pouco nervosa. Mas você sabe que ele até gostou, porque também odeia autoajuda.
Sabe, Débora, acho que impressionei o professor quando disse que minha autoajuda era escrever. Minha terapia: ler e escrever e cortar cabelo de homem. Depois te conto no que deu, se é que vai dar em alguma coisa esse encontro com o tal professor.
Beijos da sua amiga de sempre,
Suzete