As ideias brotavam fáceis. Ele gostava mesmo era de esmerilhar seus microcontos.
sexta-feira, 20 de agosto de 2021
Levantei as 6 horas.
“26 de fevereiro de 1961
Levantei as 6 horas. Fiz café, ensabôei as roupas e estendi os sacos que comprei para fazer lençol para os filhos. Fui fazer compras. Comprei açúcar 6 quilos, paes, carne e sabão, porque as vezes lavo roupas a noite. Vou limpar a cosinha. Ver se tem baratas. Pedi ao João para varrer a casa. Mas, ele prefere brincar do que auxiliar-me. Os filhos não dão valor as mâes quando estão vivas!”
Carolina Maria de Jesus
Casa de Alvenaria, Volume 2:
Santana
(Cadernos de Carolina)
Companhia das Letras, 2021
O que se pode aprender com Carolina de Jesus ainda hoje: lições de vida e o valor da escrita. Escrita terapêutica?
Álbum de figurinhas
“O álbum de figurinhas das Séries A e B do Campeonato Brasileiro, que celebra os 50 anos da competição, será lançado oficialmente nesta sexta-feira (20/8). São 40 clubes, 20 de cada divisão, 540 cromos, sendo 100 especiais, e ainda ilustrações especiais de alguns jogadores. É o que informa Amanda Gil para o Metropoles. A ideia foi da agência iD/TBWA, que passou a atender a Panini, empresa responsável pela produção dos álbuns, neste ano. O álbum será vendido por R$ 10 e o preço de cada pacote com cinco cromos custa R$ 3.”
Leio a notícia com grande interesse, quase uma excitação! Ela me transportou imediatamente à nossa infância, minha e de meu irmão Paulo, quando morávamos em Guaratinguetá, às margens do Rio Paraíba do Sul, aos pés da Serra da Mantiqueira.
De tempos em tempos surgiam as figurinhas de jogadores de futebol. As mais antigas, que minha memória ainda registra com detalhes, vinham embrulhadas com uma balinha, que era solenemente jogada fora, na ânsia de saber se ainda não tínhamos aquela estampa ou se viria uma “repetida”. As repetidas também tinham sua importância, eram trocadas entre os colegas por outras que não possuíamos, e assim o álbum ia se completando. Valiosas mesmo eram as figurinhas carimbadas: no verso do papel vagabundo vinha um carimbo, sem nada escrito, apenas um carimbo circular, transformando aquela pequena peça em raridade valiosíssima! Ela podia ser trocada por 50 comuns, ou vendida por um bom preço. Me lembro bem da emoção de, certa feita, ter ganho uma delas.
(Vejam o que é a linguagem; hoje, “figurinha carimbada” significa alguém muito assíduo, que frequenta sempre determinado círculo social; algo muito comum em determinado contexto, no Dicionário Criativo; tipo arroz-de-festa.)
Mas havia um problema: nosso pai nos proibia de colecionar figurinhas, as revistinhas, ou gibis, nos eram igualmente interditas. Nunca chegamos a compreender a razão de tanta severidade. Nos restava colecioná-las às escondidas, as figurinhas de jogadores de futebol! E com muito medo de sermos descobertos.
Guardo na memória dois preciosos acontecimentos dessa época – eu com 9 anos, Paulo com 7 e meio –, merecedores de figurar em Outras 47 cenas de um romance familiar, a continuação do livrinho publicado há 10 anos! O primeiro deles foi o jogo de abafa e a troca de figurinhas com nosso amigo Marcelo: ganhamos o jogo, trocamos figurinhas, e vendemos algumas delas para o amiguinho, no valor de 5 cruzeiros, verdadeira fortuna que seria revertida em novos exemplares. Marcelo nunca nos pagou. Por muito tempo guardamos aquele sentimento esquisito, mágoa, um pouco de raiva, ressentimento por termos sido ludibriados; nunca fomos tomar satisfação com o caloteiro, pois seria “muito barulho por nada”. Ainda não sabíamos dar nome aos bois: a palavra era constrangimento.
A segunda lembrança, na época foi de meter medo. A pequena casa onde morávamos ficava ao lado do Ribeirão dos Mota: na fachada, a janela da sala, a porta de entrada principal, e a porta da sala de tevê, que se transformou em garagem quando o pai comprou um Vanguard cinza! Entrávamos sempre pela garagem, pois a sala era mantida fechada, para que nossa mãe tivesse menos trabalho com a limpeza da casa. Era utilizada apenas em raríssimas ocasiões, quando se recebia uma visita; nosso pai não era afeito a visitas. Pois era na sala, atrás do sofá, o esconderijo perfeito para o álbum de figurinhas.
Estávamos os dois, no silêncio da sala, entretidos com as novas aquisições, apreciando as preciosidades, quando olhamos para cima e lá estava seu Ofir, a nos observar calado; após discreto sorriso, deu meia volta, saiu da sala em silêncio. Animados, passado o susto, entendemos aquilo como uma certa complacência, e continuamos a contemplação das figurinhas. E a coleção prosperou, naturalmente.
Voltando à notícia que abre esse texto, estou pensando seriamente em adquirir o álbum e algumas figurinhas...