segunda-feira, 30 de novembro de 2015

O ofício da escrita

           A última crônica de Eliana Cardoso no suplemento Eu & Fim de Semana, do Valor Econômico (27/11), traz como título um dos temas preferidos deste Louco: O ofício da escrita. Diante da questão “Por que escrevemos?”, a articulista afirma:

“Minha razão é egoísta. Escrevo porque o processo da escrita me ajuda a entender coisas e pessoas, a formar a própria opinião sobre um livro, um evento, um problema. Escrevo sobre o que me inquieta enquanto caço um fim, que, não sendo final, seja ao menos satisfatório. “Escrever é sentar em julgamento de si mesmo”, Ibsen anotou em algum lugar. Escrevo pelo prazer de reescrever, repensar, editar e lamber a cria.”

            Atrevo-me a discordar de Eliana: tais argumentos não configuram qualquer sinal de egoísmo. Cuidar de si nunca pode ser considerado egoísmo. Significa, isso sim, o quanto ela e todos os que escrevem prezam a própria vida e dela cuidam com zelo.
            Às tantas, Eliana envereda por um caminho surpreendente, o das oficinas de escrita. Surpreende porque polêmico: para alguns, tais oficinas são verdadeiro embuste, total perda de tempo para o suposto aprendiz, meio de vida pouco honesto para o “professor”. A articulista esquenta a polêmica:

“Se Ian McEwan considera praticamente impossível ensinar alguém a escrever em oficinas de escrita criativa, Vonnegut discorda. Muitos autores importantes, diz ele, desprezam esses cursos, mas tiveram editores experientes que lhes sugeriram como limpar seus textos. Thomas Wolfe e Ernest Hemingway contaram com Maxwell Perkins, um dos maiores editores de ficção de todos os tempos. Uma boa oficina oferece uma experiência semelhante ao escritor iniciante. Os melhores professores, como os melhores editores, são excelentes guias, mesmo que não sejam bons escritores eles mesmos.”

            A essas considerações segue-se uma revelação ainda mais surpreendente:

“Passo as tardes de quinta-feira na casa de uma amiga onde um grupo de escritoras se reúne, sob a batuta de um professor-editor, para ler e criticar a ficção de cada uma das participantes. Sempre aprendo alguma coisa nessas reuniões e me divirto muito.”

            Há alguns anos este blogueiro viveu experiência bastante enriquecedora ao criar uma oficina de escrita, constituída em sua maioria por um grupo de psicanalistas em formação, experiência esta relatada no livro O mito do vaso partido e outros escritos (Exlibris Editora, 2010).
            Utilizei-me à época de considerações apresentadas por Sigmund Freud, no artigo Escritores criativos e devaneio, e reproduzo aqui pequeno trecho por julgar oportuno:

“Nós, leigos, sempre sentimos uma intensa curiosidade em saber de que fontes esse estranho ser, o escritor criativo, retira seu material, e como consegue impressionar-nos com o mesmo e despertar-nos emoções das quais talvez nem nos julgássemos capazes.”

            Freud assinala ainda que nem mesmo o próprio escritor é capaz de apresentar uma resposta satisfatória a esta questão. Em algum outro lugar ele sugere que é do Inconsciente que se retira tão precioso material.
A questão que agora se impõe é: será possível que uma oficina de escrita possa estimular essa fonte de criatividade? Penso que sim. A formação de um grupo com objetivo comum, sinceramente voltado para o desejo de escrever, orientado por um professor, ou por um não-professor, porém com a capacidade de motivar o grupo para o exercício de uma escrita livre, que haverá de se aprimorar com o tempo, penso que se trata de experiência perfeitamente cabível.
A qualidade dos componentes do grupo – de um verdadeiro “grupo de trabalho”, na concepção de W. R. Bion –, é fundamental para o êxito da empreitada.
            Não posso responder por ninguém mais; de minha parte, embora de qualidade bastante inferior – um gênio da literatura, este sim, nasce pronto! – depois da oficina não parei de escrever. Se o leitor for paciente e reler o parágrafo inicial de Eliana Cardoso, há de concordar com o que este blogueiro vem afirmando com convicção, a existência de uma função terapêutica da escrita.
            A disponibilidade de fácil criação de um blog na Internet tornou-se ferramenta auxiliar de primeira grandeza para aquele que deseja escrever, “entender coisas e pessoas”, “formar opinião sobre um livro, um evento, um problema”, ou pelo simples “prazer de reescrever, repensar, editar e lamber a cria”, como diz Eliana Cardoso.

            É disso que se alimenta este Louco por cachorros.

O elevador

Quando pegou o elevador no trigésimo segundo andar do prédio onde morava, dirigindo-se ao escritório, como fazia todas as manhãs nos últimos vinte e cinco anos, Alcebíades não poderia imaginar o que lhe esperava no hall do Edifício Mozart, num bairro de gente rica na cidade grande.
            A despeito de se tratar de um arranha-céu – como se dizia nos bons tempos de juventude de Alcebíades – o elevador do edifício era dos antigos, lento, com porta pantográfica, rangedor nas subidas e descidas, qualidades apreciadas pelo antigo morador.
            – Assim disponho de tempo para exercitar a arte de pensar no começo de um novo dia!
            Ao iniciar a descida, Alcebíades especulava sobre o que lhe esperava no escritório, dissabores certamente em maior número que prazeres.
– Como na vida!, ele gostava de repetir, Como na vida!
Entrevistas enfadonhas. Pessoas desagradáveis. Bajuladores deslavados, os piores. Às vezes Alcebíades mostrava-se com olhar alheio à conversa, voava para terras distantes, para sua infância, muito mais limpa, clara, simples. As coisas haviam se complicado, era forçoso reconhecer.
            Alcebíades exercia funções de poder e mando de certa magnitude. Ao longo daquela lenta descida ele pensava em como evitar que aquele mesmo poder lhe subisse à cabeça. Naqueles poucos minutos ele buscava exercer a autocrítica, para que o autoengano ocorresse o mínimo possível.
            Em certos dias seus pensamentos vagavam sobre os acontecimentos do dia anterior, ou da semana anterior. O que estava feito, isso ele não poderia mudar. Mas podia pensar sobre o que havia feito. Admitia a possibilidade de aprender com os próprios erros. Mas o que era erro ou acerto, naquela confusão em que havia se metido?
            Em outros dias descia pensando no filme que assistira com a mulher na noite anterior. Ah!, a mulher! Em que havia se tornado seu casamento? Este era um tema impossível de exaurir-se até que o elevador atingisse o térreo. Ficava claro apenas que alguma coisa precisava ser feita. Mais tarde voltaria ao tema, talvez pudessem conversar, ele e a esposa.
             Alcebíades considerava-se um boa praça. Quase sempre bem humorado, tinha o respeito, se não uma ou outra amizade, de seus pares, que o consideravam um homem sensível, honesto, acima de tudo fiel aos amigos. Mas que tipo de amigos?
            A ideia de que era plenamente aceito no meio em que transitava apaziguava-o quando o elevador já se aproximava do final do percurso de descida. Era uma sensação boa, acalmava-o, a prenunciar um dia tranquilo de trabalho. Às vezes sobrevinha-lhe uma sombra, a perguntar se não seria apenas sentimento de autoindulgência. Que fosse, vá lá, ninguém é de ferro...
            Se descia pensando no encontro que teria com a amante naquele dia, Alcebíades chegava a esboçar um sorriso de felicidade. Onde almoçariam? Provavelmente ela já havia reservado um bom restaurante, discreto, de boa comida, bons vinhos; depois iriam para o apartamento dela. Havia cancelado todos os compromissos daquela tarde, por mais importante que fosse o figurão.
            Agora o elevador emitia um som estridente, característico da chegada ao destino final. Dava um leve solavanco, diminuía ainda mais a velocidade de descida, e suavemente chegava ao térreo. Aberta a porta pantográfica e em seguida a pesada porta de madeira maciça, a claridade do hall chegava a ofuscar as pupilas de Alcebíades, que cerrava parcialmente as pálpebras, levantava a cabeça e voltava à realidade.
            Naquele dia o hall estava inusitadamente cheio. Dirigiu-lhe a palavra um homem de óculos escuros, com a farda da Polícia Federal:
            – O senhor se chama Alcebíades Moreira Dias de Almeida Castro?
            – Sim, sou eu mesmo...
            – O senhor está preso. Tudo que disser a partir de agora...



sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Um livro puxa outro 2



A propósito da crônica Um livro puxa outro, publicada neste blog em 22/11, em que comento texto de Eliana Cardoso (que celebra os 100 anos de A Metamorfose) (http://loucoporcachorros.blogspot.com.br/2015/11/um-livro-puxa-outro.html#comment-form), tive o prazer de receber comentário de assíduo leitor deste Louco, meu amigo Roberto, que se apresenta com o nome de seu blog, extratodomiolo.com, um blog que merece ser visitado!
            Eliana havia acrescentado em sua crônica algumas considerações de Vladimir Nabokov (1899-1977), que comparava a obra de Kafka ao romance O médico e o monstro, de Robert Louis Stevenson, e ao conto O capote, de Nikolai Gógol.
            Despretensiosamente, e é isso que justifica o título desta crônica e da anterior, apresentei minha associação de ideias após a leitura de O capote, excelente conto de Gógol. Afirmei que me apareceu de súbito, e penso que o verbo aparecer cai bem nesta circunstância, O Fantasma shakespeariano que abre o drama de Hamlet.
            O mote é apenas esse: um livro puxa outro.
            Eis que surge o comentário do Roberto, jovem cultíssimo, brilhante, sobre meu texto, e que agora transcrevo:

“A distinta literata esqueceu de uma obra indubitavelmente kafkiana que é "Bartleby, o Escrevente", escrita nos idos de 1853 por Herman Melville. Na minha modesta opinião, esse conto supera tanto a obra de Gogol quanto a de Stevenson. Vale lembrar que o falastrão Vladimir Nabokov, crítico no qual a literata se apoia, considerava Dostoiévski um escritor medíocre.”

            Havia lido a novela (ou conto) de Melville há 10 anos, de modo que fui induzido a relê-la, depois da provocação formulada pelo Roberto. E sou obrigado, de muito bom grado, a concordar com ele! A peça é excelente!
            Na edição que tenho em mãos, o título é Bartleby, o Escrivão - uma história de Wall Street (Cosac Naify, 2005, tradução de Irene Hirsch), e não “Escrevente”, como assinalou Roberto. Encontrei também a forma “Escriturário”. Deve tratar-se de um simples problema de tradução, o que não tem importância. No original, The Scrivener.
            A edição da Cosac é no mínimo curiosa. O livro vem envolto em papel celofane, lacrado portanto, com a capa e contracapa costuradas, isso mesmo, costuradas!, que o leitor deve descosturar com a ajuda de uma tesourinha, o que é bem trabalhoso. Ao abrir o livro, percebe que as folhas de texto estão unidas, e ele precisa separá-las com um cortador de papel que acompanha o livro. Só assim ele chega ao enigma proposto por Melville.
            Parece que a história de Herman Melville (1819-1891) surgiu pela primeira vez, anonimamente, na revista americana Putnam's Magazine, dividida em duas partes. A primeira parte foi publicada em novembro de 1853; a publicação foi concluída no mesmo ano, em dezembro; e foi relançada no livro The Piazza Tales, em 1856.
Relembro ao leitor que Kafka nasceu em 1883, portanto 30 anos após Bartleby!
            A edição da Cosac a que me referi traz ótimo posfácio de Modesto Carone, nosso especialista na tradução de Kafka para o português. Carone faz referência à tradução de Melville efetuada por ninguém menos que Jorge Luis Borges, em 1944. Borges aproximou Bartleby de Moby Dick, a obra mais conhecida de Melville.
            Já D. H. Lawrence, segundo Carone, ao referir-se a Bartleby, afirma que o livro “parece prefigurar Kafka”.
Retornando a Borges, Carone acrescenta:

“Voltando ao cotejo de Bartleby com a ficção kafkiana, proposto por Borges, a conclusão é que a obra de Kafka projeta sobre Bartleby uma curiosa luz ulterior. Bartleby já define um gênero que por volta de 1919 seria reinventado e aprofundado por Franz Kafka: o das fantasias da conduta e do sentimento.”

            O conceito de Complexo de Édipo formulado por Sigmund Freud também projeta “curiosa luz ulterior” sobre o Édipo Tirano, de Sófocles, escrito há 427 anos a.C.!
            E Modesto Carone interroga, de forma definitiva, e ele mesmo responde, com formidável poder de síntese:

“Mas do que realmente trata a narrativa curta de Melville?  Aparentemente, de quase nada.”

            Esta resposta é absolutamente kafkiana, porque ao mesmo tempo que trata de nada, Bartleby trata de tudo, da vida, do sentimento dos homens.
            Roberto tem toda a razão: Eliana Cardoso esqueceu-se de Herman Melville! Para Roberto, Kafka puxou Melville.


Em tempo: por desconhecer a fonte em que se baseia o nosso Roberto, não posso acrescentar nada ao que disse sobre Nabokov e Dostoiévski. Se é verdade, pobre Nabokov, pisou na bola.

            

terça-feira, 24 de novembro de 2015