sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Sem coração

Matava porco, coelho, galinha, sem dó. Até que matou o marido, sem dó.

Empatia em D. Quixote de La Mancha


Roteiro para discussão em seminário
com estudantes de Medicina.


Entrava D. Quixote em Serra Morena, acompanhado do bom e fiel Sancho Pança, em busca de novas aventuras, quando se depararam com uma maleta no meio da estrada. Aberta, continha belo soneto, cuja primeira estrofe aqui reproduzo:

“Ou é que falta a Amor conhecimento
ou sobra-lhe maldade, ou esta pena
não quadra à ocasião que me condena
ao gênero mais duro de tormento.” (1)

            Logo o nosso Cavaleiro Andante concluiu que o autor dos versos e dono da maleta era um “desprezado amante”. Não demorou para encontrarem o tal fulano, maltrapilho, delirante, a quem Sancho apelidou de o Roto da Má Figura, em analogia ao próprio Cavaleiro da Triste Figura, seu amo. Receberam-no gentilmente, apesar da louca aparência do homem. Porém, era evidente que para os males relatados pelo esfarrapado – sem dúvida, males de amor, como antecipava o soneto –, não havia qualquer remédio.
            Então surge a surpreendente fala de Quixote, a razão mesma desta pequena crônica:

“E quando a vossa desventura fosse daquelas que têm fechadas as portas a todo gênero de consolação, pensava ajudar-vos a chorá-la e pranteá-la como melhor pudesse, pois é sempre consolo nas desgraças achar quem delas se doa.”
           
Consideramos esta fala um eloquente exemplo de empatia. A empatia pode ser conceituada como uma resposta afetiva adequada à situação em que se encontra a outra pessoa. Em outras palavras, significa colocar-se no lugar do outro. Parece constituir-se uma resposta humana universal, e que leva ao comportamento do tipo altruísta (nada quixotesco). Certos animais ditos superiores também demonstram esta habilidade para com o semelhante.
            Assim, torna-se óbvia a importância da empatia na relação médico-paciente (RMP), e muito se tem escrito sobre o tema. Porém, há um determinado aspecto dessa questão que tem sido pouco enfatizado e que tem grande importância prática. Quando se fala em colocar-se no lugar do outro, isso geralmente se refere ao médico, a pessoa que está diante do sofrimento do paciente. Desejo aqui chamar atenção para o fato de que tal resposta afetiva precisa ser comunicada ao paciente de forma clara, como o fez com todas as letras D. Quixote.
E Quixote o faz em situação delicada, onde consolar é muito difícil, pois não há muito o que fazer pelo outro, senão chorar com ele, o que não é pouco em tais circunstâncias. (Cervantes bem o sabia, já ao final do século XVI, ao tratar dos aspectos mais trágicos da vida com humor inigualável.) A analogia com o apoio que o médico pode oferecer às pessoas enlutadas pela morte de um ente querido, em particular os familiares, fica aqui evidente. E nessas condições, apenas ouvir também não é pouco. De resto, ouvir talvez seja a mais árdua e difícil tarefa para o médico nos dias de hoje, e constitui, sem dúvida, o primeiro estágio para o surgimento da empatia.
Em tais situações, a comunicação dos afetos ligados à empatia são transmitidos através de linguagens outras que não a verbal. A expressão corporal, na forma de uma afetuoso abraço, por exemplo, ou da expressão facial do médico, pode ter maior significado que as palavras.
            Em contrapartida, há certo tipo de médico extremamente silencioso, que pouco ou nada fala durante a consulta, o que não significa necessariamente um problema ou defeito, pois cada um tem seu próprio temperamento e modo de ser. No entanto, é possível que mesmo sendo empático para com o paciente, este profissional não seja capaz de lhe “dizer” isso, transmitir-lhe o afeto de que está tomado diante do sofrimento daquela pessoa. E o paciente não pode sentir a empatia vinda de seu médico, o que há de afetar inevitavelmente a RMP.
            A coisa não para por aí. Quando o médico comunica seus próprios sentimentos de empatia ao paciente, e este é capaz de senti-los como sinceros e verdadeiros, também ele, o paciente, torna-se capaz de desenvolver adequada resposta afetiva para com o médico, estabelecendo-se assim a RMP ideal.
O termo Empatia foi usado pela primeira vez no início do século XX pelo filósofo alemão Theodor Lipps (1851-1914), referindo-se a uma relação entre o ser humano e um objeto inanimado, como por exemplo, entre o artista e o espectador que se projeta a si mesmo numa determinada obra de arte. Em se tratando de RMP, não há objeto inanimado em questão: ambas as duas pessoas interagem afetivamente, ou pelo menos assim deveriam fazê-lo.
Nunca é demais ressaltar que a Literatura, ao longo de sua história – e o romance cervantino é apenas um bom exemplo disso –, representa fonte inesgotável de aprendizado a todos aqueles, incluindo os médicos, que desejam aprimorar-se na relação com seus semelhantes. A Vida mesma, é vida de relação.


(1) Tradução de Sérgio Molina, Editora 34, 2002.