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segunda-feira, 28 de março de 2022

Vendilhões do Templo segundo Saramago

 100 anos de José Saramago

 

O trecho a seguir, de autoria de José Saramago, está em O Evangelho segundo Jesus Cristo (Companhia das Letras, 1991, p. 425-426):

 

“Chegados às portas da cidade, logo se viu que maiores diferenças de variedade e número na multidão não as havia, e que, como de costume, iam ser precisos muito tempo e muita paciência para abrir caminho e chegar ao Templo. Não foi assim, contudo. O aspecto dos treze homens, quase todos descalços, com os seus grandes cajados, as barbas soltas, os pesados e escuros mantos sobre túnicas que pareciam terem visto o princípio do mundo, fazia afastar a gente amedrontada, perguntando uns aos outros, Quem são estes, quem é o que vai à frente, e não sabiam responder, até que um que tinha descido da Galileia disse, É Jesus de Nazaré, o que diz ser filho de Deus e faz milagres, E aonde vão, perguntava-se, e como a única maneira de o saberem era seguiram-nos, foram muitos atrás deles, de modo que ao chegarem à entrada do Templo, da parte de fora, não eram treze, mas mil, mas estes ficaram-se por ali, à espera de que os outros lhes satisfizessem a curiosidade. Foi Jesus para o lado onde estavam os cambistas e disse aos discípulos, Eis o que viemos fazer, acto contínuo começou a derrubar as mesas, empurrando e batendo a eito nos que compravam e vendiam, com o que se levantou ali um tumulto tal que não teria deixado ouvir as palavras que proferia se não se desse o estranho caso de soar a sua voz natural como um estentor de bronze, assim, Desta casa que deveria ser de oração para todos os povos, fizestes vós um covil de ladrões, e continuava a deitar as mesas abaixo, fazendo espalhar e saltar as moedas, com enorme gáudio de uns quantos dos mil que correram a colher aquele maná. Andavam os discípulos no mesmo trabalho, e por fim já os bancos de vendedores de pombas eram também atirados ao chão, e as pombas livres, voavam por sobre o Templo, rodopiando doidas, além, em redor do fumo do altar, onde não iriam ser queimadas porque havia chegado o seu salvador.” 

 

            O estilo é inconfundível, a agilidade com que as falas se sucedem é impressionante, isso é o melhor de Saramago. O tema, conhecidíssimo, é apropriado ao momento político que vivemos. Que eu saiba, este é o único momento em todo o Novo Testamento em que Jesus perde as estribeiras, deita fumo pelas orelhas, solta fogo pelas ventas, destrambelha, ensandece, descarrilha e desce o sarrafo nos que vendem e nos que compram, isso é muito importante!

            Vou desenhar, expressão em voga: O Templo é o nosso vilipendiado Ministério da Educação – casa destinada ao Ensino e à Cultura. Templo, porque de lá poderiam sair regras e normas capazes de salvar o Brasil – só a Educação salva um povo. 

            Os lobistas tomaram conta do Templo; barracas onde variados produtos de compra e venda se espalham por todo o ministério; negocia-se a peso de ouro, literalmente; os “pastores” exibem a sanha dos insaciáveis intermediários; o sumo sacerdote se esquiva de qualquer responsabilidade, diz que age a mando do presidente; desmente-se a si próprio no dia seguinte, estratégia para confundir, um tal de disse-não-disse que atordoa os de ouvidos moucos; são muitos os testemunhos de velhacaria; processos são abertos...

            

Deixemos a conclusão para José Saramago. Com a chegada de grande número de guardas do Templo, sob comando do sumo sacerdote, armados de espadas e lanças, os Treze ficaram em evidente desvantagem. Jesus adverte com sabedoria:

 

“Disse André para Jesus, que a seu lado brigava, Bem é que digas que vieste trazer a espada e não a paz, agora já sabemos que cajados não são espadas, e Jesus disse, No braço que brande o cajado e maneja a espada é que se vê a diferença, Que fazemos então, perguntou André, Tornemos a Betânia, respondeu Jesus, não é a espada que ainda nos falta, mas o braço.”

 

            Ao povo, falta-nos braço para brigar com os canalhas.

terça-feira, 22 de março de 2022

Por fim as nuvens desapareceram...

!00 anos de José Saramago

 


“Por fim as nuvens desapareceram. A noite vinha devagar entre as oliveiras. Os animais faziam aqueles ruídos que parecem uma interminável conversa. Meu tio, à frente, assobiava devagarinho. Por causa de tudo isto me veio uma grande vontade de chorar. Ninguém me via, e eu via o mundo todo. Foi então que jurei a mim mesmo não morrer nunca.”

 

José Saramago

A Bagagem do Viajante

 

 

https://blimunda.josesaramago.org/a-bagagem-do-viajante/

terça-feira, 15 de março de 2022

Nunca tive jeito para imitar caligrafias...

100 anos de José Saramago 


"Nunca tive jeito para imitar caligrafias, mas farei o melhor que puder, Tem cuidado, vigia-te, quando uma pessoa começa a falsear nunca se sabe até onde chegará, Falsear não seria o termo exacto, falsificar era o que deves ter querido dizer, Obrigado pela rectificação, meu querido Máximo, o que eu estava era a manifestar apenas o desejo de que houvesse uma palavra capaz de exprimir, por si só, o sentido daquelas duas, De ciência minha, uma palavra que em si reúna e funda o falsear e o falsificar, não existe, Se o acto existe, também deveria existir a palavra, As que temos encontram-se nos dicionários, Todos os dicionários juntos não contêm nem metade dos termos de que precisaríamos para nos entendermos uns aos outros."



José Saramago

O Homem Duplicado

 

https://blimunda.josesaramago.org/o-homem-duplicado/

 

 

sexta-feira, 11 de março de 2022

Às vezes, deveríamos regressar a certos gestos...

100 anos de José Saramago

 



“Às vezes, disse, deveríamos regressar a certos gestos de ternura antigos, Que sabes tu disso, não viveste nos tempos da reverência e do beija-mão, Leio o que contam os livros, é o mesmo que lá ter estado […]”

 

 

José Saramago

A Caverna

 

https://blimunda.josesaramago.org/epigrafe/

 

sexta-feira, 4 de março de 2022

Não há diferença nenhuma entre cem homens e cem formigas

 100 anos de José Saramago

 

“... não há diferença nenhuma entre cem homens e cem formigas, leva-se isto daqui para ali porque as forças não dão para mais, e depois vem outro homem que transportará a carga até à próxima formiga, até que, como de costume, tudo termina num buraco, no caso das formigas lugar de vida, no caso dos homens lugar de morte, como se vê não há diferença nenhuma.”

 

 

José Saramago

Memorial do Convento

 

https://blimunda.josesaramago.org/cem-homens-e-cem-formigas/

terça-feira, 1 de março de 2022

Que veio o viajante fazer à Nazaré?

100 anos de José Saramago

 


 

“Que veio o viajante fazer à Nazaré? Que faz em todas as povoações e lugares onde entra? Olhar e passar, passar e olhar. Já se sangrou em saúde, já declarou que viajar não é isto, mas sim estar e ficar, e não pode estar sempre a dizê-lo. Porém, aqui terá de retomar a ladainha para que lhe seja garantida a absolvição: devia estar e ficar para ver os pescadores irem ao mar e do mar voltarem, oxalá que todos; devia saber a cor e o bater das ondas; devia puxar os barcos; devia gritar com quem gritasse e chorar com quem chorasse; devia pesar o peixe e o salário, o morrer e o viver. Seria nazareno, depois de ter sido poveiro e vareiro.

 

            José Saramago

      Viagem a Portugal

 

https://blimunda.josesaramago.org/que-veio-o-viajante-fazer-a-nazare/

 

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

Não me leves a mal, Francisco...

100 anos de José Saramago


“Não me leves a mal, Francisco, se te faltei. Foste pedir a pobres o que pobres não podem fazer: acabar com os ricos. Se tal fosse possível, crê que já estaria feito. Desde que o mundo é mundo que há pobreza e há riqueza. É certo que de vez em quando um pobre torna-se rico. Quando isso acontece, e é uma coisa que os ricos gostam que aconteça, o pobre esquece a pobreza. Nunca reparaste? Evidentemente, este rico não se esquece de que foi pobre, mas a pobreza deixou de existir para ele. Mesmo que a sua riqueza seja uma pobre riqueza, insignificante se comparada com outras, não importa, ele já é rico, pertence aos ricos, os ricos pertencem-lhe.”

 

 

            José Saramago

      A segunda vida de Francisco de Assis

 

https://blimunda.josesaramago.org/desde-que-o-mundo-e-mundo-que-ha-pobreza-e-ha-riqueza/

 

terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

Agora já não eram precisas contradanças...

100 anos de José Saramago


 

“Agora já não eram precisas contradanças de quem vai dormir com quem, Joaquim Sassa abriu o sofá-cama ajudado por Pedro Orce, Joana Carda retirou-se discretamente, e José Anaiço ficou uns momentos ainda, sem jeito, fingindo que não era nada consigo, mas o coração batia-lhe dentro do peito como um rufo de alarme, ressoava na boca do estômago, fazia abalar todo o prédio até aos alicerces, embora esta tremura não se pareça nada com a outra, enfim disse, Boas noites até amanhã, e retirou-se, é bem certo que as palavras nunca estão à altura da grandeza dos momentos.”

 

            José Saramago

      A Jangada de Pedra

 

 

https://blimunda.josesaramago.org/contradancas/

 

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

Na guerra, no campo de batalha...

100 anos de José Saramago



 

“Na guerra, no campo de batalha, vemos cair um companheiro, parece às vezes a ferida ligeira, e se o queremos ajudar a erguer-se, os membros desfalecem-lhe, é um corpo morto que mais tarde teremos de enterrar. Outras vezes julgamos que é mortal o golpe, que não há esperança, passamos adiante e contamo-nos um a menos, mas olhamos para o lado e vemos que ele se levantou por suas próprias forças e continua o combate, mesmo deixando atrás de si o sangue. Assim são os amores. Julgamo-los vivos e estão mortos, julgamo-los mortos e estão vivos.”

 

            José Saramago

 

      Que farei com este livro?

 

https://blimunda.josesaramago.org/assim-sao-os-amores/

terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

Discurso pronunciado a 7 de Dezembro de 1998 na Academia Sueca

100 anos de José Saramago 


Prêmio Nobel


De como a personagem foi mestre e o autor seu aprendiz 


“A Pilar” 

 

“O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever. Às quatro da madrugada, quando a promessa de um novo dia ainda vinha em terras de França, levantava-se da enxerga e saía para o campo, levando ao pasto a meia dúzia de porcas de cuja fertilidade se alimentavam ele e a mulher. Viviam desta escassez os meus avós maternos, da pequena criação de porcos que, depois do desmame, eram vendidos aos vizinhos da aldeia. Azinhaga de seu nome, na província do Ribatejo. Chamavam-se Jerónimo Melrinho e Josefa Caixinha esses avós, e eram analfabetos um e outro. No Inverno, quando o frio da noite apertava ao ponto de a água dos cântaros gelar dentro da casa, iam buscar às pocilgas os bácoros mais débeis e levavam-nos para a sua cama. Debaixo das mantas grosseiras, o calor dos humanos livrava os animaizinhos do enregelamento e salvava-os de uma morte certa. Ainda que fossem gente de bom carácter, não era por primores de alma compassiva que os dois velhos assim procediam: o que os preocupava, sem sentimentalismos nem retóricas, era proteger o seu ganha- pão, com a naturalidade de quem, para manter a vida, não aprendeu a pensar mais do que o indispensável. Ajudei muitas vezes este meu avô Jerónimo nas suas andanças de pastor, cavei muitas vezes a terra do quintal anexo à casa e cortei lenha para o lume, muitas vezes, dando voltas e voltas à grande roda de ferro que accionava a bomba, fiz subir a água do poço comunitário e a transportei ao ombro, muitas vezes, às escondidas dos guardas das searas, fui com a minha avó, também pela madrugada, munidos de ancinho, panal e corda, a recolher nos restolhos a palha solta que depois haveria de servir para a cama do gado. E algumas vezes, em noites quentes de Verão, depois da ceia, meu avô me disse: «José, hoje vamos dormir os dois debaixo da figueira.» Havia outras duas figueiras, mas aquela, certamente por ser a maior, por ser a mais antiga, por ser a de sempre, era, para todas as pessoas da casa, a figueira. Mais ou menos por 

antonomásia, palavra erudita que só muitos anos depois viria a conhecer e a saber o que significava... No meio da paz nocturna, entre os ramos altos da árvore, uma estrela aparecia-me, e depois, lentamente, escondia-se por trás de uma folha, e, olhando eu noutra direcção, tal como um rio correndo em silêncio pelo céu côncavo, surgia a claridade opalescente da Via Láctea, o Caminho de Santiago, como ainda lhe chamávamos na aldeia.” ...

 

 

Trecho inicial do discurso de Saramago na Academia Sueca.

 

https://www.josesaramago.org/wp-content/uploads/2021/06/discursos_estocolmo_portugues.pdf

 

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022

Autobiografia 7

!00 anos de José Saramago

 




“Em consequência da atribuição do Prémio Nobel a minha actividade pública viu-se incrementada. Viajei pelos cinco continentes, oferecendo conferências, recebendo graus académicos, participando em reuniões e congressos, tanto de carácter literário como social e político, mas, sobretudo, participei em acções reivindicativas da dignificação dos seres humanos e do cumprimento da Declaração dos Direitos Humanos pela consecução de uma sociedade mais justa, onde a pessoa seja prioridade absoluta, e não o comércio ou as lutas por um poder hegemónico, sempre destrutivas.

Creio ter trabalhado bastante durante estes últimos anos. Desde 1998, publiquei Folhas Políticas (1976-1998) (1999), A Caverna (2000), A Maior Flor do Mundo (2001), O Homem Duplicado (2002), Ensaio sobre a Lucidez (2004), Don Giovanni ou o Dissoluto Absolvido (2005), As Intermitências da Morte (2005) e As Pequenas Memórias (2006). Agora, neste Outono de 2008, aparecerá um novo livro: A Viagem do Elefante, um conto, uma narrativa, uma fábula.

No ano de 2007 decidiu criar-se em Lisboa uma Fundação com o meu nome, a qual assume, entre os seus objectivos principais, a defesa e a divulgação da literatura contemporânea, a defesa e a exigência de cumprimento da Carta dos Direitos Humanos, além da atenção que devemos, como cidadãos responsáveis, ao cuidado do meio ambiente. Em Julho de 2008 foi assinado um protocolo de cedência da Casa dos Bicos, em Lisboa, para sede da Fundação José Saramago, onde esta continuará a intensificar e consolidar os objectivos a que se propôs na sua Declaração de Princípios, abrindo portas a projectos vivos de agitação cultural e propostas transformadoras da sociedade.

Nota – Depois de A Viagem do Elefante, José Saramago escreveu Caim, O Caderno e O Caderno II, publicados em 2009 e que não chegou a acrescentar à sua Autobiografia.”

 

            JoséSaramago

            

https://www.josesaramago.org/biografia/

 

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

Eu podia ter, também, sucumbido...

                                                                                  100 anos de José Saramago


 

“Eu podia ter, também, sucumbido a um golpe semelhante ao que tu sofreste, podia passar a minha existência inundado de pensamentos inúteis, lembrando a minha mulher falecida. Não o fiz, porém. Resolvi viver. Resolvi deixar a minha morta em paz, pensar nela com uma saudade vaga e, apenas um pouco triste, dedicar um breve espaço da minha vida à amargura de a haver perdido. Ao princípio, custou-me. A felicidade é tão absorvente, habituamo-nos tanto a ela que, quando nos foge, quando no-la roubam, sentimo-nos incompletos como se uma parte essencial do nosso corpo tivesse desaparecido, deixando uma chaga imensa e dolorosa, que não fecha e destila sempre o pus da nossa desventura. Mas como tudo isto é vão, Maria Leonor! Como nós complicamos a extraordinária simplicidade da vida!”
 

            José Saramago

      A Viúva (Terra do Pecado)

 

https://blimunda.josesaramago.org/a-viuva-terra-do-pecado/

terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

Autobiografia 6

100 anos de José Saramago 


 

"Em consequência da censura exercida pelo Governo português sobre o romance O Evangelho segundo Jesus Cristo (1991), vetando a sua apresentação ao Prémio Literário Europeu sob pretexto de que o livro era ofensivo para os católicos, transferimos, minha mulher e eu, em Fevereiro de 1993, a nossa residência para a ilha de Lanzarote, no arquipélago de Canárias. No princípio desse ano publiquei a peça In Nomine Dei, ainda escrita em Lisboa, de que seria extraído o libreto da ópera Divara, com música do compositor italiano Azio Corghi, estreada em Münster (Alemanha), em 1993. Não foi esta a minha primeira colaboração com Corghi: também é dele a música da ópera Blimunda, sobre o romance Memorial do Convento, estreada em Milão (Itália), em 1990. Em 1993 iniciei a escrita de um diário, Cadernos de Lanzarote, de que estão publicados cinco volumes.

Em 1995 publiquei o romance Ensaio sobre a Cegueira e em 1997 Todos os Nomes e O Conto da Ilha Desconhecida.
Em 1995 foi-me atribuído o Prémio Camões, e em 1998 o Prémio Nobel de Literatura.”

 

            José Saramago

            

            https://www.josesaramago.org/biografia/


 

segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

Por fim as nuvens...

100 anos de José Saramago 


“Por fim as nuvens desapareceram. A noite vinha devagar entre as oliveiras. Os animais faziam aqueles ruídos que parecem uma interminável conversa. Meu tio, à frente, assobiava devagarinho. Por causa de tudo isto me veio uma grande vontade de chorar. Ninguém me via, e eu via o mundo todo. Foi então que jurei a mim mesmo não morrer nunca.”

José Saramago

A Bagagem do Viajante



https://www.josesaramago.org



sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

Autobiografia 5

100 anos de José Saramago 


 

“Sem emprego uma vez mais e, ponderadas as circunstâncias da situação política que então se vivia, sem a menor possibilidade de o encontrar, tomei a decisão de me dedicar inteiramente à literatura: já era hora de saber o que poderia realmente valer como escritor. No princípio de 1976 instalei-me por algumas semanas em Lavre, uma povoação rural da província do Alentejo. Foi esse período de estudo, observação e registo de informações que veio a dar origem, em 1980, ao romance Levantado do Chão, em que nasce o modo de narrar que caracteriza a minha ficção novelesca. Entretanto, em 1978, havia publicado uma colectânea de contos, Objecto Quase, em 1979 a peça de teatro A Noite, a que se seguiu, poucos meses antes da publicação de Levantado do Chão, nova obra teatral, Que Farei com este Livro?. Com excepção de uma outra peça de teatro, intitulada A Segunda Vida de Francisco de Assis e publicada em 1987, a década de 80 foi inteiramente dedicada ao romance: Memorial do Convento, 1982, O Ano da Morte de Ricardo Reis, 1984, A Jangada de Pedra, 1986, História do Cerco de Lisboa, 1989. Em 1986 conheci a jornalista espanhola Pilar del Río. Casámo-nos em 1988.”

 

            José Saramago

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segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

Autobiografia 4

100 anos de José Saramago


Com Ilda Reis e a filha Violante
Arquivo da FJS

 

“Por motivos políticos fiquei desempregado em 1949, mas, graças à boa vontade de um meu antigo professor do tempo da escola técnica, pude encontrar ocupação na empresa metalúrgia de que ele era administrador. No final dos anos 50 passei a trabalhar numa editora, Estúdios Cor, como responsável pela produção, regressando assim, mas não como autor, ao mundo das letras que tinha deixado anos antes. Essa nova actividade permitiu-me conhecer e criar relações de amizade com alguns dos mais importantes escritores portugueses de então. Para melhorar o orçamento familiar, mas também por gosto, comecei, a partir de 1955, a dedicar uma parte do tempo livre a trabalhos de tradução, actividade que se prolongaria até 1981: Colette, Pär Lagerkvist, Jean Cassou, Maupassant, André Bonnard, Tolstoi, Baudelaire, Étienne Balibar, Nikos Poulantzas, Henri Focillon, Jacques Roumain, Hegel, Raymond Bayer foram alguns dos autores que traduzi. Outra ocupação paralela, entre Maio de 1967 e Novembro de 1968, foi a de crítico literário. Entretanto, em 1966, publicara Os Poemas Possíveis, uma colectânea poética que marcou o meu regresso à literatura. A esse livro seguiu-se, em 1970, outra colectânea de poemas, Provavelmente Alegria, e logo, em 1971 e 1973 respectivamente, sob os títulos Deste Mundo e do Outro e A Bagagem do Viajante , duas recolhas de crónicas publicadas na imprensa, que a crítica tem considerado essenciais à completa compreensão do meu trabalho posterior. Tendo-me divorciado em 1970, iniciei uma relação de convivência, que duraria até 1986, com a escritora portuguesa Isabel da Nóbrega.”


        José Saramago


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domingo, 16 de janeiro de 2022

Estávamos nós nisto...

 100 anos de Saramago

“Estávamos nós nisto, atrasando o momento da revelação, duvidando ainda se não haveria modo de encontrar uma solução mais dramática ou, o que seria ouro sobre azul, com mais potência simbólica, quando se ouviu o fatal grito, Há aqui uma aldeia. Absortos nas nossas lucubrações, não tínhamos dado por que um homem se havia levantado e subido a pendente, mas agora, sim, víamo-lo aparecer entre as árvores, ouvíamo-lo repetir o triunfal anúncio, embora sem pedir alvíssaras, como havíamos imaginado, Há aqui uma aldeia. Era o comandante. O destino, quando lhe dá para aí, é capaz de escrever por linhas tortas e torcidas tão bem como deus, ou melhor ainda.”

 

                                   J. Saramago

                                   A viagem do elefante


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sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

Saramago em Esperanto

100 anos de Saramago


Casa dos bicos, Lisboa

 

Segundo informa a Fundação José Saramago, os livros do autor estão traduzidos nos seguintes idiomas:

albanês, alemão, árabe, azerbaijano, bengali, búlgaro, cantonês, castelhano, catalão, checo, coreano, croata (alfabeto latino), dinamarquês, eslovaco, esloveno, Esperanto, euskera, farsi, finlandês (suomi), francês, georgiano, grego, hebraico, hindi, holandês, húngaro, inglês, islandês, italiano, japonês, letão, lituano, malabar, malaio, mandarim, norueguês, polaco, romeno, russo, sardo, sérvio (alfabeto cirílico), sueco, tailandês, tamil, turco, ucraniano, valenciano e vietnamita.




            Tenho o imenso prazer de registrar que O conto da ilha desconhecida, de autoria de José Saramago, foi traduzido para o Esperanto pelo Dr. Paulo Sergio Viana, irmão ilustre deste blogueiro. 

            A tradução foi realizada sem qualquer fim lucrativo e autorizada pelo próprio Saramago, em troca de e-mails com o tradutor. Há um exemplar do livro na Casa dos Bicos, em Lisboa, sede da Fundação José Saramago. Para orgulho de muitos brasileiros!

 

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quinta-feira, 13 de janeiro de 2022

As palavras são assim...

100 anos de Saramago 



“As palavras são assim, disfarçam muito, vão-se juntando umas com as outras, parece que não sabem aonde querem ir, e de repente, por causa de duas ou três, ou quatro que de repente saem, simples em si mesmas, um pronome pessoal, um advérbio, um verbo, um adjectivo, e aí temos a comoção a subir irresistível à superfície da pele e dos olhos, a estalar a compostura dos sentimentos, às vezes são os nervos que não podem aguentar mais, suportaram muito, suportaram tudo, era como se levassem uma armadura, diz-se A mulher do médico tem nervos de aço, e afinal a mulher do médico está desfeita em lágrimas por obra de um pronome pessoal, de um advérbio, de um verbo, de um adjectivo, meras categorias gramaticais, meros designativos, como o são igualmente as duas mulheres mais, as outras, pronomes indefinidos, também eles chorosos, que se abraçam à da oração completa, três graças nuas sob a chuva que cai.”


            José Saramago

            Ensaio sobre a cegueira



https://www.josesaramago.org


quarta-feira, 12 de janeiro de 2022

Autobiografia 2

100 anos de Saramago 


“Fui bom aluno na escola primária: na segunda classe já escrevia sem erros de ortografia, e a terceira e quarta classes foram feitas em um só ano. Transitei depois para o liceu, onde permaneci dois anos, com notas excelentes no primeiro, bastante menos boas no segundo, mas estimado por colegas e professores, ao ponto de ser eleito (tinha então 12 anos…) tesoureiro da associação académica… Entretanto, meus pais haviam chegado à conclusão de que, por falta de meios, não poderiam continuar a manter-me no liceu. A única alternativa que se apresentava seria entrar para uma escola de ensino profissional, e assim se fez: durante cinco anos aprendi o ofício de serralheiro mecânico. O mais surpreendente era que o plano de estudos da escola, naquele tempo, embora obviamente orientado para formações profissionais técnicas, incluía, além do Francês, uma disciplina de Literatura. Como não tinha livros em casa (livros meus, comprados por mim, ainda que com dinheiro emprestado por um amigo, só os pude ter aos 19 anos), foram os livros escolares de Português, pelo seu carácter “antológico”, que me abriram as portas para a fruição literária: ainda hoje posso recitar poesias aprendidas naquela época distante. Terminado o curso, trabalhei durante cerca de dois anos como serralheiro mecânico numa oficina de reparação de automóveis.”