Folhetim
Terceiro encontro
Clarice voltou para casa feliz da vida, Ricardo amargurado, Ana Paula arrependida e Moema, assustada; oficina de escrita tem dessas coisas. Levantaram a cabeça, todos eles, foram estudar o uso e o abuso da vírgula, este sinal gráfico de pontuação tão vilipendiado.
Faz frio na manhã chuvosa da cidade de São Paulo; à hora combinada, todos a postos. Alberto, 25, estudante de letras na USP, residente na capital, dispondo de acesso à Internet, bom computador e impressora, imprime seu texto e o distribui no grupo, antes da apresentação.
“Mas não posso descrever que mal-estar me causava aquela intrusão do mistério e da beleza em um quarto que eu acabara de encher com minha personalidade a ponto de não dar mais atenção a ele do que a meu próprio eu.”
Na frase seguinte, o autor usa e abusa da vírgula:
“Cessando, assim, a influência anestésica do hábito, punha-me então a pensar e a sentir: coisas tão tristes.”
Lembrei-me dessas frases de Marcel Proust, Em busca do tempo perdido, volume 1, No caminho de Swann, com tradução de Mario Quintana. Por mais que a gente leia o primeiro período, não há como encaixar uma vírgula sequer. É para ser lido em um fôlego só, como pediu ontem o professor. Depois disso, passei a prestar mais atenção na pontuação, seja ela qual for. Gosto também dos dois pontos e do ponto e vírgula. ...”
Alberto impressiona por sua cultura – nem todos ali tinham lido Proust –, sua desenvoltura, a despeito de um certo pedantismo uspiano. Depois da introdução ele conta história interessante de uma jovem mulher que fora jogada nos trilhos do metro em Itaquera e fora salva por alguém que também esperava o trem e os dois acabaram se casando. Foi bastante aplaudido.
Ana Paula, a estudante de Direito que havia desancado Ricardo no encontro anterior, antes mesmo que lhe fosse franqueada a palavra para as críticas, sempre construtivas segundo Tobias, atacou, Muito bem, gostei do texto, da bela introdução proustiana, só que tal artifício já havia sido utilizado por Clarice no último encontro, com a pedra no meio do caminho do Drummond, ao exemplificar a repetição de palavras no texto, e penso que precisamos exercitar a originalidade e não a repetição, para isso estamos aqui, não é mesmo?
Faz-se longo silêncio, que Tobias resolve não interromper. Espera para ver o que vai acontecer. Sérgio, 26, estudante do último ano de Psicologia, pede a palavra, Por mais duro que tenha sido o comentário de Ana Paula, ela não deixa de ter razão, embora pudesse ser mais delicada, elogiando ambos os expedientes, o de Clarice e o de Alberto, que em minha opinião foram muito originais em si mesmos, gostei de ambos.
Ao que Ana Paula imediatamente retruca, Entre a delicadeza e a verdade, prefiro esta última.
Agora Tobias resolve intervir. Tem medo de onde aquilo vai parar. Ao perceber que Moema cruza e descruza as pernas no fundo da sala, denotando certo nervosismo, pede que ela leia seu texto. A verdade é que Tobias estava preocupado com ela, que não havia trazido qualquer texto no encontro anterior, e se isso se repetisse... Moema se levanta e lê.
“Não posso escrever. Se eu escrever eu me revelo.”
E calou-se. O silêncio agora é mortal! Mais uma vez, Tobias aguarda. Após longos e desconfortáveis minutos, Sérgio volta a comentar, dessa vez impiedoso, Do que você tem tanto medo, Moema? ...todos temos nossos segredos, e uma das funções da escrita é essa mesma, permitir que nosso inconsciente se mostre, mesmo que disfarçada e parcialmente, através do que alguns chamam de escrita terapêutica; um bom exemplo disso é a sua frase, Moema, que revela muito de você; eu gostei!
Sérgio é calorosamente aplaudido. Clarice levanta e abraça Moema, percebe-se em ambas os olhos úmidos. Tobias respira aliviado. A oficina avança ao gosto dele: pouca interferência, liberdade de expressão, exercício da crítica e do pensar.
Senhores, para o encontro de amanhã, preparem texto no qual façam parte o Papa Francisco, um dinossauro, um iate, uma frondosa mangueira, um cão sarnento e uma cabeleireira.
Boa tarde a todos e até amanhã.