terça-feira, 10 de março de 2020

Literatura em microcontos


Gosto por uma literatura

De repente, descobriu a literatura japonesa. Depois de devorá-la, notou no espelho seus olhos mais puxados.


Ingenuidade

Ele acreditava que um círculo de giz traçado em torno de uma galinha seria capaz de mantê-la presa ali.

(Inspirado em Doutor Glas, de Hjalmar Söderberg.)



Alta literatura

Escreveu um poema que começava assim: “eu gosto mesmo é de ficar bêbado”. E achava que aquilo era bonito.

Em louvor da sombra




Em louvor da sombra, de Jun`ichiro Tanizaki (Penguin Classics Companhia das Letras, 2017), tradução de Leiko Gotoda, é um livro extraordinário, uma pequena obra prima.
            Escrito em 1933, trata-se de um ensaio sobre estética, mais precisamente sobre a estética do Japão antigo, cujo bom gosto já estava ameaçado à época, pela inexorável modernização ocidental, em especial pela influência americana. Tanizaki reafirma a beleza da sombra, do que ela faz com objetos e paisagens, atenuando-lhes a excessiva claridade, a provocar penumbra, essência da beleza.
            O autor fala da arquitetura, teatro, comida, vestuário, do tom de pele do japonês, com atenção à alvura do rosto da mulher japonesa, aspectos da cultura que ele diz precisam ser preservados, em detrimento das comodidades modernas.
            O estilo é elegante, porém incisivo, escrito por quem tem autoridade sobre o assunto; dito em outras palavras, por quem sabe pensar – e sentir – o tema.
            Impressionante a descrição do banheiro japonês, trecho que apresento ao leitor:

“Sempre que, em templos de Kyoto ou Nara, sou conduzido a uma escura e antiquada latrina impecavelmente limpa, sinto renovar-me em mim a admiração pela arquitetura japonesa. Zashiki, as salas de estar japonesas, são belas, não há dúvida, mas na minha opinião as latrinas oferecem paz de espírito aos usuários. Construída invariavelmente longe do corpo da casa, à sombra de arbustos e em meio à folhagem e ao musgo de verde fragrância, a ela se chega transpondo corredores, quando então acocorado em meio à baça claridade refletida pelo shoji, considero simplesmente indescritível a sensação de contemplar o jardim pela janela e me perder em pensamentos. Segundo dizem, o escritor Soseki Natsume contava as idas matinais ao banheiro entre os prazeres de sua vida, e delas auferia êxtase fisiológico. E para experimentar tal êxtase não há em minha opinião lugar mais adequado que uma latrina em estilo japonês, onde, cercado por sóbrias paredes de madeira de requintado veio, pode-se contemplar tanto o céu azul como o verdejante frescor das plantas.”

            Chega a ser cômica para nós, homens do século 21, a expressão “êxtase fisiológico”; no entanto, Tanizaki trata o assunto com enorme respeito. Isso espelha bem o abismo que separa as duas épocas e culturas. 
Naturalmente a leitura de Em louvor da sombra deve ser efetuada em ambiente de completo silêncio e luz apenas suficiente, para que se possa atingir o êxtase de espírito.