Em O mito do
vaso partido e outros escritos (ExLibris, 2010), este blogueiro publicou
artigo intitulado A arte de conversar, que agora transcreve para o Louco por
cachorros, por considerá-lo fundamental, e por ser revisitado com frequência a partir de escritos de outros autores. Ei-lo, na íntegra:
No prólogo de Sobre a amizade e outros diálogos, em parceria com Osvaldo Ferrari,
Borges afirma: “Uns quinhentos anos antes da era cristã aconteceu na
Magna Grécia a melhor coisa registrada na história universal: a descoberta do
diálogo”. Se tal descoberta é tão antiga, por que ainda é tão raro que seja praticada,
tão difícil de se realizar? Por que os homens têm tanta dificuldade para
aprender a conversar?
Passamos a chamar de conversa o que
comumente se chama de diálogo (haverá quem discorde: vamos conversar?), e
sempre que possível, procuraremos estabelecer analogias entre a possibilidade
de conversa cotidiana, dita “comum”, e a conversa particularíssima, dita
psicanalítica, entre analista e analisando.
A dificuldade maior para se estabelecer
uma conversa começa com a dificuldade de escutar. Borges poderia ter dito que a
grande descoberta foi esta: a arte de escutar. Na epígrafe do Ensaio sobre a cegueira, Saramago adianta que “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”. Uma paráfrase possível:
se podes ouvir, escuta; se podes escutar, repara.
O verbo reparar tem duplo significado:
prestar atenção, mas também consertar. Este pode ser um dos efeitos do ato de
ouvir-escutar-reparar, sobre aquele que fala – o efeito reparador. De certa
maneira, reparar aqui está bem próximo de cuidar, pois quem ouve-escuta-repara,
cuida. Pode-se então estabelecer o início de uma conversa.
Bem,
não basta ouvir para que se estabeleça o diálogo, é preciso dizer,
manifestar-se, expor-se, diante daquilo que foi escutado. Dizer algo a
respeito, ressoar, vibrar em consonância. Agora as coisas começam a se
complicar: ouvir, escutar, reparar, e responder em consonância. A necessidade
do reconhecimento do outro e de si mesmo torna-se imprescindível. Montaigne, no ensaio intitulado Da arte da
conversação, assinala que “o mais proveitoso e natural exercício de nosso
espírito é, em minha opinião, a conversação. Acho sua prática mais doce do que
qualquer outra ação de nossa vida; é a razão por que, se agora fosse forçado a
escolher, creio que antes concordaria em perder a visão do que a audição ou a
fala.” Torna-se ainda mais relevante esta observação de Montaigne,
considerando-se que se trata do mestre do ensaio, gênero que aparentemente se
caracteriza por verdadeiro monólogo. A menos que se considere o leitor
partícipe de uma conversa denominada leitura (voltaremos ao tema mais adiante).
E a
palavra retorna àquele que primeiro falou, e aquele que primeiro ouviu torna a
escutar. Parece tão simples, pois, conversar. Porém, Narciso – outra invenção
dos gregos – intromete-se. Ainda que seja antiga a prática da
conversa, o tempo da crueldade narcísica é mais antigo. Já não se ouve, muito menos se escuta, e a resposta
não vem em consonância, desconversa-se, desanda o diálogo.
Usando a sexualidade como modelo, esse impasse equivale a “relação
sexual” onde um dos parceiros não realiza que está na presença do outro, mas
diante de um receptáculo para suas “ejaculações verbais”, sem qualquer intenção
de troca, de parceria. Uma conversa é um ato mútuo de atenção, consideração,
respeito e expectativa de aprendizagem, o que no sentido psicanalítico
caracteriza a “primazia da genitalidade”, como expressão maior da entrega, do
encontro e da renúncia de aspectos narcísicos destrutivos (inveja, intolerância
às diferenças, ausência de humildade para o aprender a dois).
É
verdade que aquele que está disposto ao exercício da conversação tem a
expectativa de receber de seu interlocutor idéias de valor, de espírito,
concatenadas e vigorosas. Não espera conversar com um tolo. Ainda em Montaigne, no mesmo ensaio, encontramos valioso alerta: “A tolice é uma
qualidade má; porém não poder suportá-la, e irritar-se e roer-se por causa
dela, como me acontece, é uma outra espécie de doença que pouco fica devendo à
tolice em importunidade.” O desenvolvimento da tolerância (não no sentido moral
ou religioso da palavra, porém no autêntico reconhecimento das diferenças),
portanto, nos parece outro elemento fundamental para o diálogo.
Certa paciente, tendo nascido em berço
de ouro, digamos que exercitou muito pouco a necessidade de pensar, privada que
foi de muitas das frustrações cotidianas desde seu nascimento. Em certa altura
do processo analítico, que se desenvolvia penosamente para ambos, paciente e
analista, ela exclama: “Se Deus queria punir os homens e enviou o dilúvio, por
que então não criou tudo de novo, como da primeira vez, em lugar daquela
trabalheira danada da Arca de Noé, com os casais de bichos e tudo mais?” O que
poderia ser tomado como uma grande tolice, em uma conversa “comum”, pôde ser interpretado
como tentativa de pensar com a própria mente, ao contestar atos divinos
incutidos pelo processo civilizatório. Bem verdade que agora estamos falando do
tipo particular de conversa, o diálogo analítico, onde bobagem ou tolice quase
sempre têm sua serventia; apenas com tolerância e paciência podemos ouvi-los.
Então, ouvir, escutar e reparar podem constituir-se em algo terapêutico, ou
melhor, algo que propicie transformações em direção ao crescimento psíquico.
Encontros com diferentes propósitos, culturais,
políticos, científicos – como os congressos de psicanálise, por exemplo –
ocorrem com o pretexto (legítimo) de se trocar ideias sobre os mais diversos
temas; enfim, conversar sobre eles. Com frequência, de fato, trocam-se ideias:
porém, cada um sai dos encontros com suas mesmas ideias de antes. Difícil, e
muito mais interessante, é trocar de ideias, abrir mão de um ponto de vista em
favor de outro, o que pode significar efetivamente uma transformação (Machado
Neto).
Outro
elemento surge nesse processo, não menos importante, embora de mais difícil
percepção: o silêncio. É preciso fazer silêncio (interior) para poder escutar o
que de fato o outro está dizendo, com a menor interferência possível de nossa
própria mente. Aqui surge o que pode ser visto como um distanciamento entre a
conversa “comum” e o diálogo analítico; o silêncio do analista, quer seja o do
vazio continente, quer seja o da abstinência verbal (Green), difere do
silêncio daquele que escuta o outro na conversa “comum”. Nesta última situação
não deverá haver qualquer intenção interpretativa, ou não se trata de uma
conversa “comum” (o “furor interpretativo” de algum analista deve ser contido,
para o bem de sua convivência social).
Em Água viva, Clarice Lispector propositadamente confunde o significado do silêncio nesses dois tipos de
conversa: "...será que consigo me entregar ao expectante
silêncio que se segue a pergunta sem resposta? ...Ouve-me, ouve o silêncio. O
que te falo nunca é o que eu te falo e sim outra coisa. Capta essa coisa que me
escapa...” Torna-se evidente aqui a riquíssima interface entre literatura e
psicanálise: a possibilidade da conversa entre autor e leitor. Thomas Ogden assinala que “Ler não é uma simples questão de examinar, ponderar ou até
pôr à prova as idéias e experiências apresentadas pelo escritor. Ler implica
uma forma de encontro muito mais íntima.” Nesse sentido, ler é conversar – um
outro tipo de conversa.
Na
psicanálise atual dá-se ênfase na observação da relação, da parceria, principalmente
na forma como os dois participantes conversam e se comunicam. Daí a necessidade
de uma linguagem que não os distancie da linguagem comum. Tarefa árdua na
medida que requer da dupla, e principalmente do analista, paciência,
tolerância, respeito e capacidade para suportar diferenças de opinião e de
vértices. É claro que no âmbito da conversa analítica aparece um complicador
maior: o estado subjacente de angústia que a conversa traz. Estamos nos
referindo a uma especificidade de diálogo, que Freud chamou de comunicação de
inconsciente para inconsciente. A questão se reverte de mais complexidade, e,
no entanto, é um cenário que oferece a possibilidade de pesquisa das
dificuldades inconscientes para conversar.
Nunca
um autor esteve tão empenhado na questão da comunicação analítica como Wilfred
R. Bion, e uma invariante temática em toda a sua obra toca a questão da
disciplina para se escutar, observar, respeitar a conversa, lembrando que a memória, o desejo e a
necessidade de compreensão podem sabotar a capacidade de ouvir, escutar,
reparar e cuidar. Em Seminários Romanos,
Bion enfatiza sua preocupação metodológica quando escreve: "Volvamos de nuevo a las preguntas: que
observamos y qué debemos hacer con nuestras observaciones? Recuerdo que una vez
me preguntaram "Usted hace algo más que hablar?", contesté: "Si,
estar callado". Temo que sea difícil de creer para vosostros mientras yo
estoy aquí hablando, pero en análisis me gusta poder estar callado. Es muy
difícil de hacer, como sabemos, porque sobre nosostros existe la presión para
que digamos o hagamos algo." ..."Pienso, por tanto, que es muy
importante hacer que vuestro lenguaje sea lo más exacto posible, tanto si lo
utilizáis para comunicarnos com vosostros mismos como para comunicar con alguíen
ajeno a vosostros.”
Note-se
o cuidado com a relação, o respeito pelo diálogo e a preocupação de procurar
sempre uma forma específica de linguagem que diga respeito a cada dupla.
Quando, em determinados momentos não tão
frequentes numa sessão de análise, a dupla entra em sintonia – exemplo de
“social-ismo” –, deixando de lado a contenda narcísica, a rivalidade, a
onipotência e a onisciência, então acontece o diálogo, a conversa, a arte da
troca, e por consequência, a reparação interna. Nesse momento, o momento
interpretativo-mútuo, ocorre a experiência de transformação, quando ambos saem
de seus refúgios autísticos para a capacidade genital de se relacionar, de
gerar, fecundar, criar filhos, acrescer recursos para intercomunicação. Essa
conversa se transforma num cenário de projeções-introjeções estruturantes,
expandindo o mundo interno dos parceiros
analíticos, expandido também o mundo das relações sociais.
Voltemos
pois ao início do presente trabalho, para ressaltar que, no citado livro de
Borges e Ferrari, e não de maneira fortuita, a palavra diálogo vem acompanhada
da palavra amizade. Como manter tão longo e produtivo diálogo – que resultou na publicação de três volumes –
se não amparado na amizade entre ambos? Difícil definir amizade; nem mesmo
Platão, ao dar voz a Sócrates em Lísis ou
da amizade, conseguiu fazê-lo (Baldini). Entretanto, Guimarães Rosa,
em sua simplicidade e gênio, nos socorre: “Amigo, para mim, é só isto: é a
pessoa com quem a gente gosta de conversar, do igual o igual, desarmado. O de
que um tira prazer de estar próximo. Só isto, quase; e os todos sacrifícios. Ou
– amigo – é que a gente seja, mas sem precisar de saber o por quê é que é.”
Conversar
com um amigo é outra coisa, diríamos. A amizade constitui-se então em uma
condição facilitadora do diálogo, especialmente pela existência de intimidade e
confiança recíprocas. Desaparecem o temor, a preocupação com o interesse, a
tendência ao julgamento: desarmam-se os espíritos. Concordar ou divergir
tornam-se nada mais que qualidades intrínsecas do diálogo, nunca uma ameaça,
mesmo que isso represente um “sacrifício” narcísico. Uma conversa entre dois
amigos tem o poder de transformá-los a ambos.