Na interessantíssima introdução de Haicais tropicais(Companhia das letras, 2018), seu organizador Rodolfo Witzig Guttilla cita Reginald Horace Blyth (1898-1964), autor inglês devotado à cultura japonesa, que teria estabelecido determinadas condições para a prática do haicai.
São elas: abnegação, aceitação da solidão, desprendimento, ausência do ego, acolhimento da contradição, liberdade, simplicidade, ausência de moralidade, amor pelas coisa materiais e inanimadas, coragem, e, por fim, mas não menos importante, o humor. São todos estados de espírito presentes no zen-budismo.
Este blogueiro, aprendiz de haicaista, aprecia imensamente este traço do poema japonês, às vezes de uma sutileza incrível, outras vezes o humor rasgado, quase grosseiro.
Apresento ao leitor alguns exemplos da presença do humor no haicai, a começar por Matsuó Bashô (1644-1694), mestre da pintura e da poesia, considerado por muitos o pai do haicai, e de quem poderíamos esperar apenas circunspecção; ele escreveu:
entre pulgas e piolhos
recostado no travesseiro
ouvia os cavalos mijarem
Camila Jabur: grande geada
branco branco branco
e uma vaca malhada
Gustavo Alberto No dia quente
Correa Pinto: embaixo da árvore
vacas conversam
Mário Quintana: Silenciosamente
sem um cacarejo
a Noite põe o ovo da Lua...
No meio da ossaria
Uma caveira piscava-me...
(Havia um vaga-lume dentro dela.)
Paulo Franchetti: Os grilos cantam
Apenas do meu lado esquerdo –
Estou ficando velho.
Ricardo Silvestrin: fiapos de sol
o cachorro se espreguiça
depois fica pensando
velhinha na janela
todo mundo que passa
é visita pra ela
André Vianna: apenas amostra
da diversa natureza
flor que cheira a bosta
caiu no banheiro
quebrou o fêmur
ganhou a liberdade
não nasceu em Paris
estava decretado
jamais seria feliz
crec crec crec
com as chuvas
perereca na varanda
Millôr Fernandes: O pato, menina
É um animal
Com buzina
Carlos Drummond O pintor ao meu lado
de Andrade: reclama:
Quando serei falsificado?
Gosto tanto de ir ao teatro
que por amor ao teatro
vê lá se vou ao teatro.
***
Espero que o leitor tenha se divertido.
E há muitos mais
basta procurar
em livros de haicais.
Beleza de coletânea. Humor fino não é coisa fácil.
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