terça-feira, 21 de dezembro de 2021

Pazuellização

Charge do dia


 Gilmar Fraga

A figura do Narrador em Flaubert, Llosa e Saramago

 

Mario Vargas Llosa escreveu hoje (21) para O Estado de S.Paulo: “Em algum momento do século passado, cheguei a Paris e no mesmo dia comprei um exemplar de Madame Bovary numa livraria do Quartier Latin chamada Joie de lire. Depois de passar a maior parte da noite lendo, ao amanhecer já sabia o tipo de escritor que queria ser e, graças a Flaubert, estava começando a aprender todos os segredos da arte do romance.” 

      Trata-se de um depoimento importante, de um dos monstros sagrados da literatura da América Latina. Diz ele:

      “Ninguém deu maior ímpeto ao gênero romance que o solitário de Croisset. Ele descobriu que o narrador era o personagem mais importante que o romancista podia criar, e que este poderia ser um narrador impessoal que sabia de tudo - uma imitação de Deus Pai - ou um contador personagem, e que estes podiam ser vários e diversos. Desse modo, Flaubert criou o romance moderno e lançou as bases daquilo que, anos depois, seriam os infinitos arranjos e figuras inventadas por James Joyce para dotar o romance e diferenciá-lo do passado, dos clássicos.” (Tradução de Renato Prelorentzou)

Na Revista Ler #38 (Primavera/Verão de 1997), José Saramago publica o ensaio "O autor como narrador", causando certa polêmica ao acrescentar importante contribuição à ideia do que seria o verdadeiro papel de um narrador. Reproduzo aqui alguns trechos do brilhante ensaio, respeitando a escrita de Portugal utilizada pelo autor.

 

“...a minha ousada declaração de que a figura do narrador não existe, e de que só o autor exerce função narrativa real na obra de ficção, qualquer que ela seja, romance, conto ou teatro. E quando, indo procurar auxílio a uma duvidosa ou, pelo menos, problemática correspondência das artes, argumento que entre um quadro e a pessoa que o contempla não há outra mediação que não seja a do respectivo autor, e portanto não é possível identificar ou sequer imaginar, por exemplo, a figura de um narrador na Gioconda ou na Parábola dos Cegos, o que se me responde é que, sendo as artes diferentes, diferentes teriam igualmente de ser as regras que as traduzem e as leis que as governam. Esta peremptória resposta parece querer ignorar o facto, fundamental no meu entender, de que não há, objectivamente, nenhuma diferença essencial entre a mão que guia o pincel ou o vaporizador sobre a tela, e a mão que desenha as letras sobre o papel ou as faz aparecer no ecrã do computador, que ambas são, com adestramento e eficácia similares, prolongamentos de um cérebro, ambas instrumentos mecânicos e sensitivos capazes de composições e ordenações sem mais barreiras ou intermediários que os da fisiologia e da psicologia.” 

“Nesta contestação, claro está, não vou ao ponto de negar que a figura do que denominamos narrador possa ser demonstrada no texto, ao menos, com o devido respeito, segundo uma lógica bastante similar à das provas definitivas da existência Deus formuladas por Santo Anselmo... Aceito, até, a probabilidade de variantes ou desdobramentos de um narrador central, com o encargo de expressarem uma pluralidade de pontos de vista e de juízos considerada útil à dialéctica dos conflitos. A pergunta que me faço é se a obsessiva atenção dada pelos analistas de texto a tão escorregadias entidades, propiciadora, sem dúvida, de suculentas e gratificantes especulações teóricas, não estará a contribuir para a redução do autor e do seu pensamento a um papel de perigosa secundaridade na compreensão complexiva da obra.” 

... "O escritor de histórias, manifestas ou disfarçadas, é portanto um mistificador: conta histórias e sabe que elas não são mais do que umas quantas palavras suspensas no que eu chamaria o instável equilíbrio do fingimento, palavras frágeis, assustadas pela atracção de um não-sentido que constantemente as empurra para o caos de códigos cuja chave a cada momento ameaça perder-se.” 

“Muito pelo contrário: o autor está no livro todo, o autor é todo o livro, mesmo quando o livro não consiga ser todo o autor. Não foi simplesmente para chocar a sociedade do seu tempo que Gustave Flaubert declarou que Madame Bovary era ele próprio. Parece-me, até, que, ao dizê-lo, não fez mais do que arrombar uma porta desde sempre aberta. Sem faltar ao respeito devido ao autor de Bouvard et Pécuchet, poder-se-ia mesmo dizer que uma tal afirmação não peca por excesso, mas por defeito: faltou a Flaubert acrescentar que ele era também o marido e os amantes de Emma, que era a casa e a rua, que era a cidade e todos quantos, de todas as condições e idades, nela viviam, casa, rua e cidade reais ou imaginadas, tanto faz. Porque a imagem e o espírito, o sangue e a carne de tudo isto, tiveram de passar, inteiros, por uma só pessoa: Gustave Flaubert, isto é, o autor, o homem, a pessoa. Também eu, ainda que sendo tão pouca coisa em comparação, sou a Blimunda e o Baltasar de Memorial do Convento, e em O Evangelho Segundo Jesus Cristo não sou apenas Jesus e Maria Madalena, ou José e Maria, por-que sou também o Deus e Diabo que lá estão..."

E Saramago conclui: "O que o autor vai narrando nos seus livros é, tão-somente, a sua história pessoal, Não o relato da sua vida, não a sua biografia, quantas vezes anódina, quantas vezes desinteressante, mas uma outra, a secreta, a profunda, a labiríntica, aquela que com o seu próprio nome dificilmente ousaria ou saberia contar. Talvez porque o que há de grande em cada ser humano seja demasiado grande para caber nas palavras com que ele a si mesmo se define e nas sucessivas figuras de si mesmo que povoam um passado que não é apenas seu, e por isso lhe escapará sempre que tentar isolá-lo e isolar-se nele. Talvez, também, porque aquilo em que somos mesquinhos e pequenos é a tal ponto comum que nada de novo poderia ensinar a esse outro ser pequeno e grande que é o leitor. Finalmente, talvez seja por alguma destas razões que certos autores, entre os quais julgo dever incluir-me, privilegiem, nas histórias que contam, não a história que vivem ou viveram, mas a história da sua própria memória, com as suas exactidões, os seus desfalecimentos, as suas mentiras que também são verdades, as suas verdades que não podem impedir-se de ser mentiras. Bem vistas da coisas, sou só a memória que tenho, e essa é a história que conto. Omniscientemente.” 

“Quanto ao narrador, que poderá ele ser senão uma personagem a mais de uma história que não é a sua?" 

 

      Temos aqui as opiniões de três gigantes da literatura mundial: Flaubert, Llosa e Saramago. É bastante educativo poder compará-las. Sem contar a delícia que é reler José Saramago, o nosso Nobel da Língua Portuguesa.

 

https://cultura.estadao.com.br/noticias/literatura,duzentos-anos,70003932112

 

http://desaramago.blogspot.com/2016/05/o-autor-como-narrador-jose-saramago.html