quinta-feira, 4 de abril de 2019

Suzete disseca um microconto


André, meu querido

você deve estar muito ocupado e por isso tarda a responder minhas pobres cartinhas. Não me importo, apenas sinto falta de ler o que você escreve só para mim. Para consolo meu, sigo o Louco por Cachorros religiosamente, fonte de inspiração para muitos pensamentos e ideias. Aqui vão algumas delas, elaboradas recentemente.
            Você publicou um microconto incrível, com uma frase que não me sai da cabeça! E ainda por cima em colaboração com seu médico!! Que coisa! Você precisa explicar melhor esta parceria. Transmita meus parabéns a ele. O título que você deu foi Aguda sensibilidade, muito bom por sinal. Reproduzo o microconto:

“O patrão pediu a opinião dele sobre o novo capataz. Simples e analfabeto, foi taxativo:
– Doutor, não vejo ninguém naquela pessoa.”

            Entendi que o tal empregado, simples e analfabeto, embora em posição inferior em relação ao capataz, é pessoa de confiança do doutor, que provavelmente está acostumado a se aconselhar com ele. A despeito da simplicidade, é homem de aguda sensibilidade, o doutor sabe disso.
            Então vem a magnífica frase: “não vejo ninguém naquela pessoa.”
            Olhar para alguém e não ver ninguém, eis a questão! 
            Tem gente tão desenxabida, tão insossa, tão sem-graça nessa vida, que a gente olha e não vê mesmo ninguém. Transparentes, apagadas, são verdadeiras moscas-mortas, como se diz. (Acho que se prestarmos bastante atenção, vamos encontrar uma alma nessas pessoas desenxabidas. Foi o caso da Gracinha, minha colega de salão. Tanto fiz que encontrei dentro dela, bem escondida, uma ótima pessoa, hoje minha amiga.)
            Há também aqueles que se escondem da vida e dificilmente podem ser vistos; muitos, por medo de viver. (O Rosa, que li com muita dificuldade – nunca vi tanta palavra escalafobética –, mas li, não se cansa de repetir que “viver é muito perigoso”.)
            Penso, no entanto, que nada disso se aplica ao seu microconto, meu querido amigo. (Estou apenas enchendo linguiça, brincando de escritora...) Considerando as circunstâncias (aprendi isso com você), a existência de três personagens que se relacionam, o patrão, o homem simples e o novo capataz, há um julgamento moral bastante evidente nessa história. 
O capataz não é nenhuma mosca-morta; ao contrário, talvez seja bom não confiar nele, diz o homem simples. Pior, talvez ele seja do mal, e o homem simples percebeu isso num relance; tão ruim que nem mesmo um homem há dentro dele para ser visto ou considerado; não há ninguém lá dentro; ou talvez haja um filho do Capeta. 
            Nesse último caso, trata-se de um alerta que o homem simples e sábio faz ao patrão, igualmente sábio porque pôde ver a alma do homem simples. E este tipo de alerta pode servir para todos nós, nas escolhas que fazemos na vida. Vale a pena tentar desenvolver a sabedoria do homem simples para detectar melhor (mesmo assim com grande margem de erro) o que podemos ver nas pessoas. Porque o que não podemos ver é infinitamente maior.
            E o que será que aquele que olha para mim, vê? Se é que vê alguma coisa. (Outro dia entrou aqui um sujeito, murmurou um monossílabo entredentes, cortei-lhe o ralo cabelo, pagou, saiu sem me dirigir uma única palavra ou olhar para a minha cara. Euzinha transparente.) 
            Quem mora dentro de mim? 
            Você vê alguém quando olha para mim, André?
            Estou aprendendo que um microconto pode ser bem maior que um volumoso romance.
            
Da sempre sua, com afetuoso abraço,

                                                                       Suzete.


P.s.: Putaquepariu! Ia me esquecendo de escrever um palavrão!
            

3 comentários:

  1. Ha ha uma figura essa Suzete! As cartas merecem um livro!!!

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  2. Fantástica, a Suzete crítica literária! Queremos o livro! Queremos o livro!

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  3. Saudade dela. Não a vejo e enxergo-a !

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