quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Guilherme de Almeida e o Haicai

Em homenagem ao meu pai.




Por influência paterna, provavelmente, sempre admirei Guilherme de Almeida, em especial por seus haicais. Guilherme de Andrade de Almeida nasceu em Campinas em 24 de julho de 1890, e faleceu em São Paulo em 11 de julho de 1969. Foi advogado, jornalista, crítico de cinema, poeta, ensaísta e tradutor. Participou da Semana de 22, exercendo influente papel na poesia modernista brasileira.
            Considerado um dos incentivadores do desenvolvimento do haicai brasileiro, criou modelo próprio para este tipo de poesia, de origem japonesa, basicamente composta de um terceto, com 5 sílabas tônicas no primeiro verso, 7 no segundo e 5 no terceiro. Guilherme de Almeida acrescentou as rimas entre o primeiro e terceiro versos, e rimas internas entre a segunda e a última sílabas tônicas do segundo verso. O modelo torna-se facilmente compreensível quando representado pelo esquema:
____________ x
__ o ______________ o
_____________ x
            Tal modelo, por sua rigidez de forma, a exigir rigorosa disciplina do poeta, foi rejeitado por muitos, sob a alegação de que não era este o espírito do haicai japonês. Por outros foi enaltecido e ganhou fama. Porém, quem há de discordar da beleza poética contida nos seguintes versos?

O haicai

Lava, escorre, agita
a areia. E enfim, na bateia,
fica uma pepita.

Ou nesses outros:
O pensamento

O ar. A folha. A fuga.
No lago, um círculo vago.
No rosto, uma ruga.
Ou ainda:
Infância

Um gosto de amora
comida com sol. A vida
chamava-se “Agora”.

            Tamanho o entusiasmo de Guilherme de Almeida por esta nova forma poética, que ele acaba por registrar em Os meus haicais, uma verdadeira declaração de amor ao gênero: “Vinte anos de poesia – uns 30 livros de versos escritos e uns 20 publicados – levam-me hoje à conclusão calma (que não é uma negação à minha nem um sarcasmo à obra dos outros) de que não há ideia poética, por mais complexa, que, despida de roupagens atrapalhantes, lavada de toda excrescência, expurgada de qualquer impureza, não caiba escrita e suficientemente, em última análise, nas 17 sílabas de um haicai.”
Outra novidade atribuída a Guilherme de Almeida foi a introdução de um título para o haicai. E chego então à razão desta crônica.
Isso que se convencionou chamar de abrasileiramento do haicai teve, e continua tendo, suas consequências. No primeiro exemplo intitulado O haicai, a palavra pepita que serve de fecho ao poemeto cai como uma pérola, como que ofertando ao leitor belíssima definição de haicai: pequeno e precioso como uma pepita de ouro! Mas só é possível associar o terceto à arte do haicai se o leitor considerar o título. No segundo haicai, O pensamento, o título nada acrescenta, é dispensável, e se é dispensável é porque está sobrando. No terceiro, Infância, ele acrescenta o elemento temporal, que empresta particular sentido ao terceto.
Nem sempre isso funciona assim tão bem... Tomo como exemplo o seguinte poema:

Desfolha-se a rosa:
parece até que floresce
o chão cor-de-rosa.

Almeida capta lindamente o fugaz momento de transformação, no qual a rosa perde seu encanto, pois que este é transferido para o chão, no mais puro espírito do haicai. Não há qualquer dicotomia moralista do tipo certo-errado, o poeta tão somente coloca o leitor diante de uma manifestação da Natureza.
            Eis que o autor resolve dar-lhe um título, e o faz com extrema infelicidade: Caridade. E no afã de explicar o poema (o inexplicável) aos “não familiarizados com o espírito e a forma da exígua novidade”, segundo suas próprias palavras, acrescenta: “A flor, que se desfolha, é bem uma lição moral de alta caridade: dir-se-ia que ela se despe do que é seu, que ela toda se dá à terra humilde, para que o pobre chão, a seus pés, pense que também é capaz de florir.” (Haicais completos, Aliança Brasil-Japão, 1996.) Penso que o título não ajuda, muito menos os comentários. O haicai, com aquele título, foi transformado em sermão moralista, piegas, antinatural, pois não há lição de moral na Natureza, muito menos caridade. A terra não é humilde ou arrogante, pois estas são qualidades humanas. Diz-se que um chão é pobre quando não contém os nutrientes necessários a uma determinada cultura, e assim mesmo, boas uvas crescem de parreiras plantadas no duro cascalho arenoso. O chão não pensa, é chão apenas.
   Não é disso que se alimenta a poesia.
            Paulo Franchetti, poeta e pesquisador do haicai, afirma categoricamente que “o título empobrece os textos, pois determina a direção da leitura ou força uma decifração metafórica do terceto que nomeia.” (Haicais completos, Aliança Brasil-Japão, 1996). De fato, isso pode ocorrer. Mas na composição intitulada Velhice, do mesmo Guilherme de Almeida, penso que o título acrescenta, ou clareia uma ideia, sem qualquer perda do efeito poético, embora não seja absolutamente indispensável:

Uma folha morta.
Um galho no céu grisalho.
Fecho a minha porta.
            
          Meu ponto de vista, portanto, é que o título pode ajudar, atrapalhar, pode ser indiferente, bem como essencial, a depender do engenho e arte do poeta. Até mesmo para o grande Guilherme de Almeida, cognominado Príncipe dos Poetas Brasileiros, com todo o meu respeito e admiração.
Cultivemos, pois, o haicai!

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

pavor canino

raios, trovoada
o cão se esconde no vão
da pequena escada

Mistério em Ipanema


Quando Ondina se mudou com a família para a Rua Montenegro, hoje Vinícius de Moraes, em pleno coração de Ipanema, fez questão de imprimir uma nova marca a sua vida. O apartamento, um por andar – como se costumava dizer – e  com ar refrigerado central, elevava o nível social da família a alturas nunca dantes imaginadas.
            Antes de mais nada é preciso dizer que Ondina nasceu em Floriano, obscuro povoado do interior do Estado do Rio, cortado ao meio por monstruoso aterro sobre o qual passa a estrada de ferro que liga o Rio a São Paulo. E que a mãe dela, Dona Josefina, também havia nascido em Floriano. Já a avó, viera de Marselha, na França, e sabe deus como veio parar naquelas bandas, mas esta é uma outra história.
            Menina ainda, foi estudar em Guaratinguetá, onde fez o curso Normal, formando-se professora. Trabalhou por uns tempos em Volta Redonda, na Companhia Siderúrgica Nacional. Casou-se. Morou um ano em São Paulo, depois Taubaté, novamente Guará, e em cada um desses lugares nasceu um filho seu. Até que por fim chegou ao Rio de Janeiro, a realização de um grande sonho, minuciosamente arquitetado ao longo de muitos anos.
            Morou na Tijuca, de aluguel, num pequeno sobrado, até que a família se assentasse. Logo mudou-se para um bom apartamento em Laranjeiras, onde viveu por dois ou três anos. Enfim, chegou a Ipanema!
            Decorou o apartamento de ampla sala com discreto bom gosto. Certo dia, para a surpresa da família, chegou em casa com dois quadros, óleos sobre tela, de tamanho médio, moldura bem simples. Um deles, uma marinha, pouca tinta sobre a tela, uma rede apenas insinuada, um pescador, uma cesta de peixes, muito azul. O outro, o que parecia ser o fundo de uma igreja, uma árvore densa em primeiro plano, folhagens espessas.
            Nada se falou sobre eles. Nenhum comentário do marido ou dos filhos, nenhuma explicação por parte da compradora. Onde adquirira os quadros? Recebera alguma orientação de especialista em arte na escolha dos mesmos? Haveria consultado algum catálogo de arte? Ou apenas seguira seu próprio gosto e intuição? Ninguém perguntou e nada foi dito a respeito do custo daquelas obras. Embora moradores de Ipanema, sobrava pouquíssimo dinheiro no bolso dos membros da família. Quanto custaram? Se havia pouco dinheiro, pagou-se pouco pelos quadros, e por consequência, deveriam valer pouco, artisticamente falando. Este era um raciocínio inevitável. Bem, simplesmente foram pendurados na sala, como se sempre tivessem estado naquelas paredes, um verdadeiro mistério.
Nunca se soube que Ondina manifestasse gosto pela pintura. Pela música sim, que considerava Beethoven um deus! Apreciava os clássicos, numa faixa de cronologia que ia de Bach a Brahms; gostava das Bachianas de Villa Lobos, mas era só; os modernos, nem pensar. A pintura não fazia parte das conversas familiares.
            A interrogação a respeito do real valor artístico dos dois quadros adquiridos por Ondina permaneceu portanto no limbo. Pensava-se sobre o assunto, não se falava dele. Nunca se falou dele até hoje, vários anos após a morte de Ondina.
            Uma das pinturas veio parar em minhas mãos, como herança, pelos préstimos de meu irmão. A outra parece que pertence a uma sobrinha, nem mesmo sei o nome do pintor. A que me coube, mandei-a restaurar e encontra-se hoje em minha sala. Não foi difícil identificar a assinatura do pintor, e mais fácil ainda foi pesquisar seu nome na Internet. Eis o quadro, e um resumo da vida e obra do pintor:



“Armínio de Moura Pascual (Rio de Janeiro, 4 de abril de 1920Petrópolis, 31 de agosto de 2006) foi um pintor do Brasil, discípulo de Armando Viana e de Gerson de Azeredo Coutinho. Foi professor da Sociedade Brasileira de Belas Artes e figurou em diversas coletivas no país e no exterior (Europa). Recebeu diversos prêmios. No Salão Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro, conquistou medalhas de bronze, prata, ouro, e o prêmio de viagem ao estrangeiro. Expôs sua excelente pintura em várias cidades do mundo em mostras individuais. Tem trabalhos em vários museus, dentre eles no Museu Nacional de Belas Artes. Foi principalmente um paisagista.
A seu respeito escreveu Pietro Maria Bardi: “A excelência da paisagem coloca-o entre os melhores pintores contemporâneos do gênero. Paralelamente à paisagem, fixa cenas com melindrosas e ambiências das décadas de 20 e 30, repositórios da memória de infância. Mas no momento universal de uma paisagem que se essencializa, no ritmo das massas cromáticas que com sabedoria estruturam as composições, é que evidencia a mão do mestre.”
Armínio Pascual recebeu o prêmio de viagem ao exterior no Salão Nacional de Belas Artes em 1971. Dez anos depois realizou uma individual na qual prestava contas da responsabilidade da láurea e de um tempo de ofício resultante do contato com os ambientes artísticos europeus. Surgia então um novo pintor, facilmente situado ao lado de um Sílvio Pinto, de um Bustamante Sá, todos principalmente paisagistas.”

            Ondina continua a nos surpreender!

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013