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quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Uma agonia


Parte II 

Capítulo I

(Romance em construção,
vivido em Londres nos anos 80)


...
            – que agonia meu deus!, dá vontade de entrar no outro!,
– a bonito isso, Bia, é o que se pode chamar de paixão
: Uma Agonia Que Dá Vontade De Entrar No Outro,
            – pois é o que estou sentindo por você agora, Sérgio,
            – e eu por você, Bia, meu amor,
            – de onde é que você surgiu assim de repente sem avisar nem nada e invade a minha vida, Sérgio?,
            – senti seu cheiro, Bia, vim correndo,
            – cheiro?, perfume não fica mais bonitinho?,
            – frescura, é cheiro mesmo, de sua boca, de seu suor, de sua boceta,
            – ai meu deus!,
            – pois é, você rescendeu do lado de cá do Atlântico, eu estava do lado de lá, sossegado em Ribeirão, dando meus plantões na Santa Casa de Misericórdia, senti seu cheiro, vim correndo,
            – seu bobo, você nem me conhecia, como é que podia saber que o cheiro era meu?,
            – saber não sabia, mas sabia que havia alguém muito especial por trás desse cheiro, e encontrei você,
            – e eu não sabia que algum dia ouviria isso de um paulista branquelo e judeu ainda por cima!,
            – devo ouvir isso como três elogios?,
            – você bem sabe que sou ateia, Sérgio,
            – e eu , um judeu nada ortodoxo,
            – ainda bem, ou não estaríamos nessa cama a estas horas da matina.
           
Talvez seja necessário explicar ao leitor de onde surgiu este tal Sérgio. Chegou a Londres vindo diretamente de Ribeirão Preto, o Centro do Mundo para os autóctones, Berçário de Gênios, por aí afora, uma cidade do interior de São Paulo cheia de caipiras como tantas outras, não para os nativos, visto está. Mas Sérgio não era propriamente um caipira. Alto, magro, uma barba cerrada, olhos claros, o andar corcunda, o que mais chamava a atenção nele era a fala mansa, pausada, de quem pensa duas vezes antes de falar.
Professor universitário em sua cidade, vinha a Londres para um estágio na Unidade de Doenças Respiratórias, no mesmo hospital onde trabalhava Beatriz.
Embora tenham se encontrado num momento difícil para ambos, Beatriz às voltas com a complicada pesquisa, Sérgio recém chegado com as mesmas dificuldades iniciais com a língua, o que ocorreu foi o que se chama de paixão a primeira vista, clichê inevitável. Ele, um solteirão, ela divorciada, perdidos no mundo, atiraram-se um ao outro,
– sabe quando num filme o casal transa primeiro para depois perguntar o nome do parceiro, parece que foi isso que aconteceu com a gente, Sérgio,
– foi mesmo, Bia, como eu disse, foi pelo cheiro.
Além de Pablo, agora Beatriz tinha alguém mais com quem conversar sobre sua pesquisa, e ela sabia separar as coisas muito bem,
– amor é amor, trabalho é trabalho,
e mais do que nunca aplicava-se nos experimentos, cada vez mais agressiva na hora de conseguir as necropsias e enfurecer os patologistas, nada a demovia de seus objetivos,
            – preciso descobrir por quê não aparecem as veias do esôfago terminal, Sérgio, quando injeto o contraste pela veia porta e radiografo as peças, aparecem apenas as veias próximas do esôfago, mas o contraste para por ali, não progride, e meu trabalho não sai do lugar, Sérgio, mas que merda,
            – tenha paciência, Bia, Ciência é isso, você não se meteu a cientista?, agora aguenta, continue trabalhando,
            – isso você não precisa me dizer, mas que bom que posso repartir tudo isso com você.
            De fato, ela não desanimava.

terça-feira, 17 de setembro de 2013

O Casal Arnolfini


Capítulo VII

(Romance em construção,
vivido em Londres nos anos 80)


Durante três meses Beatriz tentou localizar Westby, o professor orientador. A secretária da Unidade informou-a de que ele estava de férias, seguidas por estágio num hospital ao norte de Londres, mas que estaria de volta em poucos dias,
            – você vai gostar dele, é um bom homem, você vai ver,
o que despertava nela alguma esperança, atormentada pelo ócio daqueles dias, por não ter o que fazer –  cirurgiã acostumada a fazer –, embora se dedicasse obstinadamente a aprimorar seu inglês. Começara o segundo caderno de colagens, os artigos selecionados um pouco mais complicados, as idas aos dicionários já não eram tão frequentes, mas ainda apanhava muito das manchetes e expressões idiomáticas
: Curiosity killed the cat,
: Dog days of summer,

: It’s rainning cats and dogs,
            – onde já se viu chover gatos e cachorros, só mesmo em cima dos britânicos,
ela brincava, pura implicância, Beatriz não era burra, sabia muito bem o significado de expressão idiomática. (Porque a vida não tem mesmo sentido, podemos dizer que a vida no planeta Terra é uma expressão idiomática do universo!)
            Bem, naqueles primeiros fins de semana de ócio desesperador na Unidade, Beatriz tratou de iniciar a exploração de Londres. Afinal, este havia sido o principal motivo daquela aventura, viver numa espécie de capital do mundo. Ao entrar pela primeira vez na National Gallery, e fez questão que este fosse o primeiro local a ser visitado pois conhecia de longa data a riqueza do acervo do museu, sentiu-se recompensada. Durante vários meses, este foi seu programa nas tardes de sábado, com a vantagem de que o ingresso era gratuito.
            A galeria fica na Trafalgar Square, bem no centro da cidade, lugar sempre movimentado, cheio de gente do mundo inteiro, e era de gente que Beatriz sentia falta, cansada dos zumbis e da objetividade burra (mais uma vez o gênio de Nelson Rodrigues) dos nativos da Unidade. E Bia pôde entrar em contato com outro tipo de gente: Leonardo da Vinci, Botticelli, Caravaggio, Rembrandt, Jan van Eyck, Rubens, Vermeer, Thomas Gainsborough, Turner, Renoir, Monet, Van Gogh, Toulouse-Lautrec, Gauguin, Degas, Manet, Berthe Morisot, Picasso. Um deslumbramento.
            Beatriz nunca soube o porquê, porém ao deparar-se com O Casal Arnolfini, o mais famoso quadro do pintor flamengo Jan van Eyck, pintado em 1434, desatou num choro convulsivo. Durante intermináveis minutos ela procurou pelo quadro nas sucessivas salas da galeria, resolveu que não pediria informações sobre sua exata localização, desejava encontrá-lo sozinha, descobri-lo por si mesma, era a realização de um sonho antigo prestes a se concretizar, o que bem expressava sua determinação e autoconfiança, andou andou andou até que deu de cara com a pequena tela de 82 x 60 cm, mostrando o rico comerciante Giovanni Arnolfini e sua esposa Giovanna Cenami, que viveram na cidade de Bruges entre 1420 e 1472, de pé em sua alcova. Há um que de cerimônia e teatralidade na cena: o marido, com expressão severa no rosto abençoa sua mulher, que por sua vez lhe oferece a mão direita enquanto repousa a mão esquerda em seu próprio ventre. Estará grávida Giovanna Cenami? A visível protuberância em seu ventre sugere o prenúncio da maternidade. Possivelmente uma manifestação de um forte desejo, pois ela não chegou a conceber. As vestes luxuosas de sóbrias cores indicam a elevada posição sócio-econômica do casal. Em tudo revela-se a riqueza material, no vestuário, nos móveis, nas frutas no parapeito da janela. As laranjas são claro sinal de luxo e talvez indiquem a origem mediterrânea dos protagonistas. A cama, lugar onde se nasce e onde se morre, revela intimidade e paixão, este sentimento tão privado também representado pelos tecidos vermelhos, em contraste com o verde musgo da veste de Giovanna. Os tamancos de Giovanni no canto inferior esquerdo do quadro sinalizam que se trata de uma cerimônia religiosa. Os sapatos vermelhos de Giovanna estão perto da cama: acredita-se que estar descalça assegure a fertilidade. O pequeno espelho ao fundo, medindo 5,5 cm de diâmetro, certamente o mais intrigante detalhe de toda a obra, contendo ao redor as dez cenas da Paixão de Cristo, cada uma medindo 1, 5 cm, minúcias da minúcia, e afirmando a fé cristã do casal, reflete todo o ambiente, o mobiliário, os nubentes, a janela com a vista de Bruges. O candelabro contem uma única lâmpada a  simbolizar a chama do amor; é costume acender uma vela no primeiro dia de casamento.
            Um casal em carne-e-osso que visitava aquela sala do museu viu Beatriz debulhar-se em lágrimas diante da pequena tela e afastou-se em respeitoso silêncio. (O que uma obra de arte pode mobilizar em nós: insuspeitas incontidas emoções guardadas na mais recôndita dobra de nossa alma e que vêm à tona sem que tenhamos qualquer controle sobre elas.) Durante muitos anos Beatriz debruçou-se sobre a história desta pintura, fascinada pelo misto de realidade e fantasia que contem. O casal Arnolfini existiu de fato, residiu em Bruges entre 1420 e 1472, mas foi o retrato pintado por van Eyck que se encarregou de tornar sublime e eternizar aquela cena. A força da arte. Agora, Beatriz podia senti-la,
– uma experiência que vale por uma vida inteira,
pensou, e guarda até hoje com enorme emoção a reprodução emoldurada daquele quadro numa parede de seu próprio quarto.

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

A pinça de Satinsky


Capítulo X

(Romance em construção,
vivido em Londres nos anos 80)

(Caro leitor, tenha paciência com o rumo que esta história está ganhando, imploro por sua paciência. Beatriz ainda não sabe, mas vai viver uma experiência que poderíamos chamar de transcendental mágica surrealista imponderável, e parece interessante que o leitor saiba disso antes dela e que, portanto, esteja preparado para viver a experiência com ela. Voltemos pois ao primeiro dia em que Beatriz foi apresentada à salinha 2x2,
– este é o seu laboratório, Beatriz,
assim lhe foi comunicado, fato ocorrido logo depois que Westby decidiu de forma autoritária e definitiva qual o projeto de pesquisa a ser por ela desenvolvido.)
O minúsculo cômodo ficava bem no centro da Unidade e um verdadeiro labirinto precisava ser percorrido para se chegar até lá, que ninguém poderia percorrer sem ser notado e consequentemente barrado caso fosse um estranho. Andrew, o encarregado de lhe apresentar o recinto, inglês simpático que mancava de uma perna, explicou que ali eram realizados os experimentos com animais, e se isso se tornasse de conhecimento público a Unidade poderia ser explodida, sim, havia risco de atentado à bomba, que os defensores dos direitos dos animais eram violentíssimos na Inglaterra, há pouco menos de dois meses o carro de um professor que trabalhava com chimpanzés fora incendiado em frente ao Mausley, famoso hospital psiquiátrico localizado bem perto dali.
Embora não fosse trabalhar com animais, Beatriz sentiu-se ameaçada e um arrepio percorreu-lhe a espinha. Não havia janelas na salinha, visto está. A porta, de grossa madeira maciça, tinha no centro um pequeno vidro circular, coberto por pequeno cartaz onde se lia DO NOT ENTRY, e permanecia trancada com pesada fechadura de quatro voltas. As paredes eram revestidas de azulejo branco muito limpo; havia uma pia de aço, pequena bancada também de aço, um foco de luz, e um armário de madeira revestido de fórmica, fixado horizontalmente na parede, a um metro e meio do chão; este era todo o mobiliário daquele minilaboratório.
Ao abrir uma das portas do armário Beatriz encontrou pequena bandeja de aço, contendo parco material cirúrgico
: duas pequenas pinças hemostáticas,
: dois pequenos afastadores,
: um bisturi,
: uma tesoura reta pequena,
: e uma enorme pinça vascular, a pinça de Satinsky,
bem conhecida da cirurgiã acostumada às grandes operações para o controle das catastróficas hemorragias causadas pela ruptura das tais varizes de esôfago.
As pinças ditas vasculares têm uma característica essencial: ao apreenderem os tecidos, particularmente artérias e veias de grosso calibre, elas não causam dano, não traumatizam, elas ocluem os vasos, interrompendo o fluxo de sangue e consequentemente a hemorragia, preservando a integridade dos tecidos que são pinçados. O instrumento encontrado por Beatriz na bandeja, em forma de meia lua, chamava a atenção especialmente pelo tamanho, uma pinça de 25 ou 30 centímetros de comprimento, que nem mesmo cabia na bandeja,
– esta pinça está com as pernas pra fora,
ela brincou,
– o que faz um ferro desses em meio a instrumentos tão mais delicados?,
o pensamento passou como um raio pela cabeça de Beatriz, intrigou-a, e como ela não pudesse aventar qualquer hipótese para explicá-lo, preferiu pensar que se tratava de algo fortuito acidental alheio aleatório, uma casualidade enfim, porém alguma coisa ao mesmo tempo desnatural, estranha, além de qualquer possibilidade lógica.
Terminada a apresentação da sala de trabalho, Beatriz dirigiu-se à biblioteca, como de costume, para estudar.
(Mas o leitor agora pode continuar pensando sobre a ocorrência que acabo de descrever: o que a tal pinça de Satinsky fazia numa precária bandeja de instrumental cirúrgico que mal dava para operar um rato? E o que esta pinça poderia significar na vida e no futuro de Beatriz?)



A pinça de Satinsky