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quinta-feira, 12 de janeiro de 2023

                PARA O AMIGO SÉRGIO





    Pouco tempo depois de nos mudarmos para nossa casa, o amigo Sérgio veio nos visitar e de presente trouxe na bagagem dentro do avião frágil mudinha. Maior trabalheira! Quem fez uma cova espaçosa para que a pequena árvore pudesse estender sem esforço suas raizes na bruta terra do cerrado foi o Seu Onofre, nosso antigo jardineiro. A primeira foto abaixo ilustra a ocasião (a qualidade da fotografia que copiei com meu celular está péssima, mas o registro do momento está lá). Perguntado sobre o nome: árvore da felicidade respondeu nosso amigo! Felicidade era mesmo o que ela nos proporcionava por estar sempre florida. Em cada extremidade de galho um buquê de flores de cor fúcsia, verdadeiro paraíso para abelhas. Anos depois vim a esclarecer que o nome verdadeiro era jatrofa,  de nome científico Jatropha interregima mais conhecida como peregrina ou jatrofa picante. Espécie de planta com flor na família spurge, Euphorbiaceae. Produz cápsulas de sementes lisas, salpicadas e tóxicas e portanto se recomenda plantar longe do alcance de crianças. Nunca tivemos problemas desse tipo, a Gabi brincou muito debaixo de sua generosa sombra.

    Por muitos anos nos alegrou a vista e nos protegeu do sol à beira da piscina. Incontáveis manhãs de domingo desfrutamos de sua sombra; encontros, conversas e silêncios, música, a vida mesmo passando ali. Ano passado ela começou a secar, podamos, adubamos e não houve remédio. Morreu. Mas como o jardim é um ser com um forte propósito de permanência ela segue viva nas filhas, mudas nascidas de suas raizes. A essa (da outra fotografia, me desculpem agora pela mangueira ao fundo), o André nomeou Heloísa em homenagem à linda Helô filha do Sérgio. Heloísa, a de pernas longas. Andava meio fraquinha, a planta, não a Helô! Suas flores não vingavam, não sei se um pouco saudosa da mãe em cuja sombra nasceu ou de quem a batizou. Há alguns meses veio se juntar às suas raizes um punhadinho de cinzas do André. Está aqui agora toda faceira, florida, crescendo rápido em busca de luz. É a árvore da felicidade, ainda que agora a felicidade seja algo diferente.

Obrigada a você amigo Sérgio!

 




sábado, 31 de dezembro de 2022

IN MEMORIAM

 

Aqui no planalto central não usamos muito a palavra verão; as estações na nossa região não obedecem às divisões clássicas. Aqui temos a seca e as águas. E posso dizer que é muito bom assim. Durante a seca com a grama completamente torrada, o céu enevoado e poeirento, nossos olhos se enchem da beleza dos ipês amarelos. Nas águas, céu chumbo, nuvens baixas, verde pra todo lado. Nosso verão é feito de águas. Nesse ano as águas estão tão chuvosas como há muito tempo não se via. Desde o início de novembro chove, e chove muito forte quase que todos os dias. As noites desde então vão ficando cada vez mais fresquinhas, puxamos um cobertor, bebericamos um vinho tinto de noite. O povo do litoral não vai entender nunca isso. 

Essa última sexta-feira do fatídico ano de 2022 não foi diferente: ao invés de chope no boteco da esquina com espuma caindo em cima do pé se estivéssemos no Rio de Janeiro, hoje me decidi por sopa. Sopa no verão?! Descongelei um pacote de carne de panela do freezer, e tal qual a madeleine do Proust, fui invadida pela memória. Este pacote é metade da carne com a qual fiz a última sopa que o André ainda comeu. O fazer, o preparo do que vai nos alimentar, as lembranças de tantas outras sextas-feiras, de tantos outros jantares, de todos os dias que partilhamos juntos, muitos alegres, alguns tantos tristes, mas acima de tudo a memória de uma vida em comum é a nossa história e não há ficção que dê conta disso. 

Nesse ano de 2022 muitas foram as perdas de pessoas essenciais, que nos impactaram e que portanto não morreram de todo, porque seguem conosco com suas ideias, seu brilhantismo, sua genialidade. Senti muito a morte da Nélida Piñon, uma mulher que desbravou um meio literário fortemente masculino, ainda que muito livre no seu viver, foi fortemente devotada às suas raízes, ao seu passado, aos seus antepassados. Coisa meio rara nos dias correntes. Tinha uma devoção quase que religiosa a Homero, da qual compartilho pois não pode haver nada mais lindo que os versos que antes de serem escritos tantas vozes repetiram para que pudessem chegar a nós. Da Nélida no entanto, a frase mais marcante para mim é aquela que descreve a emoção ao ganhar um cachorro salsichinha, o Gravetinho: “Eu não estava preparada para esse amor”. Sei bem do que ela está falando. O amor nos desarma.

Tantos outros morreram nesse ano que vai acabando. O André tinha uma certa birra da Gal Costa “por que ela tem que gritar tanto?”. Mas como esquecer “Brasil”? Atualíssima para os dias tristes que ora vivemos nesse nosso país. 

Celebrou-se o centenário de nascimento do José Saramago. Já morto há algum tempo mas precisamos celebrá-lo sempre. Que privilégio poder ler o que escreveu esse homem. Sua escrita nos encanta, nos impacta e nos transforma. No seu livro muito pessoal  “As pequenas memórias” de 2006, ao relatar  eventos da infância e juventude, sob a amorosa influência dos avós maternos, lavradores, analfabetos, ele nos comove com esse trecho acerca da preciosidade da vida: “Tu estavas, avó, sentada na soleira da tua porta, aberta para a noite estrelada e imensa, para o silêncio dos campos e das árvores assombradas, e disseste, com a serenidade dos teus noventa anos e o fogo de uma adolescência nunca perdida: ‘O mundo é tão bonito e eu tenho tanta pena de morrer.’ Assim mesmo. Eu estava lá.”

Vamos aqui contando os mortos, somando saudades, sem lágrimas que cheguem para falar da falta que nos fazem. Se pudesse crer numa outra vida estaria agora imaginando o André na imensa fila para chegar junto ao rei. E ao se deparar com o Pelé, ele repetiria o gesto da infância quando o viu jogar em Guaratinguetá: um tapinha nas costas e a frase “Oh Pelé!”.

 


quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

    Em meio à arrumação que a morte nos impõe, se pretendemos evoluir no doloroso processo do luto organizamos gavetas, caixas, armários. Quanta coisa guardada, meu deus!  E qual o propósito? Na tentativa de desocupar um móvel meio pesadão,  espaçoso demais (o André certamente diria que eu estava tentando me descartar dele próprio!?), encontrei um de seus inúmeros diários. Este chama a atenção pela letra caprichada, as datas lá estão. Reconheço alguns momentos, de outros não me lembro  e nem poderia porque essa é uma memória dele. Não sinto que estou invadindo, xeretando: o diário ficou aqui por quase trinta anos dentro de um armário e se hoje eu perguntasse a ele "o que é isso?" tenho quase que certeza da resposta "não faço a menor ideia". O que quero dizer é que esse diário há de ter servido naqueles tempos para uma reflexão sobre aqueles dias. Reflexão??? Palavrinha ruim essa na falta de outra melhor. Serviu para  pensar, exercitar a autocrítica e conversar de forma muito verdadeira consigo mesmo. Transcrevo aqui um trecho. A grafia e a pontuação são dele. O pequeno poema também, me corrijam se estiver enganada, mas procurei e não achei autor. Mesmo que haja penso que está bem a propósito.

23/12/1994: "Véspera de Natal. O cheiro de pêssego no ar, Bach, violino e contínuo. E uma Paz difícil de aceitar. Vontade de escrever ao irmão distante: nada dizer, a não ser da saudade, das lembranças mais queridas, de uma vida que passou.

Como tem passado a Vida!

Quanto ainda há de passar?

Água que corre

às vezes límpida

de riacho quase puro

às vezes turva

de enchente lamosa

transbordante

sem margens o rio da Vida."


domingo, 15 de agosto de 2021

A cidade e o monstro

 


O que há de tão espetacular nessa fotografia? Ela me impressionou fortemente, desde a primeira mirada. Penso que seja pelo contraste.

No primeiro plano vemos uma rua surpreendentemente plana, movimentada, os anúncios de pequenas lojas, um bar com propaganda da Coca-cola na entrada, gente nas calçadas. O dia está ensolarado e cheio de vida! A arquitetura das construções é típica da região, uma cidade na Suíça, e muito bonita. 

            No segundo plano, o início da montanha, algumas casas em meio a pinheiros, o gramado verde que chega até uma muralha de pedra.

            Ao fundo, o monstro de uma montanha! A ameaça é que ela possa desabar sobre a pequena cidade, soterrando tudo.


            Existe a fotografia e existe o olhar de quem a vê. O que descrevo é o meu olhar, e como a primeira impressão foi instantânea, certamente há muito do meu inconsciente nesse olhar. 

            Este texto constitui um bom exemplo do que chamo escrita terapêutica. De início, sei apenas que a foto é espetacular, pela impressão que me causou. Continuo a descrição e só ao final é que percebo do que se trata.

sábado, 5 de junho de 2021

Frans Kafka: Diários

 

 

A recente publicação dos Diários de Franz Kafka pela Editora Todavia (2021), com tradução de Sergio Tellaroli, é uma preciosidade, mas não se engane o futuro leitor, a leitura é indigesta e precisa ser degustada aos poucos.

            Em 1909, com dia e mês indeterminados, Kafka escreveu:

 

“Depois de cinco meses da minha vida durante os quais não consegui escrever nada que me satisfizesse e dos quais poder nenhum vai me ressarcir, embora todos tivessem obrigação de fazê-lo, vem-me a ideia de tornar a falar comigo mesmo. Toda vez que me interroguei de fato, sempre respondi, sempre houve o que arrancar de mim, deste amontoado de palha que sou há cinco meses e cujo destino parece ser o de pegar fogo e arder no verão mais rapidamente do que o espectador é capaz de piscar.” (p. 10)

 

            Para quem escreve quase que diariamente – embora eu não escreva um diário –, destacam-se neste texto, como um grito desesperado, as palavras “nada que me satisfizesse”. É um vai-e-vem sem fim: ao mesmo tempo que nada satisfaz o autor, todos ‘teriam a obrigação de ressarci-lo’, pois ele conhece o próprio valor. (Freud diria que se trata de uma neurose.)

            A ideia de escrever um texto sempre à altura do próprio autor cai bem em Kafka, considerado um dos maiores escritores de todos os tempos. (Há quem diga: há uma Literatura antes e depois de Kafka.) Porém, a ‘obrigação’ de escrever sempre ‘à altura’ deve constituir-se num tormento. Os Diários, que não foram escritos para serem publicados, dão bem a ideia de que Franz Kafka era um homem atormentado, e que exigia demasiadamente de si.           

            Kafka, contemporâneo de Freud – ambos escreviam em alemão –, afirmou que desejava “manter-se o mais longe possível da Psicanálise”. Uma pena, digo isso sem qualquer arrogância ou pretensão, mas ele bem que poderia ter abrandado aquele superego. Então não seria Kafka, dirão alguns. Por que não, digo eu? O mesmo Kafka, com mais compaixão e tolerância para consigo mesmo. W. R. Bion chamou o fenômeno, relativamente comum entre personalidades, de “ódio à psicanálise”.

            A segunda ideia interessante expressa no pequeno texto é a de ‘falar consigo mesmo’, utilizando-se da escrita. E Kafka afirma que sempre respondeu, que sempre houve o que ‘arrancar de si’. A isso, com frequência neste blog, denomino Escrita Terapêutica. No entanto, o exercício desta escrita implica antes de tudo num rebaixamento da autocensura, no abrandamento do superego, em especial quando se publica o que se escreve, mesmo num simples blog como este, expondo-se o autor às críticas sempre benvindas. 

            Porém, como desincumbir-se desse exercício quando o autor se considera um “amontoado de palha cujo destino parece ser o de pegar fogo e arder no verão mais rapidamente do que o espectador é capaz de piscar”? Incontáveis as vezes em que Kafka referiu-se a si mesmo com tamanha severidade e baixa autoestima. (A leitura de Carta ao pai haverá de nos esclarecer um pouco a respeito dessa particularidade kafkiana.)

            A despeito disso tudo, Franz Kafka nos deixou obra monumental! Escrever é preciso.

sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

Função da Literatura


A empresária Adriana Ferreira
Foto: Ana Cândida Tofeti

 

A reportagem de Bruna Martinelli  (14 dez 2020) para Revide chama nossa atenção desde o título: Empresa de São Carlos motiva funcionários a ler e escrever em meio à pandemia.

            Adriana Ferreira, 48, formada em jornalismo, é uma grande leitora, mas “seguiu o ramo de negócios para manter a empresa familiar, uma concessionária de veículos de São Carlos”. Sempre com um livro na mão, Adriana despertou a curiosidade dos funcionários; o desejo de compartilhar o hábito da leitura contaminou seu ambiente de trabalho. Criou-se assim uma roda de conversa literária com a participação de mecânicos, estagiários e pessoas de diferentes profissões, com livros financiados pela empresa.

“Tem gente que nunca tinha lido um livro, só resumo para vestibular e faculdade. Eles estão lendo e tendo boas discussões sobre livros que eu leio e que os outros vão indicando. Desse grupo já surgiu um outro, pois os funcionários tinham interesse em incluir parentes, amigos, então acabei montando um outro grupo aberto para não ter muitas pessoas e dar espaço para todos falarem. Hoje temos dois grupos: um de pessoas da empresa e outro de pessoas de fora”, conta Adriana.

Adriana notou mudanças positivas tanto no ambiente de trabalho quanto no lado pessoal dos funcionários, que afirmam: “eu não sabia que ler é tão bom”. 

Em seguida foi inaugurada uma oficina de escrita criativa, promovida pela funcionária Andressa Leonardo, formada em linguística, e que reúne dez pessoas para aprimorar a escrita através de textos e poesias. 

São palavras da própria Adriana: “Meu sonho era sempre levar para mais alguém tudo que a literatura fez de bom para mim. A gente percebe pelos relatos que isso amplia a vida delas. É um novo espaço dentro da gente, um espaço de sonho e compreensão que você não volta mais para trás. Em vez de fazer uma rodada de cerveja para os funcionários em um fim de tarde, compra um livro e faz uma roda de leitura que você terá muito mais resultado. O investimento é muito baixo, é só comprar um livro e abrir um espaço para as pessoas se reunirem em roda. Não interessa que no começo serão 5, amanhã serão 7, e assim vai”.

 

Sem dúvida um belo exemplo, a ser seguido em todo lugar que haja um determinado grupo de pessoas, juntas por qualquer razão.

Relembro aqui a afirmação de Antonio Candido: 

 

“A literatura é, ou ao menos deveria ser, um direito básico do ser humano, pois a ficção/fabulação atua no caráter e na formação dos sujeitos”.

 

            É isso que Adriana Ferreira vem promovendo.

 

 

http://www.revide.com.br/blog/ana-candida-tofeti/empresa-de-sao-carlos-motiva-funcionarios-ler-e-es/

 

segunda-feira, 13 de abril de 2020

Escrita e isolamento social


Autores dão dicas de como usar dias de isolamento para começar a escrever: este título do artigo de Fernanda Boldrin, para O Estado de S. Paulo (13 abr 2020), resume o assunto. 
Escrever pode ajudar a vencer o isolamento. A frase do estudante de engenharia Victor de Oliveira Dias, que desejava começar a escrever em meio à quarentena, é interessantíssima: “Senti cansaço de ser passivo com as artes, de apenas absorver”. 
“Se escrever é algo que você quer fazer, mas, por alguma razão, sempre tem uma desculpa para adiar, esta é uma oportunidade”, diz a poeta e escritora Angélica Freitas. Embora confinada, ela mantém seu ritmo de escrita: “Como eu não posso sair à rua ver pessoas, tenho observado o movimento da minha janela. Tento imaginar para onde vai quem passa por aqui.” 
A escritora e crítica literária Noemi Jaffe afirma que, “para escrever, é preciso escrever”. “Não espere uma inspiração, porque ela só vem quando a gente senta para escrever. Não espere nada.” “Noemi vê na escrita um gesto de transformação, uma maneira de, com o mal-estar e a imprevisibilidade da situação, fazer palavras.” Este blogueiro dá a isso o nome de Escrita Terapêutica.
“Na caixinha de ferramentas de Noemi e de Angélica, estão também os desafios verbais. Pode-se tentar, por exemplo, escrever um texto sobre amor sem usar a palavra “amor”, ou um texto sem usar nenhuma vez a letra “e”. Explorar uma história já conhecida pela perspectiva de outra personagem ou, ainda, escrever um poema para os cinco objetos mais próximos de si.” Pessoalmente, não gosto desse exercício, em que o tutor sugere o tema e o discípulo obedece. Isso significa abandonar a criatividade de quem começa a escrever, penso que funciona como fator inibidor dessa criatividade. Mas reconheço que pode funcionar para muita gente.
O artigo de Fernanda Boldrin traz ainda dicas para escrever:
1 Concentração: procure um ambiente onde você possa ter um tempo sozinho. 
2 Rotina: comprometa-se a escrever no mesmo horário, ainda que por um curto intervalo de tempo.  
3 Caderno: tenha sempre um caderno por perto. Além de ajudar a não perder ideias pelo caminho, começar e terminar o caderno funcionam como incentivos à escrita. 
4 Observação: olhe com atenção as coisas acontecendo ao seu redor, dentro ou fora de casa.  
        Minha dica é começar pelo microconto, que pode conter, por exemplo, até 140 toques, como manda o Twitter; trata-se de ótimo exercício para estimular a criatividade, aprender a ter intimidade com as palavras, desenvolver o poder de síntese, abusar do bom humor.
Há cursos online para aperfeiçoar a escrita, o que pode ser interessante para quem acredita no modelo.
O artigo só não fala de algo fundamental para quem deseja escrever: ler! Ler ler ler, ler muito, até que um dia, cansado de “apenas absorver”, o sujeito sente o desejo de produzir algo original, seu, registrar o que lhe passa pela cabeça, emitir opinião sobre qualquer coisa, uma ideia, nova ou velha, não importa, e quando bate esta vontade, então o “caderno por perto” há de ajudar.
Este blogueiro está sempre voltando ao tema. Gostaria muito que minhas filhas escrevessem. Água mole em pedra dura...



terça-feira, 28 de janeiro de 2020

Emoghyphs



Uma das peças da exposição. Foto: Isabel Kershner


“Exposição no Museu de Israel, em Jerusalém, Emoglyphs: Picture-Writing From Hieroglyphs to Emoji (Emóglifos: a escrita pictórica, do hieróglifo ao emoji, em tradução livre), mostra a aparentemente óbvia, e ao mesmo tempo complexa, relação entre o sistema icônico de comunicação da Antiguidade e a língua franca da era cibernética.” É o que revela a reportagem de Isabel Kershner, do New York Times / Jerusalém, para O Estado de S.Paulo (27 jan 2020). (Tradução de Roberto Muniz.)

“Sempre foi difícil explicar como se leem hieróglifos”, disse Shirly Ben Dor Evian, egiptóloga e curadora da mostra. “Mas hoje ficou mais fácil porque as pessoas estão escrevendo com desenhos. Por isso comecei a prestar atenção em emojis.” 
Evian notou que alguns emojis parecem hieróglifos. “Um cartaz na entrada da exposição contrapõe uma coluna de hieróglifos a uma de emojis. As similaridades são indiscutíveis e não há necessidade de tradução.” “A representação egípcia de um cão genérico tem uma semelhança muito próxima com um cão de emoji mostrado de perfil. Um pato, imagem frequentemente usada nos hieróglifos para simbolizar uma criatura alada, reaparece milhares de anos depois como um pato de emoji. E um homem dançando num emoji faz uma pose semelhante à de um dançarino de hieróglifo de 3 mil anos.”
“Hoje é mais fácil clicar num emoji que escrever uma palavra inteira”, afirmou Ben Dor Evian, que tem um aplicativo de hieróglifo no celular. Emojis são uma taquigrafia emocional. Pense no poder de um coração mandando um beijo, ou de uma cara cínica significando sarcasmo, quando ilustram um sentimento que uma inexpressiva mensagem de texto não consegue expressar.”
Em 2015, os Dicionários Oxford elegeram o emoji de um rosto com lágrimas de alegria como sua palavra do ano, dizendo que ele expressava “o comportamento, os sentimentos e as preocupações” do período.   
Há quem discorde: “Chaim Noy, professor de comunicações da Universidade Bar Ilan, em Tel-Aviv, considera simplista e populista falar em emoji como nova linguagem. Ele vê os símbolos apenas como uma espécie de linguagem corporal que suplementa o texto.”

Este blogueiro, que nada entende do assunto, como sempre, mas é mestre na arte de palpitar, fica com o ponto de vista do Prof. Chaim! Quando acessamos o Facebook, fica evidente que a generalizada utilização dos emojis empobrece a comunicação. Perco um bom tempo da manhã para escrever um texto de interesse geral, sobre ciência, por exemplo, publico no blog, e quem o acessa via Facebook coloca apenas uma mãozinha amarela com o polegar virado para cima. (Talvez por educação o polegar não está para baixo...)
O valor da escrita tem sido enaltecido ad nauseam neste blog. Enfatizo, sempre que posso, o que denomino Escrita terapêutica, que tem o poder de organizar nossos pensamentos, abrir a mente para novas perspectivas, pensar alternativas, utilizar realidade e ficção para expandir o “aparelho de pensar” (Bion) , acalmar o espírito. Não posso imaginar os emojis cumprindo tal tarefa. (O que pensaria Machado de Assis sobre isso tudo?)
Há uma agravante: quanto mais se usa o emoji, menos se escreve, até que um dia todos serão analfabetos.
Mesmo assim, gostaria muito de visitar a exposição em Jerusalém, e continuar pensando no assunto.


domingo, 5 de maio de 2019

Todo mundo poderia ser escritor


A ótima escritora Maria Valéria Rezende escreve hoje no caderno Ilustríssimada Folha (5 mai 2019), sobre sua trajetória de leitora e escritora. (O título do artigo é bastante provocativo: “Jack London me transformou em cão por três dias, diz escritora.”)
            Logo no primeiro parágrafo ela traz uma ideia fundamental, que reproduzo aqui:

“Tenho certeza de que todo mundo poderia ser escritor. Toda criança desenha, toda criança inventa história — nem que seja para enrolar a mãe — toda criança faz teatro com seus bonecos. Todos, então, criam literatura e são artistas. Só que depois o sistema educacional, as convenções sociais, de certa forma, fazem estancar esse processo nas pessoas.”

            Esta é uma triste verdade, a de que nosso sistema educacional aniquila a criatividade inata em crianças, especialmente o ato de contar histórias. E se deixam de contar histórias, elas não desenvolvem a habilidade de escrever.
            (Uma de minhas filhas, aos 6 anos de idade, dizia coisas incríveis, inventava palavras, mistura de inglês e português; logo que foi alfabetizada, escrevia historinhas magníficas, revelando imaginação incomum – eu dizia que ela seria escritora; adulta, nunca mais escreveu uma linha, embora formada em jornalismo.)
            Nem todo aquele que escreve torna-se um escritor profissional, capaz de praticar alta literatura. Porém, se ele escreve para si próprio, se isso lhe ajuda a ordenar as ideias, se lhe causa prazer e aplaca o espírito, e eventualmente reparte aquilo que pensa com algumas poucas pessoas, então o exercício de escrever torna-se construtivo, não se escreve em vão. É o que chamo de escrita terapêutica.
            Ler e escrever são atividades xifópagas. Assim como o hábito da leitura facilita que enfrentemos textos progressivamente mais complexos, o treinamento contínuo da escrita permite que o texto produzido seja cada vez mais claro e agradável, para quem lê e para quem escreve. Se aquele que escreve recebe crítica construtiva (há quem diga que toda crítica é construtiva), tanto melhor para seu aprimoramento literário. Se não, o remédio é perseverar, até onde é possível chegar.
            Aprender é sempre bom; educar-se é trabalho para a vida inteira.




domingo, 28 de abril de 2019

Amós Oz com Shira Hadad




Quem gosta de escrever há de compreender perfeitamente a pergunta de Shira Hadad a Amós Oz: “O que impulsiona a sua mão quando escreve?” A resposta do escritor é de extrema delicadeza, e atesta a qualidade de sua literatura (*):

“No pátio do ginásio Rechavia, em Jerusalém, havia um eucalipto no qual alguém tinha gravado um coração trespassado por uma flecha. No coração trespassado, nos dois lados da flecha, estava escrito: Gadi – Ruti. Lembro que já então, eu tinha talvez uns treze anos, pensei: com certeza quem fez isso foi esse Gadi, não Ruti. Por que fez isso? Ele não sabia que amava Ruti? Ela não sabia que ele a amava? E parece que já então eu disse comigo mesmo: talvez algo dentro dele soubesse que isso ia passar, que tudo passa, que esse amor ia acabar. Ele quis deixar alguma coisa. Quis que restasse uma lembrança desse amor quando ele passasse. E isso é muito parecido com o ímpeto de contar histórias, escrever histórias; salvar alguma coisa das garras do tempo e do esquecimento.”

            Mesmo muito longe de dispor da arte de Amós Oz (que é capaz de contar uma história a partir de um coração gravado numa árvore),  penso que também quero deixar alguma coisa, em especial para as pessoas mais próximas, familiares, e uns poucos amigos. Apenas isso, deixar alguma coisa.
            Shira pergunta ainda “de onde vem a história”? E Amós Oz responde com fragmento de belíssimo poema de Ana Akhmátova, que ele traduziu do inglês, versão de Stephen Berg, para o hebraico, e agora traduzido para nós por Paulo Geiger, e com tantas traduções o poema continua lindo!

“E às vezes fico sentada. Aqui. Ventos do mar gelado
sopram por minhas janelas abertas. Não me levanto, não
as fecho. Deixo o ar me tocar. Congelo.
Crepúsculo vespertino ou aurora, as mesmas nuvens brilhantes.
Um pombo bica um grão de trigo em minha mão estendida,
e esta amplidão, sem fronteiras, da brancura das páginas na coluna
                                                                           [em que escrevo –
Um solitário e nebuloso impulso ergue minha mão direita, 
                                                                                  [me conduz,
muito mais antigo do que eu, ele vem e desce,
azul como um olho, sem deus, e começo a escrever.”

            Qualquer coisa, muito mais antiga do que eu, que vem e desce, e me pacifica por dentro.


(*) Em Do que é feita a maçã, de Amóz Os com Shira Hadad, Companhia das Letras, 2019, tradução do hebraico de Paulo Geiger. Bela capa, com ilustração de Kiko Farkas.
            

quinta-feira, 23 de agosto de 2018

Homenagem a Otavio Frias Filho



Em 31 de dezembro de 2017, Otavio Frias Filho publicou interessante artigo na Folha, sob o título Mártires do estilo. Este blog volta ao assunto, também como homenagem ao grande jornalista e intelectual. 
Diz Otavio: “Vivemos numa época em que se escreve mais do que nunca. Quem, incluindo o autor destas linhas, não gostaria de melhorar sua capacidade de expressão escrita? No entanto, se as regras gramaticais estabelecem de modo inequívoco como escrever direito, não existem regras que assegurem como escrever bem.”  
            Em seguida ele cita três manuais para bem escrever: Tirando de Letra: Orientações Simples e Práticas Para Escrever Bem (Companhia das Letras), do casal Chico e Wilma Moura;  Como Escrever Bem - o Clássico Manual Americano da Escrita Jornalística e de Não Ficção (Três Estrelas), de William Zinsser; e o terceiro livro é Guia de Escrita - Como Conceber um Texto com Clareza, Precisão e Elegância (Contexto), de Steven Pinker.
Enfatiza Otavio: “Todos os esforços em favor da simplicidade despojada são bem-vindos num país como o nosso, onde ainda se cultiva uma escrita ornamental, feita mais para iludir do que expor e esclarecer. Não se trata apenas da prolixidade afetada própria do Judiciário ou da verborragia evasiva no ambiente parlamentar. 
Bulas, manuais de uso, documentos oficiais, instruções ao consumidor etc. são redigidos de maneira nebulosa, eufemística, quando não abstrusa, no hábito deliberado de evitar compromissos e eludir responsabilidades. Comunidades inteiras (urbanistas, pedagogos e psicólogos, por exemplo) tendem a escrever num dialeto infestado de ideias vagas e substantivos abstratos que traduzem pouco sentido objetivo.”  
Simplicidade despojada, eis o que recomenda o grande jornalista, falecido recentemente. (Frias Filho esqueceu-se de acrescentar os psicanalistas, em particular os chamados lacanianos, no rol dos prolixos.)
A partir deste conselho, o da simplicidade, digo que qualquer pessoa medianamente educada pode escrever; isso, no entanto, não acontece. Escrever tornou-se um tabu, as pessoas têm pavor de escrever, uma carta que seja. Dizem, Não sei escrever. Perdem a oportunidade de praticar algo muito simples, que chamo de terapêutico. 
Aqui vai minha dica para os que não têm o hábito de escrever constantemente: escreva hoje uma carta a um amigo, parente, pessoa a quem você estima. Vamos torcer para que ele responda...
                        



quinta-feira, 7 de dezembro de 2017

Voltando à escrita

Tema de preferência deste blog, a escrita (em particular a escrita terapêutica), é motivo de crônica de Sérgio Rodrigues hoje, para a Folha. Ele cita alguns guias práticos que podem ajudar, com a ressalva de que “nada podem fazer contra a alfabetização precária.”  
E destaca o papel da leitura:

“E saber ler tampouco basta. Quem não deixar o terreno da potência para ler de fato, e muito, também não conseguirá passar de um nível básico de escrita.
... Meses atrás, quando falei aqui do livro de Zinsser, um leitor deixou o seguinte comentário: "É de uma pretensão sem tamanho, a vaidade elevada ao maior grau, o sujeito se meter a querer ensinar os outros a escrever".

Muita gente pensa que a escrita não pode ser ensinada, que saber escrever é uma questão de talento, quem tem tem, quem não tem jamais terá. De fato, talento literário é coisa rara mesmo. Também não se trata de correção gramatical e ortográfica, “aspecto que será cada vez mais delegado à inteligência artificial”, segundo Rodrigues.
Sérgio Rodrigues vai ao ponto central dessa discussão:

“Estamos falando de pensamento. Escrever com clareza e precisão, sem matar o leitor de confusão ou tédio, é uma riqueza que deve ser distribuída de forma igualitária por qualquer sociedade que se pretenda civilizada e justa.”  (O negrito é meu.)

            Eis a questão: aprender a pensar! Se o sujeito sabe pensar, é bem provável que ele escreva razoavelmente bem, ao menos com clareza. O que tenho dito e repetido é que a escrita ajuda no aprendizado do pensar, ao ordenar ideias, dando sentido à narrativa, quer se trate de um ensaio ou de ficção. Nesse caso, os exercícios de pensar e de escrever se confundem, se superpõem, se complementam. É, como tudo na vida, uma questão de educação.
            Escrita, qualquer que seja, exige edição. O texto precisa ser lido e relido várias vezes, escoimado do supérfluo, das deselegâncias, das obscuridades, e isso dá trabalho. Se aquele que escreve não deseja editar seu próprio texto, melhor nem escrever. Pedir a outrem que o faça também não me parece adequado. (Uma revisão final, acompanhada de algum juízo de valor, esta sim, pode e deve ser praticada.)
            Afinal, reler o próprio texto significa aprofundar o pensamento sobre ele mesmo. Sempre vale a pena.
            Vamos escrever!






sábado, 21 de outubro de 2017


Luiz Munhoz / Folhapress


Volto ao amor pelos dicionários.
            Depois da postagem Amor ao dicionário, (http://loucoporcachorros.blogspot.com.br/2017/10/amor-ao-dicionario.html)
encontro na Folha de S. Paulo (21/10/2017) declaração de Elizabeth Roudinesco, 73, que não posso deixar de registrar.
            A reportagem é de Betty Milan, que entrevista a psicanalista, historiadora e escritora francesa a propósito do lançamento do Dicionário Amoroso de Psicanálise (sem previsão de lançamento no Brasil).
            O "dicionário amoroso" trata de diferentes temas, “para mostrar como a psicanálise se nutriu de literatura, cinema, teatro, viagem e mitologia para se tornar uma cultura universal”. Roudinesco se debruçou sobre livros e textos como A Consciência de Zeno (um dos melhores livros que já li), O Segundo Sexo; sobre figuras como Sherlock Holmes e Marilyn Monroe; sobre cidades e a relação com a psicanálise, como Nova York, Buenos Aires, Rio.
            A entrevistadora pergunta:

Folha - É seu segundo dicionário. A sra. parece gostar deles.

Elisabeth Roudinesco - Gosto muito da forma do dicionário, das listas. Minha primeira leitura foi o dicionário porque meu pai era um devorador de dicionários. Há diferentes tipos de dicionário, os da língua, as enciclopédias. Também gosto muito da internet.

            Aqueles que apontaram minha neurose pela tara por dicionários na citada postagem, agora devem incluir Roudinesco no mesmo saco.
            Interessante que a grande intelectual francesa cita ainda sua predileção pelas listas. A literatura está repleta delas, as listas, incluindo autores como Umberto Eco. O tema já esteve presente neste blog. (http://loucoporcachorros.blogspot.com.br/search/label/Listas)
            Parece que para essas pessoas há uma necessidade de ordenamento; ordem, não no sentido moral (a Ordem e Progresso da bandeira), mas no sentido de sequência, da continuidade, não sei se posso afirmar no sentido matemático: 1, 2, 3... Não tenho opinião formada sobre o assunto.
            Talvez listar coisas ou palavras transmita alguma tranquilidade, alguma paz. Como as listas geralmente são formuladas por escrito, eu as incluo no rol da Escrita Terapêutica.
            Listar acalma!

Peixes de água doce:

Tucunaré
Dourado
Surubim
Abotoado
Acará
Barbado
Bicudo
Dourada
Lambari
Mandi
Matrinxã
Pacu
Pintado
...

            Enfim, cada doido com sua mania: Eco, Roudinesco, Sérgio Rodrigues, eu e tantos outros, adeptos da Escrita Terapêutica, mesmo que não tenham consciência de que, o que fazem ao escrever, é terapia.