Fagundes
considerava-se o melhor detetive do mundo. O fato do diploma de detetive
exibido orgulhosamente na parede de seu pequeno escritório ter sido obtido
através de um curso por correspondência de qualidade duvidosa, isso em nada
diminuía sua autoconfiança. Gostava de repetir Mais inteligente do que eu nem
Sherlock Holmes, é o que alardeava apenas para os íntimos, que não gostava de
exibir-se para o grande público, Faz parte de minha estratégia profissional.
Fagundes vivia à espera de um Grande Caso, que o
revelaria para o mundo, fazendo jus a sua astúcia incomparável, aguda e
perspicaz inteligência, sagacidade de mestre. Quando soube pelos jornais que a
FIFA iniciaria buscas para descobrir o possível paradeiro da Taça Jules Rimet,
conquistada definitivamente pelo Brasil na Copa de 1970 no México, Fagundes
perdeu o sono. Era a oportunidade que esperava, e que o deixou num estado de
excitação quase delirante.
O troféu havia sido roubado do prédio da CBF, no número 70 da Rua da Alfândega, centro do
Rio de Janeiro, na noite do dia 19 de dezembro de 1983.
A bem da verdade, a Taça já havia sido roubada em 1966
e recuperada pela Scotland Yard, mais precisamente pelo cãozinho Pickles.
A Jules
Rimet era motivo de orgulho nacional, símbolo da supremacia no futebol – o
tricampeonato mundial –, e para a ditadura vigente à época, da grandeza e
prosperidade nacionais. O roubo teve grande impacto na população, a imprensa
ocupou-se dele com minúcias, a Polícia Federal foi prontamente mobilizada,
ainda mais que o objeto do furto continha 3,8 quilos de ouro, uma verdadeira
fortuna. A Taça jamais foi encontrada.
Fagundes
nunca acreditou na versão divulgada pela polícia, de que ela havia sido
derretida, o ouro vendido a preço de mercado. Não acreditou porque nunca
desejou acreditar. Mas havia também um fato muito mal explicado, ou para ser
mais preciso, nunca explicado porque esdrúxulo, estapafúrdio, sem sentido, o
fato de que a certa altura dos idos de 1983, a
Jules Rimet original encontrava-se na vitrine da sala de troféus da CBF, enquanto
que num cofre lacrado repousava a réplica.
Na fértil
imaginação investigativa de Fagundes, Roubaram a réplica para despistar o roubo da taça original!, dizia ele, fato
bastante para que tivesse a certeza de que a Taça ainda seria encontrada, intacta,
reluzente, a restaurar o orgulho da nação, humilhada que fora com o roubo de
troféu conseguido com tanto empenho e arte pela Seleção Brasileira.
Agora, para
grande surpresa de Fagundes, Guy Oliver, curador do
novo museu da FIFA, também acredita que o troféu mais cobiçado do esporte
mundial talvez não tenha sido derretido. Oliver deseja exibir a Jules Rimet –
que ele chama de Santo Graal do futebol – em Zurique, em 2019. Para tanto, uma
equipe de especialistas nomeados pela FIFA dará início às buscas. Porém,
Fagundes há de trabalhar no anonimato, à sombra, longe dos holofotes da mídia,
seguindo seu instinto, por caminhos nunca explorados, É a minha chance de
entrar para a História, meu nome inscrito no museu da FIFA.
Começou
por procurar um velho amigo jornalista da extinta Última Hora, Álvaro de
Carvalho, que lhe falara sobre um tal Eustáquio, que trabalhava como faxineiro no número 70 da Rua da
Alfândega, centro do Rio de Janeiro, à época do roubo. Homem
fechado, caladão, carrancudo, Eustáquio nunca fora sequer mencionado pela
Polícia Federal durante as investigações. Álvaro ficou sabendo que ele se mudara
para Piracicaba, interior de São Paulo, logo após o escândalo, e lá comprara um
sítio, propriedade pequena porém bem cuidada, com casa confortável, horta,
pomar, galinheiro, duas ou três vaquinhas leiteiras, tudo muito bem ajeitado,
com asfalto até a porta da propriedade. Coisa fina, informou Álvaro.
Fagundes
abalou-se para Piracicaba no mesmo dia da conversa com o jornalista, certo de
que se tratava de pista promissora. Hospedou-se num hotel barato no centro da
cidade e em poucas horas localizou o sítio de Eustáquio. Difícil foi fazer o
homem desembuchar palavra, todo cheio de evasivas, que não se lembrava de nada,
nervoso, o suor escorrendo pela testa, que nunca vira a Taça, muito menos sabia
quem a havia roubado, só sabia que tinha sido derretida. Fagundes não engoliu
nada daquilo, ao contrário, pensou, Aí tem coisa! A casa de Eustáquio era de
uma simplicidade franciscana, o que Fagundes interpretou como sinal de
dissimulação. Não havia banheiro na casa, e sim uma latrina nos fundos do
quintal, próximo à horta, Muito estranho, muito estranho, aí tem coisa, repetiu
nosso Sherlock.
De volta à
cidade, Fagundes comprou um par de botas de borracha de cano longo, macacão de
plástico impermeável, luvas, boné para o disfarce e poderosa lanterna. À noite
voltou ao sítio. Assustou-se com o latido dos cachorros mas não desistiu;
aproximou-se cuidadosamente da casinha – era assim que, desde criança, chamava
aquele tipo de latrina – abriu a porta de madeira velha e carcomida, examinou o
cubículo com cuidado; nada encontrou. A ideia que lhe ocorreu em seguida foi de
arrepiar, Ele escondeu no meio da merda! Depois de alguns minutos de hesitação,
Fagundes tapou o nariz e entrou no monte de bosta, contendo a todo custo o
inevitável vômito. Remexeu remexeu remexeu até que, às tantas animou-se, ao
tocar um objeto estranho: não passava de um lampião velho, que Eustáquio
provavelmente deixara cair na fossa, numa noite escura. Merda!, exclamou o
detetive, admitindo que a palavra aplicava-se perfeitamente às circunstâncias.
Desvencilhou-se
do macacão, luvas, botas, boné, tomou um longo banho quente no chuveiro do
hotel, voltou de mãos abanando para o Rio de Janeiro, Eustáquio que vá à puta
que o pariu!
Fagundes
não desistiu, voltou a procurar o jornalista – sem fazer qualquer menção, é
claro, ao episódio da latrina – em busca de nova pista. Álvaro conhecia também
um tal de Pedrão, cearense que fazia a manutenção elétrica do prédio, sujeito
ladino, escorregadio, de conversinha mole, nunca investigado pela polícia, que
depois do roubo mudou-se para Campos, no Estado do Rio. Fagundes tornou a
animar-se, Aí tem coisa!
À
noite tomou o ônibus para Campos. Dessa vez não foi fácil localizar Pedrão.
Depois de quinze dias descobriu que Pedrão mudara de profissão, agora era
garçom; daí foi um pulo para que Fagundes o descobrisse trabalhando num
restaurante popular, que servia comida a quilo, Aproveito e almoço logo nessa
espelunca. A conversa entre os dois também não foi fácil; Pedrão tinha malícia,
nada sabia sobre o roubo mas tentou tirar alguma vantagem da situação quando se
deu conta da ideia fixa do detetive. Alegou que tinha uma pista quentíssima,
mas que custaria algum dinheiro para ser revelada. Fagundes fê-lo baixar o
preço, aceitou, e ouviu do eletricista-garçom que a Taça continuava no Rio, de
posse de um colecionador fanático por futebol, um tal de Abrantes, residente no
Leblon. Desconfiado, mesmo assim Fagundes pagou, ameaçando Pedrão de morte caso
se tratasse de pista falsa. (Dias depois Pedrão voltou para o Ceará.) O nosso
detetive ainda passou mais três dias em Campos, curando-se de uma caganeira dos
diabos, provavelmente contraída no restaurante do Pedrão.
Dessa
vez Fagundes não procurou Álvaro, iniciou sozinho a caçada ao colecionador,
certo de que esta era a pista mais confiável que obtivera até o momento. Aí tem
coisa!, repetia para si mesmo, entusiasmado como sempre.
Após
três meses de idas e vindas ao Leblon, sem nunca ter aproveitado um dia sequer
de sol e praia, ouviu falar de um certo Abrantes, residente no bairro, mas a
notícia era vaga, incerta, o que não esmoreceu Fagundes.
Num
lance de pura sorte, encontrou mais um Abrantes, agora eram dois a residir no
Leblon, o que, na lógica de Fagundes, duplicava sua chance de encontrar a Jules
Rimet. O primeiro Abrantes que localizou era um pobre porteiro de um prédio
antigo, e que morava num minúsculo quartinho nos fundos do pavimento térreo. O
detetive acabou por deixar algum trocado para o homem, condoído com a penúria
em que vivia. A Taça não podia estar ali.
O
segundo Abrantes era um homem de posses. Seu nome completo, José Eduardo
Abrantes de Albuquerque. Aí tem coisa!, animou-se Fagundes, O homem tem
pedigree, vê-se pelo nome. Mas não foi fácil chegar ao figurão, prédio cheio de
seguranças, agenda ocupadíssima, inacessível este Abrantes, o que,
naturalmente, reforçou a suspeita de Fagundes.
O
detetive resolveu apostar na informação de Pedrão de que Abrantes, ou doutor
José Eduardo, Melhor chamá-lo assim, era aficionado por futebol, e passando-se
por jornalista, interessado numa entrevista para uma revista importante, conseguiu
penetrar na fortaleza de José Eduardo, profissão banqueiro!
José Eduardo
era um homem vaidoso. Quando soube o nome da revista, prontificou-se não só a
receber Fagundes como a mostrar-lhe sua vasta coleção de itens ligados ao
futebol, camisas de jogadores famosos, incluindo várias do Pelé, chuteiras,
bolas de copas do mundo, ingressos de todas as copas, fotos e vídeos dos jogos
mais importantes, troféus de campeonatos disputados em todo o mundo, e quanto
mais se exibia, mais o detetive lhe insuflava o ego, Só falta uma coisa para
que o senhor seja o maior colecionador do mundo, O que é?, A Taça Jules Rimet.
Foi aí que
Fagundes fisgou o homem, Não possuo a original, é claro, mas mandei fazer uma
réplica idêntica, mostro-a para muito pouca gente, vou mostrá-la a você, mas
nada de fotografia, está bem?, Combinado. José Eduardo vestiu um par de luvas
de algodão, abriu um pequeno cofre de parede e retirou de lá a Taça, para
estupefação de Fagundes, que percebeu logo tratar-se da original e verdadeira
Jules Rimet, Posso pegá-la?, Vista primeiro estas luvas, e com a Taça na mão
Fagundes não teve mais dúvida, havia encontrado o Santo Graal!
Esteve com
ela nas mãos por alguns minutos, devolveu-a emocionado, disse que estava
satisfeito com a entrevista, Vai ser uma ótima reportagem, muito obrigado, Eu é
que agradeço, despediram-se. Não passou despercebida para o dono da casa a
perturbação que se apoderou de Fagundes, ao ter a Taça na mão, por mais que
desejasse disfarçá-la.
Fagundes
precisava pensar. Foi para casa, um apartamento pequeno na Av. Nossa Senhora de
Copacabana, fechou as cortinas para abafar o barulho da rua, apagou as luzes,
sentou-se no velho sofá da sala, tão emocionado que não conseguia concatenar as
ideias. Como não era um repórter, teve dificuldade para ordenar os fatos,
passou a noite imaginando as manchetes dos principais jornais do Rio, não só do
Rio, do Brasil, do mundo: Detetive
carioca descobre paradeiro da Jules Rimet, Taça do tri não foi derretida, Brasil
tem a Taça de volta, Detetive Fagundes desvenda o mistério da Jules Rimet.
Foi desta
última que ele mais gostou, e imaginava o teor das reportagens, relatando a
história das buscas (apenas ninguém ficaria sabendo da visita à latrina em
Piracicaba), e ajudado pela ingestão de meia garrafa de uísque, Fagundes
adormeceu profundamente, imerso em devaneios de fama e glória.
Infelizmente não pôde ler a manchete dos jornais do dia
seguinte:
Detetive encontrado morto
em seu apartamento em Copacabana!
Assassinato? Suicídio? Fagundes foi encontrado estendido
no sofá da sala com um tiro na cabeça; a polícia pouco se interessou pelo caso,
ocupada com crimes de maior repercussão social na cidade do Rio de Janeiro.