domingo, 13 de março de 2016

Zaitsev

Meus quadros favoritos


Alexi Zaitsev (1959), pintor russo.

Em busca do Santo Graal


Fagundes considerava-se o melhor detetive do mundo. O fato do diploma de detetive exibido orgulhosamente na parede de seu pequeno escritório ter sido obtido através de um curso por correspondência de qualidade duvidosa, isso em nada diminuía sua autoconfiança. Gostava de repetir Mais inteligente do que eu nem Sherlock Holmes, é o que alardeava apenas para os íntimos, que não gostava de exibir-se para o grande público, Faz parte de minha estratégia profissional.
            Fagundes vivia à espera de um Grande Caso, que o revelaria para o mundo, fazendo jus a sua astúcia incomparável, aguda e perspicaz inteligência, sagacidade de mestre. Quando soube pelos jornais que a FIFA iniciaria buscas para descobrir o possível paradeiro da Taça Jules Rimet, conquistada definitivamente pelo Brasil na Copa de 1970 no México, Fagundes perdeu o sono. Era a oportunidade que esperava, e que o deixou num estado de excitação quase delirante.
            O troféu havia sido roubado do prédio da CBF, no número 70 da Rua da Alfândega, centro do Rio de Janeiro, na noite do dia 19 de dezembro de 1983. A bem da verdade, a Taça já havia sido roubada em 1966 e recuperada pela Scotland Yard, mais precisamente pelo cãozinho Pickles.
A Jules Rimet era motivo de orgulho nacional, símbolo da supremacia no futebol – o tricampeonato mundial –, e para a ditadura vigente à época, da grandeza e prosperidade nacionais. O roubo teve grande impacto na população, a imprensa ocupou-se dele com minúcias, a Polícia Federal foi prontamente mobilizada, ainda mais que o objeto do furto continha 3,8 quilos de ouro, uma verdadeira fortuna. A Taça jamais foi encontrada.
Fagundes nunca acreditou na versão divulgada pela polícia, de que ela havia sido derretida, o ouro vendido a preço de mercado. Não acreditou porque nunca desejou acreditar. Mas havia também um fato muito mal explicado, ou para ser mais preciso, nunca explicado porque esdrúxulo, estapafúrdio, sem sentido, o fato de que a certa altura dos idos de 1983, a Jules Rimet original encontrava-se na vitrine da sala de troféus da CBF, enquanto que num cofre lacrado repousava a réplica.
Na fértil imaginação investigativa de Fagundes, Roubaram a réplica para despistar o roubo da taça original!, dizia ele, fato bastante para que tivesse a certeza de que a Taça ainda seria encontrada, intacta, reluzente, a restaurar o orgulho da nação, humilhada que fora com o roubo de troféu conseguido com tanto empenho e arte pela Seleção Brasileira.
Agora, para grande surpresa de Fagundes, Guy Oliver, curador do novo museu da FIFA, também acredita que o troféu mais cobiçado do esporte mundial talvez não tenha sido derretido. Oliver deseja exibir a Jules Rimet – que ele chama de Santo Graal do futebol – em Zurique, em 2019. Para tanto, uma equipe de especialistas nomeados pela FIFA dará início às buscas. Porém, Fagundes há de trabalhar no anonimato, à sombra, longe dos holofotes da mídia, seguindo seu instinto, por caminhos nunca explorados, É a minha chance de entrar para a História, meu nome inscrito no museu da FIFA.
Começou por procurar um velho amigo jornalista da extinta Última Hora, Álvaro de Carvalho, que lhe falara sobre um tal Eustáquio, que trabalhava como faxineiro no número 70 da Rua da Alfândega, centro do Rio de Janeiro, à época do roubo. Homem fechado, caladão, carrancudo, Eustáquio nunca fora sequer mencionado pela Polícia Federal durante as investigações. Álvaro ficou sabendo que ele se mudara para Piracicaba, interior de São Paulo, logo após o escândalo, e lá comprara um sítio, propriedade pequena porém bem cuidada, com casa confortável, horta, pomar, galinheiro, duas ou três vaquinhas leiteiras, tudo muito bem ajeitado, com asfalto até a porta da propriedade. Coisa fina, informou Álvaro.
Fagundes abalou-se para Piracicaba no mesmo dia da conversa com o jornalista, certo de que se tratava de pista promissora. Hospedou-se num hotel barato no centro da cidade e em poucas horas localizou o sítio de Eustáquio. Difícil foi fazer o homem desembuchar palavra, todo cheio de evasivas, que não se lembrava de nada, nervoso, o suor escorrendo pela testa, que nunca vira a Taça, muito menos sabia quem a havia roubado, só sabia que tinha sido derretida. Fagundes não engoliu nada daquilo, ao contrário, pensou, Aí tem coisa! A casa de Eustáquio era de uma simplicidade franciscana, o que Fagundes interpretou como sinal de dissimulação. Não havia banheiro na casa, e sim uma latrina nos fundos do quintal, próximo à horta, Muito estranho, muito estranho, aí tem coisa, repetiu nosso Sherlock.
De volta à cidade, Fagundes comprou um par de botas de borracha de cano longo, macacão de plástico impermeável, luvas, boné para o disfarce e poderosa lanterna. À noite voltou ao sítio. Assustou-se com o latido dos cachorros mas não desistiu; aproximou-se cuidadosamente da casinha – era assim que, desde criança, chamava aquele tipo de latrina – abriu a porta de madeira velha e carcomida, examinou o cubículo com cuidado; nada encontrou. A ideia que lhe ocorreu em seguida foi de arrepiar, Ele escondeu no meio da merda! Depois de alguns minutos de hesitação, Fagundes tapou o nariz e entrou no monte de bosta, contendo a todo custo o inevitável vômito. Remexeu remexeu remexeu até que, às tantas animou-se, ao tocar um objeto estranho: não passava de um lampião velho, que Eustáquio provavelmente deixara cair na fossa, numa noite escura. Merda!, exclamou o detetive, admitindo que a palavra aplicava-se perfeitamente às circunstâncias.
Desvencilhou-se do macacão, luvas, botas, boné, tomou um longo banho quente no chuveiro do hotel, voltou de mãos abanando para o Rio de Janeiro, Eustáquio que vá à puta que o pariu!
Fagundes não desistiu, voltou a procurar o jornalista – sem fazer qualquer menção, é claro, ao episódio da latrina – em busca de nova pista. Álvaro conhecia também um tal de Pedrão, cearense que fazia a manutenção elétrica do prédio, sujeito ladino, escorregadio, de conversinha mole, nunca investigado pela polícia, que depois do roubo mudou-se para Campos, no Estado do Rio. Fagundes tornou a animar-se, Aí tem coisa!
À noite tomou o ônibus para Campos. Dessa vez não foi fácil localizar Pedrão. Depois de quinze dias descobriu que Pedrão mudara de profissão, agora era garçom; daí foi um pulo para que Fagundes o descobrisse trabalhando num restaurante popular, que servia comida a quilo, Aproveito e almoço logo nessa espelunca. A conversa entre os dois também não foi fácil; Pedrão tinha malícia, nada sabia sobre o roubo mas tentou tirar alguma vantagem da situação quando se deu conta da ideia fixa do detetive. Alegou que tinha uma pista quentíssima, mas que custaria algum dinheiro para ser revelada. Fagundes fê-lo baixar o preço, aceitou, e ouviu do eletricista-garçom que a Taça continuava no Rio, de posse de um colecionador fanático por futebol, um tal de Abrantes, residente no Leblon. Desconfiado, mesmo assim Fagundes pagou, ameaçando Pedrão de morte caso se tratasse de pista falsa. (Dias depois Pedrão voltou para o Ceará.) O nosso detetive ainda passou mais três dias em Campos, curando-se de uma caganeira dos diabos, provavelmente contraída no restaurante do Pedrão.
Dessa vez Fagundes não procurou Álvaro, iniciou sozinho a caçada ao colecionador, certo de que esta era a pista mais confiável que obtivera até o momento. Aí tem coisa!, repetia para si mesmo, entusiasmado como sempre.
Após três meses de idas e vindas ao Leblon, sem nunca ter aproveitado um dia sequer de sol e praia, ouviu falar de um certo Abrantes, residente no bairro, mas a notícia era vaga, incerta, o que não esmoreceu Fagundes.
Num lance de pura sorte, encontrou mais um Abrantes, agora eram dois a residir no Leblon, o que, na lógica de Fagundes, duplicava sua chance de encontrar a Jules Rimet. O primeiro Abrantes que localizou era um pobre porteiro de um prédio antigo, e que morava num minúsculo quartinho nos fundos do pavimento térreo. O detetive acabou por deixar algum trocado para o homem, condoído com a penúria em que vivia. A Taça não podia estar ali.
O segundo Abrantes era um homem de posses. Seu nome completo, José Eduardo Abrantes de Albuquerque. Aí tem coisa!, animou-se Fagundes, O homem tem pedigree, vê-se pelo nome. Mas não foi fácil chegar ao figurão, prédio cheio de seguranças, agenda ocupadíssima, inacessível este Abrantes, o que, naturalmente, reforçou a suspeita de Fagundes.
O detetive resolveu apostar na informação de Pedrão de que Abrantes, ou doutor José Eduardo, Melhor chamá-lo assim, era aficionado por futebol, e passando-se por jornalista, interessado numa entrevista para uma revista importante, conseguiu penetrar na fortaleza de José Eduardo, profissão banqueiro!  
José Eduardo era um homem vaidoso. Quando soube o nome da revista, prontificou-se não só a receber Fagundes como a mostrar-lhe sua vasta coleção de itens ligados ao futebol, camisas de jogadores famosos, incluindo várias do Pelé, chuteiras, bolas de copas do mundo, ingressos de todas as copas, fotos e vídeos dos jogos mais importantes, troféus de campeonatos disputados em todo o mundo, e quanto mais se exibia, mais o detetive lhe insuflava o ego, Só falta uma coisa para que o senhor seja o maior colecionador do mundo, O que é?, A Taça Jules Rimet.
Foi aí que Fagundes fisgou o homem, Não possuo a original, é claro, mas mandei fazer uma réplica idêntica, mostro-a para muito pouca gente, vou mostrá-la a você, mas nada de fotografia, está bem?, Combinado. José Eduardo vestiu um par de luvas de algodão, abriu um pequeno cofre de parede e retirou de lá a Taça, para estupefação de Fagundes, que percebeu logo tratar-se da original e verdadeira Jules Rimet, Posso pegá-la?, Vista primeiro estas luvas, e com a Taça na mão Fagundes não teve mais dúvida, havia encontrado o Santo Graal!
Esteve com ela nas mãos por alguns minutos, devolveu-a emocionado, disse que estava satisfeito com a entrevista, Vai ser uma ótima reportagem, muito obrigado, Eu é que agradeço, despediram-se. Não passou despercebida para o dono da casa a perturbação que se apoderou de Fagundes, ao ter a Taça na mão, por mais que desejasse disfarçá-la.
Fagundes precisava pensar. Foi para casa, um apartamento pequeno na Av. Nossa Senhora de Copacabana, fechou as cortinas para abafar o barulho da rua, apagou as luzes, sentou-se no velho sofá da sala, tão emocionado que não conseguia concatenar as ideias. Como não era um repórter, teve dificuldade para ordenar os fatos, passou a noite imaginando as manchetes dos principais jornais do Rio, não só do Rio, do Brasil, do mundo: Detetive carioca descobre paradeiro da Jules Rimet, Taça do tri não foi derretida, Brasil tem a Taça de volta, Detetive Fagundes desvenda o mistério da Jules Rimet.
Foi desta última que ele mais gostou, e imaginava o teor das reportagens, relatando a história das buscas (apenas ninguém ficaria sabendo da visita à latrina em Piracicaba), e ajudado pela ingestão de meia garrafa de uísque, Fagundes adormeceu profundamente, imerso em devaneios de fama e glória.
            Infelizmente não pôde ler a manchete dos jornais do dia seguinte:

Detetive encontrado morto em seu apartamento em Copacabana!

            Assassinato? Suicídio? Fagundes foi encontrado estendido no sofá da sala com um tiro na cabeça; a polícia pouco se interessou pelo caso, ocupada com crimes de maior repercussão social na cidade do Rio de Janeiro.