domingo, 28 de janeiro de 2018

Dona Eugênia, a História viva


Desde a estreia de Leandro Karnal como cronista de domingo no Estadão, acompanho os textos dele com interesse e senso crítico agudo, daí a conclusão de que ele fala melhor do que escreve. Trata-se de um professor, não há dúvida, mas quando exagera nas citações em suas crônicas, fica chato.
Até que chego à crônica de hoje, As surpresas da prisioneira 29700 (28 Jan 2018).
Karnal inicia o texto com uma frase simples: “Sou amigo de Thereza e Gustavo Halbreich há anos.” E começa a descrever dona Eugênia, mãe do Gustavo, nascida em Cracóvia em 1919. Em 1941 foi para a Rússia, fugindo do nazismo, para em seguida retornar a Polônia, para amparar a família. 
Ela e alguns parentes foram removidos para Auschwitz e Dona Eugênia recebeu no braço o número 29700. Informa Karnal: “Os pais dela foram executados: ele com uma injeção de benzina e a avó de Gustavo na câmara de gás. Os irmãos tiveram destinos variados, dois foram enforcados por terem participado da resistência antinazista e outra parte da família partiu para construir Israel.”
Sobrevieram dona Eugênia e o marido Jakub Halbreich. Fugiram para a Suécia e depois para o Brasil. 
Nesse ponto da crônica, Karnal passa a relatar o que aprendeu com dona Eugênia, ou seja, sem citações extraordinárias, passa a nos contar sobre a História viva, pulsante, verdadeira porque sem intermediários ou interpretações.
Afirma Karnal: “Ela havia passado por tudo e continuava leve, otimista, feliz e cheia de bondade no olhar. Não fora contaminada pelo horror que tinha presenciado. Ter sobrevivido em meio a tanta violência reforçara nela o amor à vida e a crença na humanidade. Foi uma experiência linda ouvi-la sobre como as coisas eram boas no novo mundo e como ela amou a terra brasileira. O coração de dona Eugênia não foi tomado pelo justo rancor de quem desceu ao mais terrível que a humanidade foi capaz.”  
E o cronista prossegue: “Uma noite comentei que existia um grupo que negava a existência do Holocausto. Mostrei indignação viva, todavia supus que ela já soubesse. Ela não apenas desconhecia como não entendeu minha fala. Repeti, achando que era a língua original dela que a traía na compreensão. Dei nomes e livros e falei como nós, historiadores profissionais, combatemos esse gigantesco esforço antissemita e de ataque à memória real e documentada do Holocausto. Ela continuou fazendo cara de quem não estava acompanhando meu raciocínio. Só então veio a luz ao meu entendimento: uma mulher que esteve lá, no olho do furacão do genocídio, não entenderia que alguém pudesse dizer que aquilo não existiu.”
E Karnal conclui seu relato de modo emocionante: “Estive um pouco afastado dos amigos queridos [Thereza e Gustavo Halbreich] e, um dia, estava com um grupo no Museu do Holocausto em Israel. Não era a primeira vez e eu já estava preparado para o impacto daquela memória do Yad Vashem. Passei pelas salas e tive a mesma experiência impactante da visão final ao sair do museu: as colinas de Israel, a sobrevivência dos nomes que o nacional-socialismo tinha tentado obliterar. Andando pelo caminho, topo com uma pedra escrita em hebraico e línguas ocidentais com o nome de dona Eugênia. Era uma estela votiva pela memória dela, colocada pelo Gustavo. Eu não sabia que ela havia falecido e chorei ali, naquele jardim.”
Confesso que fui às lágrimas com a magnífica aula de História de Leandro Karnal.
Ele lembra que 27 de janeiro (ontem) é o dia da memória do Holocausto, data da libertação de Auschwitz-Birkenau, há 73 anos. E alerta: “Que nunca esqueçamos, que nunca se repita, que dona Eugênia viva para sempre. A soma do número de prisioneira 29700 dá 18, na tradição hebraica, a vida (chai). Viva a vida!”
Aproveito a crônica do Professor para prestar minha homenagem aos que padeceram sob o jugo do Terceiro Reich.