domingo, 18 de março de 2018

Ru

           
           Alguém já disse que, se a crônica não teve origem no Brasil, foi aqui que o gênero floresceu, ganhou força, até tornar-se o queridinho dos brasileiros. Pela preguiça nacional de enfrentar textos mais pesados? Talvez. Mas desde que Rubem Braga popularizou a crônica, não há jornal que não traga diariamente uns tantos cronistas, alguns mais estilosos, outros mais relaxados, há os mais sérios, há os debochados, um Veríssimo se sobressai pelo estilo literário, um José Simão pela pornochanchada, enfim, há lugar para todos os gostos, alegrando nossos fins-de-semana com leitura amena, bem humorada, descontraída, ajudando a tolerar o nauseabundo noticiário político.
            Acompanho de perto o surgimento de novos cronistas e, eventualmente, o desaparecimento de alguns, por morte ou ostracismo. A mais nova grata surpresa chama-se Ruth Manus, que escreve aos domingos em O Estado de S. Paulo, e rapidamente conquistou sua freguesia. Como fazem outros tantos cronistas, após um certo período de publicações, eles juntam seus textos em forma de livro. (Nada mais conveniente, sob ponto de vista comercial, a exigir apenas uma simples revisão...  Aliás, os blogueiros adotaram a mesma tática com sucesso.)
            Pois o livro de Ruth Manus traz o interessante título Um dia ainda vamos rir de tudo isso (Ed. Sextante, 2018), e vou logo falando da capa (autoria de Natali Nabekura), muito criativa, o fundo amarelo com leve esboço de uma escada em espiral, e o próprio título ocupando toda a capa, em letras pretas grandes de um tipo descontraído que não consegui identificar mas muito adequado, copiando o formato da escada. Infelizmente, quase a estragá-la, no canto inferior direito há um elogio à cronista, assinado por alguém de fama. Acho que Ru – é assim que a autora trata a si mesma no livro – não precisava disso.


            Ruth traz quase sempre relatos de episódios familiares, explorados ao máximo por uma prosa comprida fluida cheia de intimidades, que prende o leitor pela identificação com a história. Outras vezes trata de banalidades que alguma vez já passaram pela nossa cabeça. Vejamos um início de crônica:

“Às vezes – muitas vezes – me flagro pensando que a vida seria mais fácil se eu tivesse nascido homem. Não que eu ache que a vida de um homem seja fácil. Mas, se eu fosse homem, eu sentiria, simplesmente, que devo menos ao mundo.”

            Na crônica Viver longe dos irmãos, Ruth afirma:

“Houve um tempo em que morar na mesma casa é que era o problema. Começamos com as disputas pelos brinquedos, depois pelo controle remoto, evoluindo para a trilha sonora no carro e o tempo de ocupação do banheiro. Tudo era razão para eclodir um embrião de guerra civil.
Todos nós já desejamos, do alto de nossa imaturidade convicta, que eles desaparecessem daquela casa. Que não acabassem com as bolachas recheadas, não comessem o último pedaço da lasanha nem sumissem com as nossas meias preferidas. Já gritamos enfurecidos, dizendo que preferíamos dividir quarto com um animal qualquer do que com eles.
E então os anos passaram e finalmente saímos de casa.”


            Ruth Manus não complica, escreve fácil, escreve gostoso, com gosto de domingo: eu queria escrever como Ruth Manus.