segunda-feira, 5 de setembro de 2016

Aldravia n. 33



esforço
do
pai
alegria
do
menino



Foto: aquarela de autoria de Misseleis, de Brasília.

The white horse

Meus quadros favoritos.


Paul Gauguin (1848-1903): The white horse (1898)

Quem sabe o que é a velhice?

            Adianto aos possíveis leitores que sou fã do Leandro Karnal. Neste último domingo, em sua crônica para o Estadão, ele escreve sobre a velhice.
            Logo de início, a citação de Espinosa merece destaque:

“Sou o meu corpo. Não existem duas instâncias separadas, mas uma só. Meu corpo não contém o meu ser, ele é o que sou. [...] Velhice é a consciência do limite da matéria.”

            Freud, em seu magnífico trabalho O ego e o Id (1923), vai mais além e reafirma:

“O ego é, primeiro e acima de tudo, um ego corporal; não é simplesmente uma entidade de superfície, mas é, ele próprio, a projeção de uma superfície.” [...] “O ego é aquela parte do Id que foi modificada pela influência direta do mundo externo.”

            Nota de rodapé autorizada por Freud é mais explícita: “Isto é, o ego em última análise deriva das sensações corporais, principalmente das que se originam da superfície do corpo. Ele pode ser assim encarado como uma projeção mental da superfície do corpo, além de representar as superfícies do aparelho mental.”

            Voltemos à velhice de Leandro Karnal. Definitivamente ele não é um velho. Não fala, portanto, com experiência própria. Por isso apoia-se – além do já citado Espinosa –, em Shakespeare, Rubem Alves, Cícero, Norberto Bobbio, Ecléa Bosi, Simone de Beauvoir, Sartre, Michael Haneke, Deus, Jó, Don Juan, Matusalém, Hegel, Minerva, Cora Coralina, Konrad Adenauer, Hitler, Ulysses Guimarães, Nero, até que termina o rol de personalidades e deseja um bom domingo a todos nós.
            Quando ele for velho não haverá necessidade de tantas e tão ilustres citações. Bastará dizer que lhe falta a vista pela catarata insipiente, que antes de abrir os olhos, ainda na cama, tem a certeza de que está vivo porque lhe doem as costas, o cansaço agora vem fácil com qualquer esforço físico mais avultado, que os remédios para pressão alta, colesterol, para manter o sangue fluido e não entupir as coronárias, para baixar o ácido úrico, todas essas drogas – este o termo adequado – têm seus efeitos colaterais, que se juntam às doenças de modo que não se diferencia mais a iatrogenia da enfermidade, ah!, ia me esquecendo da surdez, da insônia e da perda da memória.
            A perda da memória! Que alguns mais cruéis chamam de caduquice. A citação de Michael Heneke por Karnal deve-se ao filme Amor, que trata do assunto de forma dura e implacável. Quando o velho assiste o filme, volta para casa assustado. Então o velho sente na pele a “consciência do limite da matéria”. E o limite da matéria é a Morte.
Há muita poesia na crônica de Karnal – ele é um grande orador e escreve como fala –, porém ele cita a palavra morte uma única vez, e fora do contexto da velhice. Talvez não seja mesmo um bom assunto para uma manhã de domingo.
Na segunda-feira, um velho volta ao tema, agora falando da velhice com a autoridade de quem é velho, e sem evitar a morte. E ele pode assegurar: não há poesia na velhice.