quarta-feira, 24 de julho de 2019

Hiato


A ansiedade o fez chegar antes da hora marcada. Algumas décadas se passaram desde que esteve naquele ateliê pela última vez. A recepcionista o deixou à vontade no salão principal, enquanto a antiga professora terminava a última aula do dia. O encontro havia sido agendado por uma querida amiga. Somente ela ainda era capaz de convencê-lo a sair de casa nos últimos tempos.
Andou lentamente entre as estantes, observando as mesmas caixas de plástico, organizadas alfabeticamente e identificadas por etiquetas: cartolinas, lápis coloridos, papel machê, origamis, pinceis, telas, tintas. Lembrou-se da escada de mármore. Reconheceu os quadros e os leques espanhóis. Sentiu-se observado pelas bonecas e máscaras vienenses. Estava mudado.
Portador de um talento inquestionável e inovador, conquistou sucesso e fama de forma muito rápida. Suas linhas e cores fluíam de maneira harmoniosa, praticamente sem necessidade de retoques. Sua obra parecia já estar pronta dentro dele. Quebrou paradigmas sagrados e seculares. Era como se o tempo estivesse a sua espera. 
 Produziu incansavelmente, viajou o mundo, expôs nas mais prestigiadas galerias. Dominou todas as técnicas para em seguida transformá-las. Criou estilos e influenciou tendências por mais de uma década, no que pode se definir como um autêntico estado de arte. Parecia ser a verdadeira encarnação do espírito do seu tempo. 
Sentou-se em uma das mesas próximas à varanda, de frente para o gramado, logo abaixo do grande vitral colorido. Algumas lembranças voltaram a sua consciência. Olhares brilhantes, conversas sem entrelinhas, sorrisos fáceis, inseguranças, vida pela frente. Teve dúvidas se essas memórias eram mesmo agradáveis. Sua percepção atual  já contaminava o passado.  
Ninguém entendeu quando os contratos foram rescindidos, as viagens canceladas e os cavaletes desmontados. O recolhimento foi respeitado, mas nunca compreendido. Nem a família nem os amigos mais próximos conseguiam alcançá-lo. Nunca havia passado por isso. Semanas, meses e anos de completa infertilidade.
 Era como se toda a mensagem já tivesse sido dada e nada mais houvesse para ser dito. Parecia já ter cumprido sua missão. Não se desesperou, fez pior. Resignou-se ao que entendeu como destino. Sua arte não amadureceria. Porém, lentamente a ausência de vontade começou a afetar tudo. Perdia o tônus do corpo e da alma.
A professora entrou pelo ateliê silenciosamente. Escondeu toda preocupação sorrindo apenas com os olhos, como sempre fez. Já o esperava. Sentou-se ao seu lado. Permaneceram olhando para o gramado, sob os últimos raios de sol, juntos. Nenhuma conversa. Teriam um longo e incerto caminho pela frente.

                                             Moisés Lobo Furtado     26/06/2019

Nota do blogueiro: É com enorme satisfação que publico os textos do meu amigo Moisés neste blog. Uma honra!