segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Morre Ellsworth Kelly, aos 92 anos



O artista americano Ellsworth Kelly, conhecido por suas pinturas minimalistas e abstratas morreu aos 92 anos, informou neste domingo (27) o jornal "The New York Times".
Kelly nasceu em Oradell, nos arredores de Nova York, estudou no Pratt Institute, antes de ser enviado à Europa como recruta em janeiro de 1943. Depois de deixar o exército em 1945, estudou pintura na Escola do Museu de Belas Artes de Boston.
Considerado tradicionalista, pintava nus sem cor. Gostava de Kandinsky. Queria fazer algo diferente", disse ele em uma entrevista este mês ao jornal britânico "The Guardian", na qual afirmou que continuava a trabalhar em suas obras.
Como artista, os anos de ouro de Kelly foram vividos em Paris, cidade que havia visitado durante a Segunda Guerra Mundial e onde viveu e estudou em 1948.
O Louco curte o minimalismo!



Amarildo e a conta de luz

Charge do dia.


De como Ermelinda aprendeu a voar através da janela de Marquetti

                     

Vista de Ouro Preto, de Ivan Marquetti: dois detalhes.

             Tenho 90 anos e ainda não gosto do meu nome, não me acostumo com ele, não vou me acostumar nunca: Ermelinda. Graças ao bom Deus, chamaram-me Linda a vida inteira, mesmo que eu nunca houvesse considerado o apelido apropriado, fazedor de jus ou verdadeiro merecimento à estampa que sempre revelei ao mundo. Menos mal.
            Passei anos de minha vidinha interiorana indo às igrejas de Ouro Preto, a cidade mais bonita do Brasil, onde nasci, diariamente sem faltar quase que um dia sequer. Faltava, às vezes. Agora saio pouco. Aquietei em minha casa e fico olhando olhando olhando para um quadro do Ivan Marquetti, pintor carioca que montou estúdio aqui perto, anos atrás, e ficou meu amigo, amicíssimo. Deu-me a pintura de presente. Um mimo, uma lindeza. Ele não cansava de pintar Ouro Preto, quem cansaria?
            Conversávamos muito sobre arte, aprendi tudo que sei com ele, homem culto, de grande sensibilidade, um artista. Ele não gostava de Portinari, acho que era inveja, nunca palpitei, respeitadora do sentimento inconfessável dele. Mas gostava de Picasso, também quem não gosta? Certa vez fomos a São Paulo, ficamos hospedados num hotelzinho barato perto da Praça da República, lugar bonito respeitável habitável naqueles tempos, parece que hoje não. Ele me apresentou a Pinacoteca do Estado, recém inaugurada, parava em cada quadro que julgava digno de comentário e dava aquela aula de pintura, descrevia a técnica, a escola a que pertencia o autor, a distribuição de formas e cores, eu ouvia ouvia ouvia. Marquetti adorava Almeida Prado!
            O quadro que ele me deu mostra uma porta e uma janela, e quem o vê está dentro de casa, na minha sala de estar, como eu estou: sou eu quem o vê, daqui de dentro, e através dele vejo as igrejas de Ouro Preto lá fora, rebrilhando cheias de fé o resplendor de Deus. Não preciso mais sair de casa aos 90 anos para ir à igreja, voo para lá em pensamento pela porta e janela de Marquetti, entro quietinha, rezo, regresso em paz, tomo um chazinho de camomila, vejo um pouco de televisão, vou dormir com Deus.
Mas tem uma coisa que preciso contar.
Numa dessas andanças voadoras, atrevida, resolvi ir de vestido vermelho, antigo mas ainda prestável, bonitinho, seda pura, o mesmo que levei para São Paulo, em vez do surrado pretinho abaixo dos joelhos apropriado para a prática da religião. Voei. Nem bem acabei de entrar na igreja e dou de cara com o Caramunhão!
Era ele, o Tinhoso, não havia dúvida, com o par de chifres retorcidos queimados que nem bode velho, rabo com flecha na ponta, orelhas pontudas cabeludas rabudas obscenas, sobrancelhas de taturana, carona vermelha sanguínea, corpo preto retinto peludo, e os olhos!, amarelos luzidios fosforescentes, as pupilas um risco negro vertical faiscantes de luxúria. Pior era o cheiro de enxofre exalando forte, tonteando a gente. Assustei!
            Peguei-me com Nosso Senhor Jesus Cristo, criei coragem, afrontei:
            – Que é isso, Coisa-ruim, deseja seduzir uma velha de 90 anos?
            – Não vejo em você uma velha.
            – Vê o quê, então, Demônio dos Infernos?
            – Vejo uma mocinha de 18 anos, chamada Ermelinda, nome que eu adoro, sempre adorei, espero por você há 72 anos, mas você só vinha de preto às igrejas, aquele crucifixo de prata horrível balangando no pescoço, aquela sim era uma velha de 90 anos, hoje você é outra, é o sinal de que eu tanto esperava, desejo você assim de boca vermelha, vestido curto, os peitinhos apontando na seda pura, coxas roliças, pés descalços.
            – Valha-me Nosso Senhor Jesus Cristo!
            – Nessa hora Ele está dormindo, fazendo a sesta, como todo mundo aqui em Ouro Preto; sobramos nós dois, Ermelinda e eu, bem acordados, palavrinha de duplo sentido, se você me entende. Ermelinda, no fresquinho dessa igreja bem que podíamos ir para detrás do altar, para um refestelo bom...
            – Mas que é isso, Meu Senhor? 
            – Meu Senhor?! Gostei, Ermelinda, há muito, desde o meu decaimento não me tratavam com tanta deferência! Gostei mesmo, aumentou meu apetite.
– Não vê que sou uma velha, temente a Deus sobre todas as coisas?
– Não a vejo assim e vou mostrar-lhe um espelho: olhe e veja você mesma, Linda aos 18 anos.
            E Linda olhou e se viu, linda, a pele morena de veludo, boca carnuda de carmim, olhos verdes da cor da esmeralda, colo cheio, peitos pontiagudos furando o vestidinho vermelho, quadris cheios, braços e coxas fortes, pernas de bailarina, pés descalços, e um ar levado na cara. Assustou-se novamente!
            – Viu?, perguntou triunfante o Cão.
            – Estou vendo, mas não posso compreender o que vejo.
            – Gostou do que viu?
– Não posso dizer que não gostei... Sinto saudade desse tempo. E Deus permite isso?
– Claro que permite. Foi ele quem me deu este espelho, com a expressa recomendação de que, quando o mostrasse aos homens, explicasse que veriam nele exatamente a imagem de Suas creaturas.
– Cê tá falando bonito, Tição.
– Aprendi muita coisa nessa quase eternidade, Ermelinda; comecei a aprender com os alfarrabistas da Mesopotâmia, onde nasci, berço da civilização. Mas chega de conversa, o tempo é hoje, agora.
– Será?
– Será! Então, para detrás do altar, ordenou peremptório o Coisa-preta.
Linda obedeceu. Deitaram-se atrás do altar. Refestelaram-se.
Ermelinda acordou em casa, a televisão ligada chiando, rezou, dormiu bem satisfeita; a não ser por um discreto cheiro de enxofre no ar, parecia que nada de mais havia ocorrido. Apenas mais um voo pela porta e janela de Ivan Marquetti, seu antigo e interminável caso de amor.