sábado, 4 de março de 2017

Velhos hábitos



            O Carnaval deste ano não termina nunca, “parece exorcismo”, segundo Macaco Simão. Também pudera, largar a folia, a bebedeira, homem vestido de mulher, mulher sem vestido, para enfrentar a crise por que passa o país, saber das delações de todo dia, das falcatruas, melhor continuar no samba.
            Mas já é possível avaliar algum rescaldo do Carnaval, número de acidentes nas estradas, número de mortos e feridos, tiros, facadas, agressões a mulheres, essas intercorrenciazinhas próprias do chamado reinado de Momo.
            Uma dessas intercorrências repete-se a cada ano, a população esperneia, a mídia dá destaque, nada resolve: no Carnaval seguinte será a mesma porcaria. Refiro-me ao ato de fazer xixi na rua. Quanto mais compactos os blocos, mais xixi escorrendo perna abaixo e, consequentemente, escorrendo pelo asfalto. Um mar de xixi.
            Os banheiros sanitários pouco alteraram esta calamidade pública. Em algumas cidades como Olinda – o relato é de um amigo que brincou num bloco de rua – o mijo escorre ladeira abaixo, possivelmente vai dar no mar no Recife, ninguém sabe ao certo onde vai dar tanto mijo, como no sangue escorrendo pela rua em Crônica de uma morte anunciada, de Gabriel Garcia Marques, se não me falha a memória... Mas o cheiro é forte, inconfundível!
            De onde virá tal costume, que se arrasta anos a fio? Tornou-se um hábito? Faz parte do Carnaval?
            Encontrei a resposta em Mary Del Priori, em seu magnífico Histórias da Gente Brasileira, Império, volume 2 (Leya, 2016), no delicioso capítulo Cantando no banheiro:

            “O tratamento dado aos dejetos líquidos gerava frequentes queixas dos moradores, porque outro hábito comum na cidade era o despejo dos penicos do alto dos sobrados, sem perdoar o caminhante que passava distraído pela rua, a qualquer hora do dia ou da noite. Algozes ficavam à espreita por trás das janelas dos sobrados, esperando algum desafeto passar para “honrá-lo” com excrementos atirados pela janela. A situação era tão séria que, em 1831, a Câmara Municipal do Recife editou um regulamento determinando que o arremesso de “águas servidas” para a rua só poderia ser feito à noite, e, mesmo assim, após ter dado um aviso prévio por três vezes seguidas: “Água vai!... Água vai!... Água vai!...”

            Donde se conclui que melhoramos consideravelmente nossos hábitos, não se mija mais na cabeça dos passantes, mija-se nos muros, nos pés de árvore, no meio da rua, que o bloco não pode parar. É preciso ler essas histórias para conhecer melhor a gente brasileira.
            E salve a Educação!



Ilustração: escravos jogando dejetos domésticos no mar, Histórias da Gente Brasileira, p. 191.