Temos conversado muito, eu e o poeta Paulo Sergio, sobre a forma do poema – não encontro expressão melhor para designar sobre o que temos conversado e sobre o que pretendo expor aqui. Em livro que se encontra no prelo, poderemos acompanhar a mudança na forma do poema, desde um estilo clássico, até o poema mais livre, limpo, como costumamos chamá-lo.
Melhor exemplificar, com dois poemas de Paulo Sergio. O primeiro, um soneto à moda clássica. O segundo, poema limpo, ambos belos poemas.
O caminho
Existe na montanha um caminho
vedado a ilusões e desencantos,
discreto, estreito, sinuoso, enquanto
constantemente leva o passo acima.
De terra seca e pedra, circundando
em lentas voltas a dura subida,
a sábia, obstinada e quieta trilha
em lentas voltas a dura subida,
a sábia, obstinada e quieta trilha
conduz no rumo próprio o caminhante.
Assim no alto monte, assim na vida.
Se queres ascender como pessoa,
escolhe a sinuosa e lenta via.
Escolhe a paciência, em que se esconde
a paz do persistente peregrino,
do chão ao céu, do céu ao chão, ao longe.
a paz do persistente peregrino,
do chão ao céu, do céu ao chão, ao longe.
folhas
o sol horizontal do fim da tarde
incendeia as folhas
que já vão frágeis em textura
que já vão frágeis em textura
pobres de seiva
tênues véus de escassa serventia
prestes a deitar ao solo
a luz que as atravessa
a luz que as atravessa
resta a derradeira cor
o leve embalo do vento
a vida passou
eu fiz o que pude
eu fiz o que pude
O que chamamos de limpar o poema começa pela abolição de qualquer pontuação. Um espaçamento duplo ou outro ainda é permitido. Às vezes, nem isso:
mudança
eis a casa que te não pertence
deixa as suas paredes caiadas de branco
deixa as suas paredes caiadas de branco
os velhos móveis
os livros
a cadeira que se molda a teu corpo
a amendoeira na calçada
deixa-a toda antes que se desfaça
há uma outra casa a esperar que a habites
os livros
a cadeira que se molda a teu corpo
a amendoeira na calçada
deixa-a toda antes que se desfaça
há uma outra casa a esperar que a habites
sem luz ou sombra
paredes de fumo
piso de névoa
instala-te nela enquanto é tempo
paredes de fumo
piso de névoa
instala-te nela enquanto é tempo
acomoda-te ao desconforto
de não saber o lugar
não saber o rumo
não saber o odor
não saber
de não saber o lugar
não saber o rumo
não saber o odor
não saber
A limpeza continua com o uso exclusivo de minúsculas, mostrando a palavra como ela é, sem artifícios ou enfeites, nua.
Os versos, em geral, tornaram-se mais curtos, os poemas cabem todos em uma página. A despeito disso, o sentido da poesia se aprofunda, e mergulha nos abismos da alma humana.
Já que falamos de forma, não custa voltar à postagem anterior deste blog, com Poética, de José Paulo Paes. http://loucoporcachorros.blogspot.com/2019/12/mais-de-jose-paulo-paes.html
não sei palavras dúbias. meu sermão
chama ao lobo verdugo e ao cordeiro irmão.
com duas mãos fraternas, cumplicio
a ilha prometida à proa do navio.
a posse é-me aventura sem sentido.
só compreendo o pão se dividido.
não brinco de juiz, não me disfarço em réu.
aceito meu inferno, mas falo do meu céu.
Paes coloca todas as palavras em minúsculas. Às vezes um ponto no meio do verso, que continua com minúscula. Outras vezes uma vírgula. Tudo muito limpo. Os versos neste livro foram todos escritos antes de 1983! Paes já era arrojado na época!
O modo de fechar o poema também tem a ver com a forma. O exemplo acima, em mudança, ilustra bem a ideia:
de não saber o lugar
não saber o rumo
não saber o odor
não saber
não saber o rumo
não saber o odor
não saber
A forma livre, a ideia vaga. Não há dúvida de que a forma que estamos a falar aqui tem a ver com o estado de espírito do poeta, igualmente mais livre, mais confiante, mais verdadeiro. Posso perguntar também, e sobre isso ainda não conversei com o poeta, se não haveria uma dose de minimalismo em tais mudanças.
De como aprender lendo poesia e o privilégio de poder conversar com o poeta sobre a construção do poema. Aprendo sempre.