sexta-feira, 12 de setembro de 2014

O violeiro, de Almeida Júnior


Tela exposta na Pinacoteca do Estado de São Paulo.

Foto: A.Vianna, ago. 2014.

A consulta


             Assim que entrou no consultório médico e sentou-se na ampla sala de espera, a mulher tornou-se o centro das atenções de recepcionistas, enfermeiras e demais pacientes. Era belíssima e vestia-se de preto da cabeça aos pés. De joias, usava apenas um grande anel de ônix.
            Quando convidada a entrar para a consulta, o espanto do Dr. Oliveira não foi menor. Com o rabo do olho conferiu a idade da paciente na tela do computador sobre a mesa, o que lhe deixou pasmo – 62 anos de idade!
            Clínico Geral por vocação, Oliveira gostava de conversar com os pacientes, interessava-se pela vida pessoal deles, por seus hábitos, relatos de viagens de férias, pela relação com outros membros da família, incluindo cães e gatos, se fosse o caso. Era capaz de guardar até o nome de um cãozinho de estimação, o que deixava os pacientes impressionados e felizes. Embora médico moço – acabara de completar 30 anos –, Oliveira não temia as perguntas mais difíceis ou até incômodas durante uma consulta, pois acreditava na verdade acima de tudo na relação com os pacientes. Ao perceber o semblante de tristeza de Ofélia, disparou a pergunta:
            – A senhora está de luto?
– Sim, estou.
            – Algum parente próximo?
            – Mais que parente...
            – Seu marido?
            – Meu amante.
            Oliveira desconcertou-se por um momento diante da franqueza da paciente. Afinal, acabavam de se conhecer e aquela informação certamente exigia uma grande dose de intimidade. Ambos permaneceram em silêncio por alguns minutos, até que o médico, utilizando-se de sua prerrogativa profissional, encontrou a saída perfeita para aquela situação embaraçosa.
            – E o que a traz aqui, dona Ofélia?
            – Saudade, doutor.
            – Saudade?
            – Sim, que de saúde física estou ótima; tenho saúde de ferro, como se diz na minha terra.
            – Então?!
            – Apenas desejava lhe ver, doutor Fábio. Não é este seu primeiro nome?
            – Sim, e por que razão deseja me ver?
            – Não estou bem certa ainda, Fábio. Posso chamar-lhe assim?
            – Claro...
            – Talvez por não suportar a dor da morte de meu amante.
            Oliveira, ou Fábio Oliveira, começava a se preocupar com o rumo que tomava aquela consulta. O que desejava aquela bela senhora? Era linda, é verdade, porém 30 anos mais velha do que ele, o que fazia do assédio sexual uma hipótese improvável. A distinção, a classe, a finura com que a paciente se comportava afastavam ainda mais esta possibilidade. O médico não sabia o que pensar, refugiando-se mais uma vez atrás do jaleco branco.
            – A senhora está deprimida, tem chorado muito?
            – De fato, não. Sinto muita saudade dele, porém como tivemos 30 anos de uma convivência completamente feliz, não posso me dar ao luxo de cair em depressão. Seria uma ingratidão para com a vida. Saudade sim, sinto muita! Por isso resolvi procurá-lo, e posso lhe garantir que nossa breve conversa já produziu em mim imenso efeito, grande alívio, trouxe-me paz.
            Oliveira encontrava-se completamente perdido. Não fazia a menor ideia do que estava em andamento naquela estranha consulta, para ele um verdadeiro mistério. Tomou coragem, respirou fundo, foi direto ao assunto.
            – A senhora está de luto pela perda de seu amante, sentiu desejo de me ver, e nossa conversa trouxe-lhe alívio. Pode explicar melhor o que está acontecendo, dona Ofélia?
            – Meu amante era seu pai, Fábio. Estávamos juntos quando você nasceu. Num momento em que a família estava ausente, seu pai levou-me até o berçário da maternidade e tomei-o no colo, com dois dias de nascido. Seu pai, na qualidade de comerciante, dispunha sempre de um bom álibi. Viajamos por toda a Europa, estivemos nos lugares mais lindos do mundo, hospedamo-nos nos melhores hotéis – seu pai gostava de luxo! – fomos a grandes concertos, visitamos todos os museus importantes, ambos tínhamos o mesmo amor pelas artes. Vivemos felizes por mais de 30 anos. Este anel, dentre tantas outras joias, foi presente dele.
            Oliveira aparentava lividez cadavérica. Não estivesse sentado em sua confortável cadeira de médico teria uma lipotímia, era capaz de desabar no chão. Enquanto ouvia aquela mulher, lembrava-se das constantes e misteriosas viagens do pai, desde que ele se conhecia por gente, sempre só e a negócios.
– Negócios são negócios, trabalho para sustentar minha família.
De austeridade exagerada, o pai era rigoroso com a economia doméstica. Nada de desperdícios, dizia sempre. Vestiam-se todos, a esposa, os filhos, o provedor, de maneira quase franciscana. Raramente a família ia a um restaurante, exceção feita no aniversário da esposa. Porque no aniversário do pai nunca havia festa, ele estava sempre viajando para o exterior, a negócios, naturalmente. A bem da verdade algo precisa ser dito: afeto nunca faltou, à esposa e aos cinco filhos. O pai permitia até um cineminha nos finais de semana. Um pai severo, porém amoroso.
Agora estava tudo explicado, pensou Oliveira.
O doutor nem ouviu o final do relato de Ofélia, absorto que estava em seus próprios pensamentos. Quando deu conta de si, ela já se levantara, agradeceu-lhe com um aperto de mão, deixou a sala em silêncio. A consulta, ela já havia pago.