quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Carta a Eva


Minha querida Eva,

afirma Walter Benjamin que “todo convencimento é infrutífero”; partamos, portanto, deste princípio, na tentativa de estabelecer um diálogo, e nada melhor para tanto que a discordância, a dissonância, a diferença, quando podemos pensar com nossa própria mente, e separar o que é nosso, aquilo que a nós pertence, do que é do outro, e ao outro pertence.
            Trata-se do Caim, de José Saramago.
            Se entendi bem, a você pareceu que o romance não tem consistência, é fragmentário, desconexo em seu enredo, repleto de histórias dispersas, não coesas,  descuidado até para com o que chamamos de romance, e por aí vai, não importa se entendi bem ou não: você não se deixou impressionar pelo livro, este é o fato. A mim, impressionou-me muitíssimo; aí está a dissonância, e desejo apresentar algumas poucas razões pelas quais impressionou-me, na forma de uma carta, o que dá bem a ideia de quão antiquado eu sou, já que ninguém se utiliza mais deste meio de comunicação, o e-mail é muito mais prático, rápido, eficiente. Porém, esta é uma carta, e assim gostaria que fosse lida.
            Vamos, pois, ao tema. Quando Adão e Eva, já exaustos, sem esperanças, frustrados demais com a perda do Paraíso, encontram um caminho, uma estrada, ou algo parecido, e resolvem esperar, até que surge uma caravana, que os acolhe e os leva até o povoado mais próximo, então o autor começa de fato a falar sobre a loucura que é deus (assim mesmo, com a inicial minúscula, para diferenciá-lo de um Deus, que para Saramago não existe). Este deus ainda contemporâneo, o deus que não viu Auschwitz, que lá não estava, conforme o próprio representante dele aqui na Terra inadvertidamente confessou (“E Deus, onde estava?”, perguntou Bento XVI, duas vezes em seu discurso, ao visitar o campo de concentração nazista), este deus de uma incoerência absoluta. No meu ponto de vista, foi isso que Saramago descreveu: a incoerência estúpida desse deus, através de uma história que não poderia ser contada, portanto, de forma coerente, coesa, tradicional, com começo-meio-e-fim, como são contadas pelos homens as histórias bíblicas. (Lembra-se, Eva,  do final de As benevolentes, do Jonathan Littell? Alguns não entenderam nada, porque buscaram um sentido lógico para o término de uma loucura coletiva. Acho que nós entendemos bem: ao final, o homem apenas enlouqueceu!)
            Dizia meu avô que a Bíblia era o livro mais estúpido e mentiroso que já fora escrito, lembro-me bem dele ao pronunciar estas palavras, que me soavam então radicais, blasfemas até, para um menino como eu, filho de funcionário do Banco do Brasil, morador de cidade do interior. Proféticas palavras, para José Saramago! Meu avô teria gostado do Caim. Bem, mas por quê ele entra na história neste momento da missiva?
            O fato é que o deus do livro Caim faz tudo sempre errado. Nem os homens erram tanto. O Evangelho do Saramago tem começo-meio-e-fim, pois assim me parece que é o Novo Testamento, ao menos a vida de Jesus Cristo. Já o Velho é caos. E caótica deve ser necessariamente a história a ser contada pelo ateu Saramago. Penso que este livro está pronto há muito tempo, admito que a pneumonia possa ter apressado seu término - esta é apenas uma conjectura -, mas o término na forma em que foi concebido, uma conversa interminável entre Caim e deus me parece uma solução de gênio, pois assim caminham os homens hoje, as religiões, as disputas teológicas, a estupidez humana, uma desconversa sem fim, sem sentido, numa terra de cegos, de vários pequenos e mesquinhos deuses, criaturas dos homens. Só poderiam ser.
            Sob o aspecto puramente literário - quanta pretensão a minha! (por isso, o que escrevo deve ser avaliado sob a óptica de quem lê uma carta, com a intimidade que só uma carta permite, e que dá o direito ao escrivinhador de dizer qualquer asneira, pois é para um único leitor que ele diz) -, sob o aspecto literário penso que este movimento de vai-e-vem da narrativa, com flashbacks, muitas vezes sem a devida correspondência temporal, atemporal como o nosso próprio Inconsciente (não podia faltar uma pitada freudiana, dirá você), dá um forte caráter de modernidade ao romance. Há tanta incoerência quanto liberdade. E liberdade de pensar, para poder escrever, é tudo. É assim que se faz Literatura.
            Bem, são algumas ideias que ofereço para sua consideração, querida Eva.
            Um abraço afetuoso do seu
Abel.

Publicado em O mito do vaso partido e outros escritos, Ex libris, 2010.



O testamento de Maria




Certa vez indiquei a um amigo português a leitura de O Evangelho segundo Jesus Cristo, de José Saramago, referindo-me a uma obra prima que não poderia deixar de ser lida, ainda mais por um compatriota do autor. Pouco tempo depois encontrei o amigo, que foi taxativo, enfático, definitivo, Folheei o livro numa livraria e não o lerei de forma alguma, aquilo é uma heresia.
            Outra pessoa, bem mais próxima, admirador de Saramago por algum tempo – fã ardoroso de O ano da morte de Ricardo Reis – depois de ler o Evangelho, sacramentou, Nunca mais leio qualquer livro do Saramago.
            Se você é uma dessas pessoas, sugiro que nem acabe de ler esta crônica, não perca seu tempo! Nem se irrite...
           Após o alerta, vamos ao que interessa: O testamento de Maria, de Colm Tóibín, tradução de Jorio Dauster, Companhia das Letras, 2012. O livro é espetacular, é o mínimo que posso dizer. O autor, nascido na Irlanda em 1955, é premiadíssimo, inclusive com o Booker Prize em 2001.
            Amedrontada, assustadíssima, isolada do mundo, 30 anos após a morte brutal do filho, Maria relata obscuras lembranças de um tempo difícil, tempo da possível origem do Cristianismo. “Meu corpo é feito tanto de sangue e ossos quanto de memória”, alerta Maria no início do livro. E continua:

“Eu me lembro de coisas demais; sou como o ar num dia calmo, que se mantém parado e não deixa escapar nada. Assim como o mundo prende a respiração, eu guardo as recordações dentro de mim”.
           
Maria descreve o comportamento do filho desde a infância até a crucificação, analisa os chamados milagres, o drama de Lázaro ressuscitado, discute os fatos “que já estavam decididos”, fala do instinto de sobrevivência que a manteve viva enquanto o filho morria na cruz e do sentimento de culpa daí advindo, humana que é.
Sua voz é ao mesmo tempo cheia de ternura e ódio.
            O livro, de oitenta e poucas páginas, pode ser descrito como de uma prosa lírica riquíssima, e a tradução parece-me primorosa. Sem dúvida, um livro ousado, denso, brilhante, inesquecível para aqueles que tiverem coragem para enfrentá-lo.