Neste 31 de março de 2014, todos aqueles que viveram os anos de
ditadura militar, e cada vez serão menos os sobreviventes, todos têm algo a
dizer ou rememorar, para o bem ou para o mal. Também eu tenho a minha história.
O ano era o de 1968. Na manhã do dia 22 de outubro, em frente ao
Hospital Pedro Ernesto, da Faculdade de Medicina da UERJ, os estudantes preparavam-se
para uma manifestação em protesto contra a falta de liberdade no regime
militar. A Avenida 28 de setembro, no bairro de Vila Isabel, onde fica o
hospital, embora de mão dupla, era estreita, composta por duas pistas de cada
lado, separadas por pequenos canteiros de grama, onde foram plantadas algumas
palmeiras. De modo que era pequena a distância entre a calçada em frente ao hospital
e o lado oposto da avenida.
Iniciada a manifestação,
imediatamente surgiram as viaturas do DOPS (Departamento de Ordem Política e
Social) do outro lado da pista. Os estudantes receberam os policiais com
pedras. A reação foi imediata: passaram-se apenas alguns minutos quando o
primeiro colega caiu ao meu lado. Segundos depois, caiu outro colega. Pensei,
que gente mais frouxa, isso não é hora para escorregar, prestem mais atenção!
Em seguida notei o sangue que
manchava o jaleco branco dos alunos. Mais alguns minutos e caiu o terceiro colega.
Resolvemos recuar, entramos no hospital e fechamos o portão principal de acesso
ao estacionamento. Só então pude compreender o que estava ocorrendo: enquanto
atirávamos pedras, os policiais respondiam com balas de verdade. Não me lembro
de ter ouvido o estampido dos tiros. Porém, lembro-me muito bem que um colega considerado
líder estudantil, (anos depois político de projeção no Rio de Janeiro),
permaneceu todo o tempo protegido atrás do portão. Pouquíssimos perceberam este
fato e, que eu saiba, não houve comentários.
Ao que me lembro, foram três os
baleados. Um recebeu o tiro na perna, outro, no abdome, o terceiro foi atingido
na cabeça. Ajudei a carregar um deles para o centro cirúrgico do próprio
hospital.
Luiz Paulo Cruz Nunes, com 21 anos, que cursava o segundo ano de
medicina, colega de turma de meu irmão, que também participava das
manifestações, recebeu o tiro na cabeça. Depois de intermináveis horas na mesa
de cirurgia, enquanto todos aguardávamos ansiosos por alguma notícia, ele não
resistiu e morreu.
O clima entre
nós era de pânico, incluindo os pacientes. O hospital permanecia cercado pela polícia,
e com quase todas as luzes apagadas. Ninguém entrava, ninguém saía.
Anoiteceu e
resolvemos dormir no hospital. Consegui telefonar para casa, tranquilizando
meus pais. Dormi mais uma segunda noite na mesma enfermaria, e apenas no
terceiro dia voltei para casa. Ainda com medo.
Não me lembro
de qualquer reação por parte da direção da Faculdade ou do Hospital, exigindo qualquer
explicação sobre o ocorrido. Havia apenas o silêncio.
Ao final de
1972, os 128 estudantes daquela mesma turma, incluindo meu irmão, e seus familiares,
preparavam-se para a solenidade de formatura no Teatro Municipal do Rio de
Janeiro, quando teve início o coro gritando o nome de Luiz Paulo. O diretor da Faculdade,
Prof. Jaime Landmann, imediatamente encerrou a sessão, fecharam-se as cortinas
do teatro, não houve formatura. Restou ainda apenas o silêncio.
Muito bom que
possamos falar e até escrever sobre esses acontecimentos nos dias de hoje, para
que jamais sejam esquecidos.