Nada mais intrigante para mim que o fenômeno da memória. Guardo comigo dois antigos álbuns com encadernação de couro e duas caixas de sapato repletos de fotografias antigas. (Hoje não se imprimem mais as fotos no papel, o que é uma pena, pois permanecem quase invisíveis, perdidas na memória do computador.) Em sua maioria, são fotografias das famílias de meus avós pais tios tias primos, o pai quando solteiro a mãe solteira os amigos dos pais e dentre elas estão algumas pessoas completamente desconhecidas para mim, e assim permanecerão para sempre, desconhecidas, já que não há mais quem as possa identificar. Diga-se logo, sinto enorme prazer em ver e rever essas fotografias, mesmo sem saber de quem se trata.
Uma delas, em tamanho grande, preto & branco 18 x 20, prendeu minha atenção; há mais ou menos um mês deixei-a sobre minha escrivaninha, bem à vista, pois algo me dizia que eu conhecia aquela mulher.
Sim, a foto é de uma mulher, vestida de noiva.
A pele muito clara, cabelos negros, o véu preso na cabeça, um leve sorriso na boca bem feita, o olhar altivo, distante, a mulher está sentada na mureta de uma escada que talvez dê acesso à casa da família, algumas hortênsias compondo o quadro, ela faz pose para o fotógrafo profissional. (O papel da fotografia é de ótima qualidade, a imagem está muito bem preservada.)
Durante anos e anos eu olhei olhei olhei para aquela imagem e repeti Não sei quem é.
Agora, a fotografia exposta na escrivaninha, passei a observá-la com maior frequência. Há dois dias, enquanto regava a horta no fim da tarde desse início de inverno, pensando em nada, de estalo me veio a imagem da mulher vestida de noiva: JÁ SEI QUEM É!
Se o leitor teve paciência em me acompanhar até aqui, aqui começa a história. Antes de prosseguir, revelo a fotografia de Fabíola:
No início dos anos 80 trabalhei no Hospital Universitário da cidade de ***, como cirurgião, durante 6 meses, com o objetivo de organizar e credenciar a Residência Médica em Cirurgia Geral. Atendia em ambulatório uma vez por semana, à tarde. Foi quando conheci Fabíola.
A paciente tinha em torno de 60 anos, era levemente obesa, e denotava intenso nervosismo no início da consulta.
– Doutor, sei que eu devia ter procurado um médico há muito tempo. Não procurei. A doença avançou muito, por isso não tenho cura. Mesmo assim, estou aqui, não sei bem por quê nem como.
Fabíola falava aos solavancos, tamanho seu nervosismo. Em contraste com a agitação interior, me pareceu tratar-se de mulher forte, de personalidade marcante, que me olhava nos olhos enquanto falava. Aos poucos foi se acalmando, relatou-me o início da doença, um tumor na mama direita, duro e indolor.
O exame físico foi assustador. O tumor era enorme, media 15 centímetros em seu maior diâmetro, pouco doloroso à palpação. No centro da lesão, uma úlcera infectada, a exalar mau cheiro.
– É câncer, doutor?
– Precisamos do exame histopatológico para confirmar o diagnóstico.
– Tem cura, doutor?
– Fabíola, antes de tudo precisamos remover esse tumor. Você já sofreu demais com ele e por muito tempo. Depois então conversamos sobre o diagnóstico e tudo o mais que você desejar saber.
Para minha surpresa a paciente não questionou a necessidade da operação, ela que relutou por tantos anos pela procura de ajuda. Disse apenas que confiava em mim.
A retirada da mama foi operação extensa, traumática, porém razoavelmente bem tolerada pela paciente. Tratava-se de um certo tipo de tumor que, embora maligno, apresenta crescimento muito lento, ou seja, é clinicamente benigno, em linguagem mais técnica. Com a operação dita radical, a chance de longa sobrevida podia ser considerada. Todas as informações foram repassadas à paciente, na medida em que ela fazia as perguntas de seu interesse.
Fabíola teve alta hospitalar, foi para casa, livre do estorvo que carregara por tantos anos. Parecia um milagre!
Durante as consultas pós-operatórias tivemos oportunidade de nos conhecer melhor, eu a ela, ela a mim. A relação se estreitava a cada encontro, uma relação intensa e difícil de descrever. Por parte dela, uma gratidão infinita. Mas não era esse o único sentimento, havia admiração, quase idolatria pelo cirurgião que operara milagre, tudo sem o menor indício de pieguice; Fabíola preservava sua atitude de mulher independente, dona de si e de seus desejos. De minha parte, o prazer da companhia de uma mulher interessante, culta, vivida, bem mais velha do que eu, eu nos meus 30 e poucos anos; havia também o prazer de haver tomado atitude correta, o da cirurgia radical, criticada por alguns colegas; dei-lhe sobrevida, pensava eu.
Até que Fabíola me convidou para um chá, à tarde, na casa dela. Aceitei de pronto o convite. A conversa parecia que pairava em nuvens. Falávamos de tudo e de nada. Ríamos muito. A confiança mútua já se desenvolvera. Desfrutávamos de plena liberdade. Foi quando ela me presenteou com a fotografia, talvez o objeto mais valioso que encontrou para me presentear. Hoje sei, aquele foi um momento de felicidade porque havia amor.
Depois de dois meses voltei a Brasília e perdi contato com Fabíola. Passado um ano, recebi certo telefonema.
– É o doutor André?
– Sim.
– Aqui é Marilda, amiga de Fabíola. Sei que ela gostava muito do senhor, então estou ligando para dizer que ela morreu.
– Como? Morreu como?
– Estava parada esperando uma condução, foi atropelada por um ônibus. Morreu na hora. Desculpe a notícia, doutor, mas resolvi ligar porque ela gostava muito do senhor.
Além de não reconhecer a pessoa da fotografia durante anos, esta história também permaneceu afastada de minha memória por longo período.
Por que, por que?